O continente africano, em toda a sua diversidade, possui expressões que estão diretamente ligadas ao cotidiano e a própria tradição de suas sociedades. São incontáveis às expressões em que música, dança e poética constroem e recontam as memórias de diferentes grupos étnicos, transmitidas durante gerações. A ancestralidade e a expressividade africana se manifestam em torno de uma literatura que “cozinha” as letras e apresenta uma poética particular, onde as histórias são compartilhadas por um modo específico de enunciação.
Enviado por Melina Sousa da Rocha via Guest Post para o Portal Geledés.
São numerosos os gêneros que exigem uma enunciação declamada, ou salmodiada ou cantada. Certamente, não é por acaso que, na maioria das sociedades africanas, mais de ¾ da produção verbal de tradição enuncia-se sob a forma de cantos ou, em todo caso, de discursos que se apoiam num acompanhamento musical. A isto convém acrescentar a gestualidade e a dança. E é toda esta arte que “cozinha” a palavra.
(Derive, pg.11)
Cabo Verde é um país insular localizado no Oceano Atlântico. É um arquipélago formado por 10 ilhas e foi idealizado pelos colonizadores devido a posição estratégica para o comércio de escravos. Os Portugueses colonizaram e iniciaram de maneira cruel, o povoamento escravista que do continente. De maioria mestiça, o país possui cerca de 531.000 habitantes conforme o censo de 2013, distribuídos entre as 9 que são ocupadas.
As mulheres são a maioria da população (52%) e têm uma expectativa de vida maior que a dos homens.
As Batucadeiras: O “batuko” e o feminino em Cabo Verde
O “Batuko” é uma manifestação cabo-verdiana que incorpora música, dança e literatura. Herança dos africanos no arquipélago, o batuque é provavelmente a literatura e a expressão musical mais antiga de Cabo Verde trazida pelos africanos escravizados e que desenvolveu características próprias em Cabo Verde. No intuito de exterminar a identidade africana no país, os colonizadores portugueses com o apoio da Igreja, perseguiram e proibiram o batuque por anos. Tendo nos anos 50, quase a extinção dessa tradição. A perseguição também se deu pelas características da dança, que tem fortes elementos de sensualidade em sua corporeidade. Com a Independência de Cabo Verde nos anos 90, houve um movimento político e artístico de resgate das expressões africanas, reconhecendo então a importância e o valor cultural, histórico e identitário do batuko aos cabo-verdianos. Apesar de ser considerada uma dança sensual e provocativa, o batuko tem origem e ligação com a organização familiar e era apresentado em ocasiões especiais como em dias de santos católicos (religião com maior número de adeptos em Cabo Verde), casamentos, batizados e outras festas.
Da realização do batuque ou batuko
O batuko se realiza por meio de um grupo de percussionistas (batukaderas) – vocalistas (kantadeiras de kumpanha). São mulheres organizadas em semicírculo (terreru) que prendem entre as coxas um pedaço de tecido enrolado e revestido com plástico ou algum material parecido e, executam as cantigas conforme a cantadeira solista (kantadera profeta). O ritmo também pode ser acompanhado por palmas conforme a proposta da performance. O som produzido pela percussão recebe o nome de chabeta e varia conforme o momento e a modalidade da expressão.
O Canto é puxado pela kantadera profeta e repetida pelas demais. São duas modalidades existentes, a sambuna e o finaçon, todos relacionados a vivência das mulheres Cabo-Verdianas. A primeira possui um caráter lúdico e rítmico, onde as mulheres brincam, ironizam e se divertem com temas diversos. Enquanto a segunda versa sobre temas cotidianos que cerceam as mulheres cabo-verdianas, tecendo histórias de vida e do cotidiano e suas afetações. O finaçon é a modalidade pela qual as mulheres denunciam questões acerca dos homens, do trabalho e da denúncia de suas condições e as violações e negações as quais estão submetidas. A kantadera profeta executa as músicas conforme sua habilidade de improvisação e suas experiências, sendo portadora de uma filosofia popular comum às tradições africanas.
