Por Marco Vasques, para Desacato.info.
BOMANI
O centro da cidade vive seu consumo frenético. Cada caminhante carrega um destino de desejos. Muitos, porém, carregam o peso dos desejos interrompidos, nunca alcançados além da imaginação. Alguns carregam a dor no caminhar; outros, nos vincos do rosto. Existem aqueles que expõem os pés rachados acompanhados de unhas imperfeitas. A observação das mãos também pode revelar durezas inimagináveis. Não existe regra. Cada corpo mostra a fratura à sua maneira.
Os olhos de Bomani se destacam na multidão apressada. O globo ocular estampa um branco enervado por pequenas raízes vermelhas que contrastam com sua pele negra e sua altura incomum. Em Bomani o sofrimento é expresso de baixo para cima, porque ele revela altivez ao olhar os transeuntes incólumes aos seus pedidos. Ele canta. Na verdade, não canta, apenas gesticula os maxilares e dança.
Com um aparelho, uma caixa de som e um microfone, coloca ao fundo a música “You make me feel so young”, cantada por Frank Sinatra, e faz sua coreografia desajeitada. Os braços abertos para um horizonte entupido de pessoas ocupadas com suas lidas; o sol matinal sob a cabeça; os lábios em movimentos sensuais; os dentes, branquíssimos, escancarados; o olhar abraçando o branco das nuvens e o azul do céu; a expressão vívida de quem dança um baile desejado, enfim, Bomani parece estar rezando porque imprime, em seu espetáculo, toda a força que a necessidade exige.
À sua frente, uma caixa de papelão recebe os trocados de um e outro vivente desapressado. Imigrante haitiano, ele atravessou mundos, mares e guerras, e fica, parado, cantando sob o olhar desconfiado da multidão apressada. Exala uma espécie de luz inexplicável, apesar de aparentar um desespero em sua vibração. Sua voz falsa, seu gesto desajeitado, sua luz física e seu espírito tomado pela performance são tão vivos, tão providos de força, que por alguns minutos nossos corpos são invadidos por um espanto, por um silêncio, por um desconserto, enfim, por sentidos incapazes de tradução verbal. Em sua falsificação, Bomani se faz a única verdade fixa numa correria matinal de sábado.
ROMILDA
Não tem mania de homem que Romilda não conheça. São quase vinte anos abrindo as pernas para tudo que é tipo de gente para poder alimentar os filhos. Romilda costuma dizer que ser puta é uma danação. E também que só conheceu, em todos os anos de atividade, duas mulheres que realmente gostavam da profissão, pois não precisavam se submeter a essa condição de vida, já que eram mulheres com instrução, dinheiro e, diziam elas, muito bem casadas.
A regra, bradava Romilda, é foder por necessidade mesmo, o que torna a coisa um suplício, uma violência. Mas quem tem fome necessita labutar. Se nada fizesse, o que seria de sua prole? Romilda é mãe de cinco filhos. Severo, o pai das crianças, resolveu ganhar o mundo com sua amiga Roseli. O engraçado é que Romilda não o culpa, pois, segundo ela, foi o feitiço do rebolado e o sorriso de Roseli que encantaram seu homem. Se pudesse, pensava, mataria Roseli, mas antes arrancava todos os seus dentes para que ela chegasse na presença do diabo, como ela, Romilda, se apresenta aos seus clientes.
O sonho de Romilda é colocar uma dentadura. Perder o sorriso é uma desgraça, falou para Júlia, uma amiga que fica em um semáforo à frente do seu. Romilda tem quase 50 anos, não tem todos os dentes da frente e se veste com roupas bastante apertadas, que, para alguns, não servem para seu corpo flácido. Já tentou de tudo. Foi cabeleireira, manicure, faxineira, catadora de latas e funcionária em um estacionamento de carros. O salário nunca dava para tudo e ela acabava complementando a renda saciando homens solitários ou tarados sem limites. Decidiu, faz algum tempo, trabalhar apenas na rua, pois a carência, a solidão e as inúmeras perversões masculinas sempre se renovam.
E foi nessa vida ríspida e cercada de olhares insidiosos que ela conheceu Eduardo. Ele chegou sem muitas palavras e se esgueirou em seu olhar. Ele a procurou mais porque estava na mais absoluta solidão. Conversaram, trocaram olhares. Eduardo pagou uma pequena quantia e foi embora. Voltou na semana seguinte, conversaram mais um pouco já esboçando alguns sorrisos. Romilda falou de Severo e seu sumiço, dos filhos, da vida dura. Eduardo falou da solidão do seu quarto de pensão, da tristeza de ter que cozinhar todos os dias e de não ter com que dividir a mesa e o almoço.
Dois meses se passaram e Eduardo nunca esboçou um movimento que visasse tocar o corpo de Romilda. Ela confessou a ele o desejo de refazer os dentes quando ele perguntou qual o motivo da escassez de sorrisos. Ele, num tom bem humorado, disse a ela que o amor não pode esperar por dentaduras ou implantes. O amor é urgente. Tornaram-se amigos e, depois, amantes. Eduardo alugou uma casinha onde mora ele, Romilda e os cincos filhos. Há sorrisos no pequeno casebre, do amanhecer ao anoitecer.
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Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
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