Por Renata Mielli.
Ela não nasceu hoje. A bem da verdade, ela sempre existiu para dar vazão às ideias não hegemônicas, para denunciar os poderosos, para dar visibilidade aos excluídos. Desde o tempo do linotipo, do mimeógrafo, passando pelo rádio amador e pela radiodifusão comunitária.
Em tempos de internet, ela ganhou escala e alcance nunca antes possíveis em função das barreiras econômicas que o modelo de negócio da comunicação impunha.
A mídia alternativa vem se tornando referência e assumindo papel determinante para divulgação de fatos e acontecimentos que são omitidos pela mídia hegemônica. É essencial para a disputa de ideais e valores na sociedade e está cada dia mais pulsante e viva.
Conforme a web foi se desenvolvendo, foram surgindo novos mecanismos de distribuição de conteúdos. Os setores historicamente excluídos do debate público, estruturalmente invisibilizados pela mídia hegemônica, começaram usar a internet para se comunicar, para contar suas próprias histórias, para manifestar sua opinião sobre acontecimentos e, inclusive, contradizer o que a mídia divulgava como “verdade”.
Os microblogs, depois os blogs, as primeiras redes sociais e a possibilidade de se criar plataformas digitais para distribuir conteúdos produzidos de qualquer lugar do Brasil fizeram nascer um novo ecossistema de comunicação, que foi se fortalecendo e ganhando cada vez mais relevância no debate público.
Apesar de ainda ter um alcance restrito, frente ao poder da radiodifusão privada, a mídia alternativa, independente, popular, comunitária já não permite que os barões midiáticos falem sozinhos. O monólogo passou a ser um diálogo, um “multiálogo”.
São centenas de coletivos, sites, blogs, jornais e revistas online (muitos guerreiros que mantém, também, suas versões impressas), ativistas digitais que interagem e criam movimentos por redes sociais na internet, rádios comunitárias, tevês comunitárias, webrádios, webtvs, youtubers, e quantas mais denominações se pode dar e encontrar para falar deste novo mundo comunicacional que está causando uma mudança na forma como se produz e acessa comunicação e informação.
Esse amplo campo de comunicação passou a falar sobre temas ignorados até então. Direitos humanos e interesse público passaram a estar no centro da agenda produzida por esta nova comunicação, que desmistifica a ideia de que é possível ser um corpo neutro na sociedade. Qualquer relato, história e conteúdo comunicacional parte de um ponto de vista, de valores social e culturalmente construídos e, por mais objetiva que seja a construção de uma notícia, ela está inserida neste contexto.
E comunicação é poder. Nada humaniza mais que a palavra, nada nos confere mais a noção de coletividade do que a possibilidade de narrar histórias que mostram os dilemas comuns das pessoas.
Se o monopólio está a serviço da manutenção do status quo, a possibilidade de falar e tornar públicos os problemas da sociedade e de desnudar a perversidade da exclusão, da miséria e do preconceito empoderou movimentos e setores sociais que passaram a fazer parte da agenda pública.
A comunicação é um direito e como tal é uma instrumento essencial para o exercício e garantia de outros direitos, é um meio de formação e de fortalecimento da cidadania.
Os conteúdos construídos pelos coletivos de comunicação, coletivos culturais, jornalistas, comunicadores sociais, pela imprensa popular e sindical têm um forte sentido transformador e libertário, têm o povo como protagonista e objetivam promover um debate amplo e participativo, estimular a reflexão, o engajamento e a mobilização social. Como afirma Maria Cristina Mata no livro Construindo Comunidades: Reflexões atuais sobre a comunicação comunitária: “Não é possível ser cidadão se não for possível expressar na esfera pública a carência de direitos e a luta por novos direitos”.
É verdade que nesse novo ecossistema comunicativo há muitas diferenças. Essa nova mídia não é una e blocada. Há enfoques e métodos distintos, há inclusive pontos de vistas divergentes sobre como fazer comunicação, mas é inegável que estão todos no mesmo campo, buscando um novo modo de comunicar e narrar a vida social.
E como não se pode falar de comunicação fora do contexto político e econômico em que ela está sendo realizada, no Brasil dos últimos anos, a comunicação assume um engajamento mais aberto. Seja na mídia hegemônica ou alternativa, os conteúdos refletem a polarização social.
Essa nova mídia foi colocando em questão o comportamento da mídia hegemônica. Mais e mais pessoas passaram a buscar fontes alternativas de comunicação, passaram a confrontar as informações e notícias e isso abalou o castelo midiático hegemônico.
Como na casos emblemático da eleição de 2010, o da bolinha de papel, quando as emissoras de rádio e tevê difundiram amplamente que o então candidato a presidente da República, José Serra, tinha sido alvo de uma “pedrada”, atirada por um militante do PT. Imediatamente a mídia alternativa desmentiu a notícia e comprovou que a pedra não passava de uma bolinha de papel atirada por um correligionário de Serra para tentar criar um fato político.
