Se a Amazônia Legal fosse um país, ela seria o 7º maior do mundo. São 5 milhões de km² que representam quase 60% do território do Brasil. O tamanho não impressiona apenas em área: ela reúne de 10% a 15% da biodiversidade do planeta e engloba nove estados brasileiros socialmente e culturalmente diferentes. É possível criar um único modelo de economia para tudo isso? A resposta não é simples.
Entre os primeiros passos, está a criação da inédita Secretaria Nacional de Bioeconomia por parte do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), voltada exclusivamente para o tema, vista com bons olhos pelos especialistas. Carina Pimenta, escolhida para chefiar a área, ainda não está formalizada no cargo, mas levará para Brasília a experiência adquirida à frente do Instituto Conexões Sustentáveis (Conexsus), ONG que ajudou a fundar em 2018. Outro passo importante para o governo federal, segundo especialistas, é entender como os vários ministérios vão conversar para garantir o desenvolvimento sustentável da região.
O pesquisador Salo Coslovsky, apesar de radicado na New York University, nos Estados Unidos, está sempre mergulhado em pesquisas para entender como destravar a bioeconomia brasileira. Inclusive, é um dos idealizadores do movimento Amazônia 2030, que esquadrinhou a região em cinco partes (veja todas elas em mapa abaixo): Amazônia florestal; Amazônia florestal sob pressão; Amazônia desmatada (originalmente era florestada, mas já perdeu grande parte da sua floresta); Amazônia não florestal (grande maioria ocupada por vegetação de Cerrado e campos naturais); e Amazônia Urbana, onde estão as cidades com todas as suas demandas.
Beto Veríssimo, que é um dos autores desse estudo que dividiu a Amazônia por zonas – “As Cinco Amazônias, base para o desenvolvimento sustentável da Amazônia Legal” –, e também é co-fundador do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), defende diferentes modelos de mercado respeitando as particularidades de cada um desses pedaços do bioma.
No caso específico da Amazônia Florestal, os autores listam uma série de recomendações que são consideradas essenciais para que a zona entre na rota consolidada do desenvolvimento sustentável. A primeira delas é priorizar a economia que vem da floresta, mas existem outros sete tópicos:
- Promover a oferta de créditos de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+);
- Implementar as Áreas Protegidas existentes;
- Criar Áreas Protegidas nas florestas públicas não destinadas;
- Avaliar impacto das obras de infraestrutura;
- Fortalecer o transporte fluvial;
- Investir em energia renovável;
- Expandir acesso à internet banda larga.
De acordo com o trabalho da iniciativa Amazônia 2030, no caso da zona da Amazônia Florestal, as políticas públicas precisam priorizar a conservação das florestas em conjunto com os ganhos sociais e econômicos – a chamada bioeconomia. Para isso, as cadeias produtivas tradicionais, como a do açaí, das frutas tropicais e da castanha-do-pará, assim como as de peixes e produtos agroflorestais (cacau e pimenta-do-reino), devem ser priorizadas.
No entanto, pelo menos até o momento, os dados compilados para o estudo apontam que a Amazônia Legal possui uma participação ínfima no mercado global de tais produtos (inferior a 0,2%), apesar de ele estar em expansão e já gerar uma receita mundial acima de US$ 170 bilhões por ano.
A parte da Amazônia florestal precisa, então, segundo os autores, melhorar a infraestrutura sem promover a abertura de novas estradas no modelo tradicional, já que são projetos que quase sempre estimulam a ocupação desordenada, conflitos sociais e desmatamento
. As soluções de acesso e de logística devem estar apoiadas na ampla rede de rios navegáveis da região com melhorias no transporte fluvial.
Outros modelos
Em outro estudo realizado pelo mesmo grupo, “O Paradoxo Amazônico” toca em mais um ponto central. O país, para Veríssimo, não pode desperdiçar as oportunidades que o mercado de carbono proporciona atualmente para manter a floresta em pé.
Há, ainda, a chance de aproveitamento de milhares de km² que existem na Amazônia hoje – e que fazem parte da área classificada como Amazônia Desmatada – totalmente passíveis de serem regenerados com ciência e vontade política.
Já para a área da Amazônia Florestal sob Pressão também há uma série de ações que precisam ser direcionadas, como mostra a atual crise humanitária na Terra Indígena Yanomami: entre elas, está o combate ao garimpo ilegal de ouro e a extração ilegal de madeira. Do lado mais econômico, os cientistas cobram a expansão dos sistemas agroflorestais e da agropecuária de baixo carbono.
Enquanto isso, nas cidades, na chamada Amazônia Urbana, onde vivem quase 22 milhões de pessoas – o triplo da população que vive nas zonas rurais – o cuidado precisa ser centralizado, informam os pesquisadores, em um urbanismo sustentável, além da preocupação com coleta de lixo, abastecimento de água e saneamento básico.
Por volta de 80% dos postos de trabalho estão nas cidades. No entanto, muitos municípios não apresentam arborização adequada, em comparação com outras regiões do Brasil. Em suma, as várias amazônias apenas compõem o quadro complexo da região, que precisa ser encarado de tal forma para que soluções possam começar a se consolidar nas cinco zonas amazônicas.
Veríssimo lembra, ainda, que a região dispõe de um “bônus demográfico” que “está sendo desperdiçado”: existem mais pessoas economicamente ativas hoje, com idades entre 15 e 64 anos, do que em relação à quantidade de crianças e idosos.