Na dança, o batuque também segue um ritual. Organizadas em semi – círculo (terreru), as batukadeiras e kantaderas executam a performance. No primeiro movimento, uma delas se dirige ao interior do terreru para executar a dança, oscilando o corpo conforme o tempo da música, alternando os pés para marcar o ritmo. No segundo movimento, enquanto as executantes interpretam o ritmo e o canto em uníssono, a executante que põe-se a dançar o da ku tornu, requebrando os quadris com flexões rápidas nos joelhos para acompanhar o ritmo. Ao finalizar, a mulher dá espaço para a outra dançar.
Sabe-se que o batuque possa ter existido em outros pontos do arquipélago, mas atualmente ele é mais forte na ilha de Santiago.
As batucadeiras recriam, portanto, por meio da corporeidade, da dança, música e da ancestralidade, um espaço exclusivo entre mulheres. Nessa interação, os saberes, experiências e tradições se manifestam enquanto resistência de mulheres por meio da linguagem. Por meio das histórias contadas, o batuko permite a identificação dessas mulheres em torno de sua afirmação na sociedade Cabo-verdiana. Mantendo saberes e práticas culturais comuns a elas.
“Batuko” e a memória compartilhada entre as mulheres
O Batuko vai além de uma manifestação cultural e musical construída a partir de uma prática tradicional. Para as mulheres cabo-verdianas essa prática tem um significado de sociabilização, em que avós, mães, filhas e netas são construídas enquanto mulheres, através da prática do Batuko e as experiências compartilhadas.
A prática não é passada de geração em geração diretamente. Tanto mães, quanto filhas aprenderam o batuko observando outras mulheres e convivendo diariamente com essa manifestação cultural, a qual é muito natural para elas, pois esse é um espaço em que essas mulheres compartilham experiências, cuidam umas das outras e fazem disso um meio de unir forças para enfrentarem problemas, recriar e aperfeiçoarem cada vez mais, diferentes formas de expressão. Segue a fala de uma batucadeira:
Não me lembro bem como fui aprendendo. Minha mãe fazia e eu fazia com ela. Também quando brincava com outras crianças, fazíamos batuko e nós íamos aprendendo uma com a outra. Também minhas amigas de infância brincavam juntas de fazer batuko e cada uma fazia uma coisa diferente e íamos aprendendo e ensinando a cada uma, o que sabemos fazer melhor. Mas ninguém te ensina mesmo. Tu vais aprendendo, vendo as pessoas fazerem. As minhas duas filhas sabem fazer, mas eu nem lhes ensinei, elas vão vendo. Tal como minhas filhas eu não lhes ensino, elas vão aprendendo, me vendo fazer ou vendo outras batucadeiras ou junto com outras crianças.” (Batucadeira Bia).
O Batuko e a tradição oral
Nas sociedades africanas, a tradição oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação diária, mas também como um meio da preservação de saberes e valores ancestrais. São narrativas documentais e testemunhais que são compartilhadas verbalmente e constroem sentidos diversos nas quais a palavra carrega em sua essência memórias e criações que permitem relacionar diretamente o saber e o fazer. A elocução-chave expressa nas sociedades de tradição oral difere-se dos enunciados escritos, possibilitando interpretações que refletem o contexto de produção oral e expressam a perpetuação das memórias passadas de geração em geração. A Oralidade é o próprio ato com toda sua complexidade, que ocorre lentamente a fim de se criar uma identidade coletiva.
O Batuko de Cabo Verde expressa sua literariedade no intuito de construir uma identidade nacional após o processo de independência do país diante da influência da literatura escrita do colonizador. O batuko se expressa como uma literatura de resistência e de preservação das práticas das mulheres no país. Ao relatar, contar e denunciar suas opressões e suas condições enquanto mulheres no arquipélago, o Batuko manifesta-se por uma poética em que corporeidade, a palavra e dança “falam” histórias e memórias que perpetuam práticas tradicionais de herança africana matrifocal e se tornam ressignificações de práticas que na diáspora se fundem e refletem sobre a construção da tradição griot, transpondo histórias, valores e crenças que questionam a historiografia tradicional.
A partir do reconhecimento da tradição oral como um bem imaterial e após o movimento de resgate das práticas culturais em cabo verde, o Batuko é praticado com vistas a rememorar uma tradição que tem raízes firmadas sobre um passado firmado sobre bases escravocrata.