Episódios como esse passaram a se suceder e a credibilidade da mídia hegemônica foi sendo, pelo menos, arranhada pela ação ação da mídia alternativa. Vira e mexe algum veículo hegemônico é obrigado a reconhecer o “erro” em alguma notícia, ou corre para mudar manchetes, é chamado a se explicar ou tornar mais explícito seus métodos. Como na cobertura da Folha de S.Paulo sobre as manifestações pelo e contra o impeachment em São Paulo, onde eles explicam os cálculos utilizados e comparam as fotos para dizer como chegaram à estimativa de pessoas presentes em uma e outra passeata.
A possibilidade de cada pessoa ser um midialivrista, midiativista, um comunicador, registrando com fotos e vídeos acontecimentos e permitindo que uma multiplicidade de informações sejam difundidas tem, inclusive, pautado a mídia hegemônica em alguns casos. Como ignorar, por exemplo, a ocupação do MTST em São Bernardo do Campo e a marcha de 23 km realizada nesta terça-feira pelos sem teto até o Palácio dos Bandeirantes? Em tempos pré-internet, muito provavelmente esse movimento teria sido solenemente invisibilizado. Aliás, no mesmo ABC paulista, na cidade de Santo André, há 35 anos uma outra ocupação envolvendo mais de 500 famílias aconteceu e não teve visibilidade do noticiário da época.
A ocultação e manipulação da informação produzida pela mídia hegemônica já não se sustentam em função da ação desta nova comunicação, referenciada no interesse público e na defesa de valores explícitos como a soberania do país, a defesa do meio ambiente, dos direitos indígenas, das mulheres, dos negros, da comunidade LGBT, e tantos setores sociais que passaram a ter voz ativa.
São tantos os casos em que a cobertura da mídia alternativa furou o bloqueio do monopólio que é impossível citar todos.
O caso da crise hídrica em São Paulo, onde os coletivos de comunicação denunciaram a responsabilidade do governo paulista na falta de água e a existência do racionamento, a cobertura das ocupações secundaristas contra a reforma do ensino médio e a reestruturação das escolas em SP, o caso Amarildo, a cobertura do crime ambiental de Mariana, a da primavera feminista, a denúncia do golpe midiático, jurídico, parlamentar em curso no Brasil são apenas alguns destes casos.
Ampliando a diversidade e a pluralidade na marra
Fortalecer a mídia alternativa, independente, popular, comunitária é uma tarefa prioritária. Potencializar a produção, impulsionar e dar ampla visibilidade aos vários conteúdos disponíveis, sem querer rotular ou homogeneizar esse campo amplo e diverso, respeitando as diferenças e compreendendo que cada blog, site, jornal, revista, coletivo, enfim, que cada iniciativa é importante e complementar, que a existência de cada um fortalece o todo é fundamental para enfrentar o golpe e resgatar a democracia no Brasil.
Os desafios são muitos. Estão no campo do financiamento e da sustentação dos veículos, da remuneração dos produtores de conteúdos (muitos voluntários), de enfrentar os dilemas causados pela força das plataformas privadas como Facebook e Google que estão derrubando a audiência da mídia alternativa (tema para outro artigo), da fundamental luta pela universalização do acesso à banda larga para garantir que mais pessoas possam ter acesso à internet e, portanto, a possibilidade de tomar contato com os conteúdos da mídia alternativa.
Mas esses desafios só alimentam o desejo de crescimento dessa nova comunicação, herdeira dos primeiros jornais independentes do país, que remontam ao século XIX, pequenos volantes, jornais, semanários, alguns mais longevos outros menos. A maioria vinculada a causas políticas (abolicionistas, republicanos, sindicais, democratas). Muitos tornaram-se ícones da história da imprensa brasileira, A Lanterna, A Plebe, A Classe Operária, Almanhaque, O Pasquim, Opinião, Movimento, O Sol. Veículos que entraram para a história da comunicação no Brasil e que ajudaram a escrever a história do Brasil, pela influência e a importância que tiveram.
É verdade que uma das lutas estruturantes da atualidade é pela democratização dos meios de comunicação, é pressionar para que o Estado cumpra o seu papel de promover um ambiente plural e diverso de comunicação, alterando o marco legal que define os critérios para a concessão de outorgas de rádio e televisão, tornando-as mais transparentes e garantindo que a sociedade participe deste debate; fortalecendo a comunicação pública e a radiodifusão comunitária; criando mecanismos de fomento à mídia alternativa; dentre várias outras políticas que são essenciais para o fortalecimento da democracia e da nação.
Mas, ao lado disso, já há um movimento que está, na prática, contribuindo para democratizar a circulação de informações e ideias na sociedade, que está efetivamente construindo um ambiente de mais pluralidade e diversidade na marra e na garra.