Biografias interiores para geografias imperfeitas (IV). Por Marco Vasques.

Por Marco Vasques, para Desacato.info.

CLODOALDO

Cuidar do pai e da mãe, ambos adoentados e envelhecidos, nunca foi um peso para Clodoaldo. Ele sempre atuou, nesse campo, com a devoção de um filho que foi amado, acariciado e muito bem cuidado por Alda e por Clóvis.

A vida dura de pedreiro fez calos em suas mãos, marcou seu rosto com a exposição ao sol, enrugou sua testa, mas nunca arrancou de seus olhos o brilho pela vida. Clodoaldo, casado com Fátima, com quem teve três filhos, nutria sabor especial pela existência.

Nunca foi efusivo a ponto de expressar uma felicidade notável, mas tampouco era um taciturno rabugento a reclamar dos obstáculos que a vida impõe. Sempre encarou tudo com naturalidade, pois a vida — ouviu de um amigo letrado — é perigosa, instável e cheia de vãos. Além dos pais, dos filhos e de Fátima, Clodoaldo tinha um prazer imenso na pesca. Nunca a praticou profissionalmente. Era amador mesmo, daqueles que amam o negócio.

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Aos 47 anos, dividia sua vida assim: construir casas pela manhã e, pela tarde, cuidar dos pais com a ajuda da esposa, dedicar algum tempo aos rebentos pela noite e amar Fátima com todo o coração. Tinha uma devoção por ela. Era mesmo enlouquecido pelo cheiro, pelo andar e pelos cabelos dela. Acontece que a vida é feita de vãos inesperados: sua mulher, cansada da rotina dos últimos 20 anos, decidiu se amasiar com Roberto, um amigo distante de Clodoaldo.

Em princípio, apesar dos boatos, Clodoaldo não deu importância. Pensou na solidez de sua relação com Fátima e decidiu não dar ouvidos à vizinhança. Ocorre que ela não conseguia mais disfarçar. Não conseguia mais tocar no corpo de Clodoaldo, porque estava apaixonada por Roberto.

E foi assim que Clodoaldo passou a fumar mais, beber mais, olhar para a doença dos pais com menos tolerância, brincar menos com os filhos, e, para espanto dos amigos mais próximos, sumir das habituais pescarias do final de semana. O homem se encolheu numa tristeza tão grande que seu coração explodiu sem dizer dia nem hora. Infartou. Morreu como um passarinho atropelado, sem poder se despedir da existência. Infartou no dia em que estava decidido a perdoar Fátima. Inclusive, caso ela voltasse a alegrar seus dias, estaria disposto a dividi-la com Roberto. Pelo menos foi o que disse Claudinha, sua filha mais velha, durante o sepultamento do pai.

MATHEUS

Combater o ódio com ódio é uma premissa que nunca se ancorou no raciocínio de Matheus. O jovem admirava pensamentos pacifistas e, embora ateu, se tivesse que adotar algum horizonte religioso, seguramente preferiria os monges e seus silêncios. Contudo o Brasil virou uma fábrica de perversões. A razão e a sensibilidade foram destruídas a golpes de palavras vãs, muita notícia falsa e uma fé absurda na morte.

Por isso, Matheus, agora alcunhado pelos noticiários de incendiário, adotou prática incompatível com seus desejos de paz. Não suportando mais tanta asneira adentrando sua vida, resolveu atacar toda residência que estampasse em suas janelas, portões, entradas e varandas a bandeira do Brasil. No início foi só raiva mesmo; depois Matheus começou a tomar gosto pela coisa. Ele sempre tomou cuidado para atacar somente a insígnia, queimar as quatro cores num amarelo-âmbar que se esvairá no negrume da fumaça.

Tinha um prazer corrosivo nessa destruição. Aos poucos os jornais começaram a noticiar a existência de um maníaco que adentrava casas, subia em prédios e, para surpresa geral da nação, até escalava os mastros de empresas e das praças públicas, apenas com o objetivo de tocar fogo na bandeira nacional. Há crime previsto na legislação para punir tal insulto. Contudo, o incauto era inteligente e pouco rastro deixava.

Após muito estudo, muita especulação, movimentação da polícia, da imprensa, de políticos, de empresários (e, pasmem, até da igreja), foi elaborada uma operação especial para capturar o recalcitrante ateador de fogo de bandeiras. A perspicácia de Matheus atraiu muita gente, pois pode toda uma nação devotada querer capturar um simples ateador de fogo?

Foram meses de perseguição sem sucesso. É preciso dizer que Matheus era apenas um garoto insatisfeito com o que vinha acontecendo em seu país e que seu maior crime foi expressar essa insatisfação provocando os bichos mais irracionais de nossa sociedade, ou seja, os homens de bem que estampam em suas casas bandeiras com cores que já não são mais cores, mas a face da morte, a face da burrice, a face da cafonice.

Alguns homens se reuniram e enfeitaram toda uma rua com a bandeira, agora objeto de obsessão de Matheus. Ao escurecer, ele adentrou a tal rua e foi capturado. Matheus foi assassinado, esquartejado e pintado de verde, amarelo, azul e branco, e, depois, queimado numa enorme fogueira em praça pública, com aplausos das autoridades e de grande parte dos moradores da cidade.

Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

 

 

 

 

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