Por Idelber Avelar.
Leopoldo Marechal é o único dos grandes escritores argentinos de sua geração a alinhar-se com o peronismo. Pagou por isso um preço amargo. Adán Buenosayres (1948), uma obra-prima do romance latino-americano, foi recebida com burlas, ataques e desprezo. Com poucas exceções, o silêncio sobre a obra se manteria inalterado durante quase duas décadas, até que a própria dinâmica de revalorização do peronismo entre a intelectualidade literária, assim como a publicação de algumas obras diretamente tributárias de Adán Buenosayres – como Rayuela (1963), de Julio Cortázar – propiciassem a releitura. Verdade seja dita, de todo o grupo de escritores associados à elite intelectual argentina, o então jovem Cortázar, ainda antiperonista, foi o único que lhe dedicou, logo após a publicação, um artigo elogioso.
A hostilidade com que se recebeu Adán Buenosayres foi tanto maior quanto mais diretos foram os seus vínculos, nos anos 20, com o grupo que posteriormente fundaria a revista Sur, o epicentro do antiperonismo literário. Marechal foi colaborador das duas principais revistas literárias do período heroico da vanguarda argentina, Proa (1922-1926) e Martín Fierro(1924-1927). Aquela foi inicialmente dirigida por Jorge Luis Borges, Ricardo Güiraldes, Alfredo Brandán Caraffa e Pablo Rojas Paz, os dois primeiros peças chave dos embates literários daquela década. Em Martín Fierro, dirigida por Evar Méndez, colaboraram, além de Borges e Güiraldes, Macedonio Fernández, o pintor Xul Solar, o poeta Oliverio Girondo e outros membros do núcleo que viria a definir o cânone da literatura argentina moderna. Marechal, cujo segundo poemário, Días como flechas (1926), foi saudado entusiasticamente pelos companheiros martinfierristas, seria uma das figuras mais destacadas naquele momento nascente da vanguarda. Sua adesão ao peronismo, em 1945, sepultaria qualquer possibilidade de que se reatassem os contatos e o diálogo com os ex-interlocutores. A dedicatória de Adán Buenosayres – “a meus camaradas martinfierristas, vivos e mortos, cada um dos quais bem pode ter sido um herói desta limpa e entusiasmada história” – aparece na primeira edição, de 1948, e é suprimida na edição definitiva, de 1966.
Quando saiu Adán Buenosayres, Marechal era conhecido como o autor de oito poemários, mas ainda não havia publicado um romance. Dedica à obra mais de vinte anos de trabalho. O resultado são 740 páginas de uma descida aos infernos da urbe moderna na melhor tradição do Ulysses joyceano. Composto de sete livros, Adán Buenosayres se divide em duas partes: os cinco primeiros livros relatam, em terceira pessoa, os acontecimentos de dois dias na vida de Adán (28 e 29 de abril, quinta e sexta, de um ano indeterminado na década de 1920), do seu despertar metafísico até o encontro com Cristo na noite de sexta-feira. Os dois últimos, o “Caderno de Capas Azuis” e a “Viagem à escura cidade de Cacodelphia” são narrados em primeira pessoa e apresentados como manuscritos deixados por Adán a Marechal. O “Caderno” é a autobiografia de Adán, de sua infância até os dois dias da experiência iniciática, enquanto que a “Viagem”, peça literária impressionante e de leitura autônoma, narra o sábado posterior à experiência, a partir do esquema das nove unidades descendentes do Inferno de Dante.
Muito já foi dito sobre os intertextos bíblicos, homéricos e dantescos da obra de Marechal. Eles oferecem as balizas para se compreender o motivo central da obra, a viagem, entendida como purificação, regresso à casa e mergulho nos infernos. O Ulysses de Joyce lhe proporcionaria não só a ideia da peregrinação pela cidade ao longo de um dia como microcosmo da existência moderna, mas também uma série de técnicas que Marechal utilizaria como ninguém na literatura argentina: o monólogo interior, a superposição de temporalidades, a paródia do herói épico, a criação de neologismos a partir de raízes linguísticas distintas, a sintaxe serpenteante recheada de anacolutos, a recriação da linguagem chula da sarjeta urbana.
Mas Adán Buenosayres é também, e principalmente, metaficção. Sem muitos disfarces, estão nela representados os seus colegas de aventura martinfierrista: o cego Luis Pereda é Borges, condenado ao Inferno da Ira por inventar vocábulos como “balaustradumbre” ou “baldosedades”, paródias dos barroquismos presentes nos três primeiros livros de ensaios de Borges, depois renegados. O astrólogo Schultze, o demiurgo com quem o protagonista empreende a viagem a Cacodelphia, é o pintor Xul Solar. O filósofo Samuel Tesler, que desvenda o caráter diabólico da ciência moderna, é o poeta Jacobo Fijman. Bernini é o escritor e historiador Raúl Scalabrini Ortiz, autor do clássico El hombre que está solo y espera (1931). A própia Buenos Aires na qual tem lugar a peregrinação é literária por excelência: com a exceção da Viagem a Cacodelphia, todo o romance transcorre em Villa Crespo, território de orillas por excelência, as margens urbanas nas quais acontecem as lutas de faca que povoam a imaginação borgeana.
De todas as tristes lacunas de tradução de literatura argentina no Brasil, nenhuma é maior que Adán Buenosayres. De recepção inicialmente marcada pela hostilidade ao peronismo com o qual se alinhou o autor, ela é hoje reconhecida pelas várias vertentes literárias do país como obra magistral e imprescindível. Nela estão antecipados escritores tão distintos como Cortázar e Lamborghini, Piglia e Perlongher. A ausência de tradução é tão mais lamentável pelo fato de que a obra-prima de Marechal não é de leitura fácil para quem não domina o castelhano falado no Rio da Prata. Editoras brasileiras, já são 64 anos de atraso.
Fonte: http://revistaforum.com.br/