Essencialmente feminina, o batuko trata de diversos temos que cerceam a vida das mulheres negras em Cabo Verde e seu cotidiano na ilha. Frente a influência literária escrita portuguesa, o batuko torna-se uma resistência negra e feminina ao criar espaços de interação exclusivamente femininos em que a palavra incorpora diversas vozes de mulheres sócio-historicamente invisibilizadas e oprimidas que se impõem diante do silenciamento, expressando-se por meio das composições que denunciam aspectos da vida social, as relações com os homens e com o estado.
A poética se manifesta por meio da performance ao unir vozes e expressões corporais que afrontam o patriarcado e as regras impostas às mulheres, transgredindo e desafiando os lugares impostos às mesmas. A “kantadeira profeta” que enuncia as histórias torna-se momentaneamente a porta voz das mulheres Cabo-verdianas, enquanto as batucadeiras respondem ritmicamente, incorporando elementos à narrativa. Por meio das cantigas o batuko ilustra e constrói as noções de feminilidade e do que venha ser a identidade feminina e masculina por meio de um discurso sociocultural.
Cabo-verde tem sua população majoritariamente feminina e as desigualdades de gênero são gritantes. São famílias que seguem um modelo de família monoparental chefiado por mulheres, já que é comum os homens não assumirem a paternidade. O batuko se configura em um espaço onde as mulheres compartilham suas vivências e suas insatisfações acerca da figura masculina ou a sua ausência, bem como recriam estratégias que as permitem serem autônomas e emancipadas.
Na performance, as entonações de lamento, a dança, as roupas , a percussão e a organização do “terreru” constroem o texto e o diálogo por meio de interações essencialmente femininas. O batuko é uma conversa entre mulheres, um diálogo que a cada momento expressa de uma forma, seja pela lamentação, pela ironia ou pela denúncia. São reflexões filosóficas em torno do contexto social a qual as mulheres Cabo-Verdianas estão submetidas.
Conclusão. Batuko e Batucadeiras enquanto patrimônio imaterial.
O Batuko já é reconhecido pela UNESCO como patrimônio imaterial da humanidade. Essa prática inteiramente cabo-verdiana traz consigo a expressão da cultura imaterial da ilha de Santiago. Isso tem estimulado a retomada da expressão, que ganha cada vez mais a força de jovens e pessoas em geral que reconhecem o valor de sua cultura, e a entendem como uma importante manifestação cultural constrói a realidade de milhões de cabo-verdianos.
A prática do batuko tem mudado principalmente a vida das mulheres cabo-verdianas (as batucadeiras), que encontraram nessa manifestação cultural, uma forma de expressão, força e voz feminina, dando à essas pessoas mais autonomia e coragem para enfrentarem a dura realidade de viver em uma sociedade em que ser homem constitui uma mais valia em relação à mulher e esta mesma mulher, geralmente, é também a provedora do lar.
Discorrer sobre o batuko, implica em desconstruir a ideia de que essa prática é apenas uma manifestação cultural no sentido de apenas manter tradições e a dança. Para as batucadeiras, o batuko é um espaço de socialização com outras mulheres, onde é construído o “sujeito” numa perspectiva de socialização e nas performances culturais. É o lugar em que essas pessoas expressam seus anseios por meio de cantigas, traços da literatura oral e mantém o principal traço de sua identidade.
Referências
Góis, P. Emigração Cabo-Verdiana para (e na) Europa e a sua inserção em mercado de trabalhos locais: Lisboa, Milão, Roterdão.1ª Ed. Lisboa, 2006.
Gomes, S. Cabo Verde e as pérolas do Atlântico: literatura como meio de resgate e preservação do patrimônio cultural. Estudos Linguísticos. São Paulo, 2011.
Nogueira, G. Batuko, patrimônio imaterial de Cabo-Verde. Percurso histórico-musical. Cabo Verde, 2011.
Semedo, I. Batuko e a sociabilidade feminina: etnografia do batuko e batucadeiras de São Martinho Grande (Ilha de Santiago, Cabo Verde). UFSC. Florianópolis, 2008.
Fonte: PortalGeledés.