Por Marco Vasques, para Desacato.info.
MICO
É final de tarde de sábado. Mico perambula, alquebrado, pelo pequeno mercado do bairro. Carrega o carrinho de compras enquanto seu filho trata de escolher as mercadorias necessárias. Mico está vestido com uma camisa com dizeres em inglês. Nas costas, a propaganda de uma escola do idioma que nunca aprendeu. Bermuda vermelha e chinelo de dedos. O rosto e os pés de Mico revelam desespero e aspereza, porém, o primeiro ainda reserva um pequeno ar de simpatia. As mãos, ainda empoeiradas, anunciam o trabalho duro, pesado. O filho revela o mesmo cansaço, apesar de jovem. As roupas de ambos estão muito manchadas. Uma espécie de pó branco cobre a pele e as roupas.
Enquanto o filho perambula acelerado pelo mercado escolhendo as compras numa velocidade além do ritmo da sua respiração, Mico se escora no carrinho e puxa conversa com um estranho que se encontra na fila do açougue. Mico revela que nos últimos dois dias ele e seu filho carregaram, no braço, quase uma tonelada de pedras. Pedras, disse ele, que variavam entre cinquenta e cem quilos cada. Reclama de suas sucessivas dores na coluna. Fala dos preços exorbitantes do arroz, feijão e da carne. Reclama da vida dura e da velhice que é acentuada pelos mais de trinta anos de trabalho árduo sob sol e chuva. Mico fala de tudo com um voracidade ímpar.
Mico fala numa velocidade capaz de despertar atenção de mais ouvintes, pois as palavras parecem fugir de seu corpo e a tonalidade da voz revela uma espécie de pedido de carícia. Ele não para de falar, não dá sequer a oportunidade de seu interlocutor concordar ou discordar. Discorre sobre tudo em sua vida, como se estivesse num leito de morte e necessitasse confessar coisas nunca ditas. Falou da morte de Norma, sua esposa, assim que seu filho veio ao mundo. Afirma que pode até não ter sido um bom pai, mas ao menos não abandonou seu filho no meio do caminho. Tem orgulho de ter encaminhado a vida do filho ao seu lado, apesar de deixar transparecer uma dose de amargura por não poder ter dado a ele um destino menos bruto.
A voz de Mico, revelando quase todos os segredos de sua vida, ecoava no pequeno mercado expressando um pedido de atenção, um pedido de socorro. Mico, que também revelou não ter deitado com mulher alguma depois que perdeu Norma, tenta tocar as pessoas, procura atrair algum sorriso. No caixa, com o corpo envergado e uma das mãos nas costas, Mico ainda tenta mais uma vez se comunicar com a moça que o atende e diz: minha filha, com esses preços, a gente que nasceu pobre só pode morrer pobre mesmo. E saiu, em silêncio, sem dirigir uma só palavra ao filho.
BETE E RUI
Conheceram-se ainda no colegial. Vizinhos a vida toda, Bete e Rui já na infância nutriam especial olhar um para o outro. Mas o destino, ou melhor, Arnaldo, o pai de Bete, tratou logo de separar os desejos pueris. Em conluio com o comerciante do bairro, ele deu um jeito de unir Bete, ainda adolescente, e Orlando, o primogênito do tal comerciante.
Rui entrou em desespero. Mandou inúmeras cartas para Bete, apelou para todos os santos, fez promessas as mais estapafúrdias, mas, contra a truculência masculina, pouca coisa tem efeito. Ainda que Rui tenha tentado de tudo, incluindo nesse tudo um plano de fugir com Bete pelo mundo, nada adiantou. Ele não obteve êxito. Foram apanhados. E o destino, ou melhor, a truculência masculina, imperou.
Assim Bete casou-se com Orlando e teve lá seus quatro filhos. Como a vida não para, mesmo com o coração partido e a certeza de que levaria uma vida entristecida, Rui casou-se com Luiza e também constituiu família. A vida dá os seus balões. Rui, como era de se esperar, acabou se separando. Envelheceu recebendo, aos finais de semana, visitas dos filhos. Luiza casou-se novamente. Bete e Orlando viveram quase 40 anos juntos, até que Orlando, acometido por um câncer de próstata, morreu.
Rui, ao saber da morte de Orlando, mandou uma mensagem de pesar a Bete e disse estar à disposição, caso ela quisesse conversar. Bete, constrangida pelos filhos, foi duramente apreendida por, no dizer deles, nem deixar o corpo do pai esfriar. Com quase 70 anos e depois de ter dado a vida pelos filhos e de ter se casado com um homem que não a amava, ela mandou todos às favas e aceitou os braços envelhecidos e os olhos iluminados de Rui. Amaram-se. E causaram escândalo no bairro, pois não só se amaram como resolveram experimentar os desejos juvenis. Resolveram que iriam morar juntos e juntos desfilam, de mãos dados e sorrisos largos, todos os dias, pelas ruas do bairro. O amor deles é tão altivo, que os fuxicos são feitos com discrição. Rui e Bete não se importam com os olhares atravessados e com a rabugice dos familiares. É certo que sofrem com o abandono dos filhos, que não aceitam a união de ambos, mas Rui e Bete foram talhados no sofrimento desde os mais tenros desejos.
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Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
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