Por Djamila Ribeiro.
Se estivesse viva, Simone de Beauvoircompletaria 110 anos na terça-feira 9. Mais do que lembrar da filósofa e escritora francesa, acredito ser necessário aprofundar-se em suas obras. Como estudiosa das obras de Beauvoir, incomoda-me uma espécie de fetichização em torno dela.
No geral, todo mundo conhece algum livro ou citação mais famosa, mas raramente as pessoas a leram de fato. Tenho a impressão de que, para parecer cool ou feminista antenada, todo mundo a cita, mas com superficialidade. E considero isso ruim.
Obviamente, ninguém tem a obrigação de saber responder como a filósofa faz a tradução francesa do Dasein, de Heidegger, ou ter lido Hegel para entender como ela empreende a dialética do “senhor e do escravo” para pensar a categoria do outro.
Não é disso que se trata, com certeza. Só quem estuda profundamente a sua obra ou cursa Filosofia saberá responder e o ponto não é esse. A questão é evitar que suas obras se tornem produtos fáceis e palatáveis, quando seu pensamento não tem nada de palatável.
Ser acessível, sim. Ser facilmente deglutido, não. Essa é a questão central para mim. Há uma preguiça em entender mais respeitosamente o papel dela como pensadora por parte de quem tem acesso à informação e ao conhecimento.
Beauvoir não pode simplesmente ser convertida em frases de camiseta ou memes. Deve ser lida e entendida em sua complexidade. Tampouco pode ser alvo de feministas “cool bacaninhas”, sem compromisso com seu pensamento afiado e crítico.
Ou mesmo ser objeto de “tretas” em grupos feministas, nos quais o objetivo é ganhar uma discussão boba ou “sequestrá-la” para determinadas vertentes, e não estudar seu pensamento de forma honesta e compreender o quanto O Segundo Sexo é uma obra existencialista. Somente dizer que seu legado é incrível ou necessário, sem explicar os motivos, não nos ajuda.
É necessário porque Beauvoir rompe com a neutralidade epistemológica ao escrever O Segundo Sexo e pensa uma filosofia da condição feminina. É incrível o fato de ter escrito o livro Djamila Boupacha, relatando os horrores que essa argelina passou ao ser violentada pelo exército francês à época da invasão francesa na Argélia.
Não dá para transformar Beauvoir em broches, mas não se empenhar em ler Por Uma Moral da Ambiguidade. Muito se fala de O Segundo Sexo, e com razão trata-se de um livro monumental, mas é também necessário ler outras obras dela, além de conhecer sua literatura e seus diários.
No emocionante Cartas a Nelson Algren, baseado em correspondências trocadas pelos amantes por décadas, vemos ali uma Beauvoir apaixonada, humanizada, muito longe da mitificação que lhe impuseram.
É preciso conhecer o magistral As Belas Imagens, publicado no Brasil em 1961, que nos instiga a ver para além das imagens que as pessoas criam de si mesmas. A Mulher Desiludida e A Convidada são igualmente indispensáveis, assim como Os Mandarins, que lhe rendeu o Prêmio Goncourt.
Meu ponto é a importância de não se ficar só nisso ou em discussões de quem pensa que inventou a roda, pelo fato de não conhecer as bases de pensamentos importantes e os caminhos já percorridos.
Tenho uma grande biblioteca de livros da autora, todos comprados em sebos a preços acessíveis. Entendo que a maioria não tem acesso, mas quem tem deveria se comprometer com mais responsabilidade com a criticidade da autora.
É fundamental ressignificar ou reapropriar o sentido de conceitos importantes de seu pensamento, para não cairmos numa espécie de “ti-ti-ti da filosofia”, focado nos casos que ela teve ou como era o seu relacionamento com Sartre. Tratá-la como “modinha” nega a força de seu pensamento, tão atual para pensar a condição feminina. Simone de Beauvoir merece mais.
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Fonte: Carta Capital.