Por Marco Vasques, para Desacato.info.
ANTONIO
Antonio falava pouco. Para dizer a verdade, quase nunca seus lábios se abriam. Alguns familiares, os mais distantes, sequer conheciam a tonalidade da sua voz. Nunca se soube se foi um homem feliz ou triste, pois não expressava nenhuma paixão diante das coisas, dos acontecimentos e dos fatos. Não se envolvia em disputas apaixonadas. Nada de futebol, mulheres ou política. Quando o médico disse que tinha que operar o coração, olhou com sua calma habitual e acenou com a cabeça que estava tudo bem.
Até o andar era sisudo, porém, calmo e elegante. O curioso em Antonio é que tudo lhe caía muito bem. A barriga enorme lhe dava um ar imponente. Os cabelos brancos, um brilho indisfarçável. As roupas, sempre impecáveis, tornavam seu andar diferente do da maioria das pessoas. Homem remediado, mas tudo nele tinha um ar especial. Olhava para o mundo com complacência. Há, no bairro, quem veja em seu silêncio e seu asseio ares de esnobismo, mas Antonio nunca ostentou nada. Casa bem localizada e bonita, mas modesta. Carro confortável, mas simples e dos mais baratos.
Muitos achavam estranho todo aquele silêncio. Mesmo nos momentos festivos ou nos bares, pegava sua bebida, sentava num canto e ficava bebericando, observando as falas, os gestos e os movimentos. Era comedido com sua esposa, filhos e netos. Antonio era só calmaria. Não fazia barulho ao acordar, era o último a dormir e o primeiro a se levantar. Gostava dos afazeres domésticos e compartilhava todas as tarefas sem reclamar.
Quando a sua filha mais jovem morreu, todos se incomodaram com sua complacência, que muitos viam como indiferença, diante de fato tão abrupto. Luiza foi atropelada quando voltava da escola. Naquele dia Antonio pensou em ir buscá-la, pegar na sua pequena mãozinha e caminhar calmamente até chegar em casa. Contudo, o destino quis que ele fosse acometido por um mal-estar intestinal que o impediu de ir ao seu encontro. Como a escola era muito próxima, não viu problema em deixar Luiza, que já tinha 14 anos, ir para casa com os coleguinhas.
O acaso pode abrir a porta de qualquer casa, a qualquer momento. Famílias nascem e morrem há milênios e todas enfrentam seus demônios. Nascer e morrer são processos naturais. Antonio mais pensava que externava suas ideias. Não processou o rapaz bêbado que atropelou sua filha. Ninguém entendeu quando ele sumiu por mais de uma semana. Ninguém sabia de seu paradeiro, ninguém tinha uma pista de onde pudesse estar. Antonio foi encontrado, enforcado, numa árvore, próximo ao túmulo de sua pequena Luiza, com o corpo já desfigurado.
VANDERLEI
Homem com alma de fogo não leva desaforo para casa: esse era o pensamento primeiro quando alguma desavença ou trapaça surgia. Vanderlei é construído no trauma. Vive assombrado por abandonos. Nunca entendeu porque sua família deixou o sítio, lugar em que sua alma já se assentara, para viver na loucura ruidosa da cidade. A cidade dói no corpo de Vanderlei. Tudo nela é frenético e sua alma não comporta tal velocidade. No sítio, viajava nos cantos dos pássaros, adorava seus cachorros.
Vanderlei tinha um apelido na infância. Chamavam-no de Vanderlei Buçica, pois ele não podia ver um cão ou cadela abandonada que levava para casa. Tinha, ao todo, uns 12 cachorros. Quando sua mãe decidiu deixar a vida pacata do sítio e tentar uma vida melhor na cidade, ele teve que deixá-los para trás. E isso lhe casou imensa dor. A alma de Vanderlei só se entende com o mato e com os bichos. Ao ser arrancado do pequeno lugarejo onde aprendeu praticamente tudo com a natureza, sua alma enveredou em loucuras.
Vanderlei começou a beber e se meteu em inúmeras confusões. Tinha a seu favor a estatura corpórea e uma bruteza que carregava desde a infância. Ele bateu, apanhou, esfaqueou, usou toda espécie de drogas, vendeu um pouco de entorpecentes também. Enfim, seu corpo e seu espírito não se comunicavam com o ambiente urbano. Sua mãe, destituída de instrução e sempre atropelada pelo trabalho, pois tinha mais bocas para sustentar, não entendia como um rapaz tão bom, tão pacato, enfim, como seu filho dileto se transformara num homem tão bruto, tão rude e exasperado.
Para Vanderlei a vida é hoje. Não existe amanhã. Tudo é sôfrego, rápido, acelerado. Não há nada que o acalme. Não consegue se concentrar fora do ambiente rural. Não consegue trabalhar na linhas de produção das indústrias e seus passos não se encaixam no asfalto. Vanderlei é um bicho violento solto entre arranha-céus, asfaltos e luzes que cegam sua sensibilidade.
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Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
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