Por Marco Vasques, para Desacato.info.
MADALENA
O rosto de Madalena tem o peso de uma escultura de mármore. Não uma escultura qualquer. Tem a feição de uma escultura milenar. Os olhos de Madalena são pedras enormes que pesam no corpo de quem tiver a coragem de mirar seus pedidos de socorro. Madalena dorme na calçada e vive abraçada por seu cão fiel, que lambe suas têmporas pela manhã como se chamasse sua dona para o café matinal. A verdade é que faz anos que Madalena não sabe de calores nem do calor de um xícara de café ao abrir os olhos com dificuldade. Ninguém conhece a voz de Madalena, pois ela está sempre abaixo do horizonte dos homens e das mulheres indiferentes ao peso de sua face.
Ela está sempre sentada e nunca encara os passantes. Seus olhos-pedras estão sempre enterrados no chão. Sua voz é sempre um grunhido pedinte; nunca pronuncia uma frase por completo porque jamais alguém se ajoelhou, jamais alguém postou o semblante na altura de seu rosto para ouvir suas experiências, suas dores, seus acontecimentos internos. Suas mãos são destituídas de carícias. Toda humanidade que ela recebe são as lambidas sucessivas de seu cão, igualmente maltratado e com um olhar vazado de uma tristeza de abandono.
A união de Madalena com o animal é um explosão de abandonos e solidões. O que abriga o corpo de Madalena é um amontoado de papelões de eletrodomésticos que ela nunca usará. Por cima, apenas um plástico transparente que serviu como embalagem de cobertores e edredons que jamais cobriram seu corpo. Tudo em Madalena é superfície. As instituições sociais a veem como um número, os órgãos municipais sequer sabem de sua existência e as pessoas, quando olham para ela, veem uma sombra, uma silhueta, um naco de coisa borrada sem importância.
As pedras existentes nos olhos de Madalena estão cheias de areia, concreto, xepas de cigarro, escarros, toda espécie de lixo e sujidades que rastejam nos chãos das cidades. Suas costas seguram o muro umedecido pela chuva fina. Seus pés exibem meias velhas, sujas e furadas. Ela é um mundo sem lugar nos outros mundos. Quando caminha, carrega a indiferença nos ombros. No seu andar caminha a morte de todos os que a ignoram. As pedras existentes nos seus olhos pesam em minha carne e em meu espírito. Ontem, parei no centro da cidade e beijei os olhos de Madalena.
ALOÍSIO
Aloísio foi o típico homem do interior. Viveu para o exterior, viveu para a natureza, para a física. Nunca foi dado a questões metafísicas. Nem nas questões religiosas se intrometia. Esse negócio de visitar a paróquia era coisa para sua mulher e outras beatas. Nunca deu ouvidos às ameaças do pároco. Seu negócio era a roça, as vacas, as cabras e a pesca. Foram mais de 60 anos lendo ventos, marés e temporais. Aloísio aprendeu a contar as horas olhando para a localização do sol.
Nunca viajou, não fez fortuna, mas sempre viveu bem. Tinha terra suficiente para plantar milho, mandioca, café, banana, laranja, amendoim, feijão, enfim, de um tudo, como costumava se orgulhar. Até o sabão que usava era feito por Carmen, a esposa a quem dedicou amor e fidelidade por mais de 55 anos. Nem quando Carmen morreu Aloísio se desesperou. É a vida, disse, conformado. Homem de nenhum excesso. Não teve muitos filhos, como seus irmãos. Nunca foi abatido por um porre porque não ultrapassava as duas cervejas do final de semana. Também não comia em exagero. Aloísio passou quase toda a vida sem solavancos.
Contudo, aos 88 anos, Aloísio conheceu a desgraça. João Carlos, o filho mais novo, desferiu cinco facadas em Manoel Carlos, seu irmão. Toda a quizília aconteceu porque ambos não concordavam com a partilha das terras da família. Ao ficar sabendo, Aloísio se sentiu morto, ferido no mais íntimo de sua alma, porque aquilo para ele era inconcebível. Havia terra e lugar para ambos, disse, não havia necessidade de brigas.
Aloísio esperou Manoel Carlos sair do hospital. Chamou os dois filhos para um reunião. Contrariados, Manoel e Carlos foram. A mesa posta de forma impecável. Aloísio nada disse. O três se sentaram, comeram num silêncio de doer. Aloísio tinha os olhos marejados de dor e lágrimas. Finda a refeição, Aloísio, Carlos e João se estatelaram sobre a mesa, mortos. Até hoje, no pequeno bairro da cidade rural, ainda se especula que diabos teria acontecido com a família Carlos da Silveira.
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Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.
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