Produtores locais empoderados
Para além da necessidade de criação de modelos específicos para cada um dos cinco macrossetores da Amazônia e dos pontos-fortes já encontrados na região, Coslovsky defende que o empoderamento dos produtores locais é um fator mal-estruturado no país.
“Ficaria contente em ver uma política que fortalece a ação coletiva dos produtores, seja através de cooperativas ou associações e âmbito local como entidades de maior porte, com escopo estadual e até mesmo federal. Um dia, quem sabe, podemos trabalhar de forma coordenada também com nossos vizinhos amazônicos como Bolívia, Peru, Colômbia, e assim por diante”, afirma o pesquisador.
Coslovsky cita o exemplo boliviano porque existem dados e números que embasam essa comparação. A Bolívia não apenas conseguiu certificar a sua produção de castanha-do-pará em mercados do primeiro mundo – por isso, tornou-se a maior produtora mundial – como também tem um poder de beneficiamento grande. Ela importa matéria-prima do Brasil, processa em suas indústrias e, depois, exporta. Enquanto isso, deste lado da fronteira, a produção de castanha caiu em média 4,3% ao ano entre 2010 e 2018 – dados não contaminados pela pandemia.
O Brasil produziu 34,2 mil toneladas de castanha em 2018. Pela contabilização do antigo Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, as exportações de castanha-do-Brasil geraram uma receita de US$ 21 milhões em 2019. Os principais compradores são Peru e Bolívia, países que respondem por 52% da quantidade exportada, e que estão cumprindo o papel deles ao desenvolverem os elos da cadeia de produção.
Detalhe importante: o total produzido de 2018 é pequeno se for comparado com um estudo de 2017 do Centro de Sensoriamento Remoto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O grupo, depois de um mergulho sobre várias cadeias produtivas amazônicas, estimou que a produção de castanha-do-Brasil na região pode chegar a 3,7 milhões de toneladas anuais, um aumento de mais de 10.000% em relação ao contabilizado há cinco anos.
“Há uma tentação muito grande, tanto por parte de produtores como de políticos mais da velha guarda, de buscar e/ou oferecer subsídios, isenções ou proteção contra as forças de mercado. Essa é uma armadilha que dificulta ou até mesmo impede o aprimoramento produtivo, a inovação e, em última instância, a agregação de valor de forma continuada”, esclarece Coslovsky.
O engenheiro florestal Mariano Cenamo, do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Idesam), empreende há décadas com a biodiversidade amazônica e tem na ponta de língua as áreas que precisam ser atacadas para que a produção a partir da floresta seja uma realidade. Para ele, assim como também defende Salo Coslovsky, a melhor articulação entre os participantes da demanda é central: “temos que focar em um investimento pesado em empreendedorismo. E não se trata apenas de incentivar pesquisas e inovação, mas realmente buscar empreendedores comunitários, empreendedores indígenas e empreendedores dentro das academias”, disse Cenamo.
A história do próprio Idesam, criado por Cenamo no início do século, serve para ilustrar o ponto de vista do engenheiro florestal paulista que virou amazônida por opção. No ano passado, o projeto-piloto pioneiro de produção de café orgânico no município de Apuí, pressionado pelo desmatamento, ganhou R$ 11 milhões de investidores.
A região onde antes trabalhavam 50 famílias na produção cafeeira, agora, com o novo aporte, foi expandida para outras 250. Escoar o café amazônico faz parte da atuação da organização não-governamental Idesam, que age sobre toda a cadeia cafeeira e na preservação do meio ambiente há mais de dez anos.
Por causa da sua experiência, Cenamo não tem dúvida em afirmar: “um ponto central para fortalecer políticas de bioeconomia na Amazônia é o investimento pesado em pesquisa. Não existe a mínima condição de tornarmos nossas cadeias da bioeconomia competitivas se não investirmos pesado no desenvolvimento de produtos e na melhoria da cadeia de processamento e de extração em campo, passando pelas etapas de beneficiamento e de transporte. O fortalecimento do sistema de crédito também é vital”, disse.
Para Cenamo, também, não se conseguirá avançar muito se o investimento privado não for convidado – e aceitar – entrar no jogo. “Você tem experiências de sucesso como por exemplo, em Singapura, onde eles fizeram um fundo de desenvolvimento e montaram um grande edital voltado para novas tecnologias. Cada real aportado pela iniciativa privada era acompanhado de R$ 2 vindos do fundo. O BNDES também chegou a testar alguns mecanismos no ano passado, mas é algo que precisa ser ampliado radicalmente.”
Ainda de acordo com o fundador do Idesam, assim como em qualquer outra área da economia, o desenvolvimento da chamada bioeconomia amazônica pode ser feito de duas formas. Ou com inclusão e redução de desigualdade social ou, então, de forma tradicional com alguns setores concentrando renda e, dessa forma, aumentando a pobreza. “O olhar sobre a bioeconomia na Amazônia tem que passar, de forma muito contundente, pela lente social”, afirmou.
Para isso, complementa Coslovsky, a articulação, mais uma vez, tem que ser uma palavra de ordem: “será muito importante existir um mecanismo de coordenação entre os órgãos públicos interessados em apoiar a bioeconomia. Ouvi que onze secretarias na Esplanada dos Ministérios tem alguma atribuição relacionada com o tema. Um pouco de concorrência e sobreposição entre esses órgãos pode ser até benéfico, mas um pouco de coordenação, e um mecanismo que subordina a ação do governo aos interesses legítimos do setor, devem ser cruciais para o sucesso dessa agenda”.