Órgão interno de fiscalização encontra ligação entre financiamento do Banco Mundial e reassentamento em massa de grupo indígena por governo etíope.
Por Sasha Chavkin.*
Crianças Anuak no campo de refugiados Gorom, no Sudão do Sul. Muitos Anuak fugiram da Etiópia durante a campanha de reassentamento do governo chamada “villagization” (formação de vilas).
O Banco Mundial violou sistematicamente suas próprias regras ao financiar uma iniciativa de desenvolvimento na Etiópia acusada de ter causado remoções forçadas de milhares de indígenas, de acordo com um relatório vazado, feito pelo Painel de Inspeção, órgão de fiscalização interna do Banco Mundial.
O relatório, obtido pelo International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ), examina uma iniciativa de educação e saúde que foi financiada por cerca de US$ 2 bilhões do Banco Mundial ao longo da última década. Membros do grupo indígena Anuak, da província de Gambella, na Etiópia, acusaram as autoridades do país de destinar parte do dinheiro do projeto a financiar um programa de remoções forçadas em massa. Além disso, acusaram os soldados de bater, estuprar e matar os Anuak que se recusaram a abandonar suas casas. O banco continuou financiando a iniciativa de educação e saúde ao longo de anos após as alegações emergirem.
O relatório do Painel de Inspeção descobriu uma “ligação operacional” entre o programa financiado pelo Banco e o esforço de reassentamento do governo etíope conhecido como “villagization” (formação de vilas). Ao não reconhecer essa ligação e não agir para proteger as comunidades afetadas, o Banco Mundial violou suas próprias políticas de avaliação de projetos e de riscos, análise financeira e proteção de comunidades indígenas, concluiu o relatório do Painel.
“O Banco permitiu a transferência forçada de dezenas de milhares de indígenas de suas terras ancestrais”, disse David Pred, diretor da Inclusive Development International, organização sem fins lucrativos que apresentou a reclamação ao Painel de Inspeção em nome de 26 refugiados Anuak.
O Banco Mundial se recusou a responder as perguntas do ICIJ sobre o relatório. “Como procedimento padrão, o Banco Mundial não pode comentar os resultados das investigações do Painel de Investigação até o Conselho Executivo do Grupo Banco Mundial ter tido a oportunidade de analisar o relatório do Painel nas próximas semanas”, disse Phil Hay, porta-voz do Banco para a África, em comunicação por escrito.
Em respostas dadas anteriormente à mesma reclamação, a administração do banco disse que não havia evidências de remoções ou abusos generalizados e que os Anuak “não foram nem serão, direta ou negativamente afetados por uma falha de implementação das políticas e procedimentos do Banco.”
Como o relatório do Painel ainda não foi publicado, partes do texto podem ser revisadas antes do lançamento da versão final, mas espera-se que suas conclusões básicas não mudem.
O relatório não chega a responsabilizar o Banco pelos abusos mais sérios. As alegações de remoções forçadas e violações de direitos humanos amplamente relatadas não foram verificadas pelo Painel, que considerou essas questões além do escopo de sua investigação. O Banco não violou sua política de reassentamento forçado, diz o relatório, porque as realocações foram conduzidas pelo governo etíope e não eram parte “necessária” ao programa de saúde e educação.
Desde 2006, o Banco Mundial e outros doadores internacionais financiam o programa Promoting Basic Services (PBS – Promoção de Serviços Básicos), que concede a governos locais e regionais recursos para serviços como saúde, educação e água potável. O programa PBS foi estruturado para impedir a canalização de recursos assistenciais diretamente para o governo federal da Etiópia, que havia reprimido violentamente seus opositores após as disputadas eleições de 2005.
Até 2010, autoridades federais e provinciais trabalhavam para tirar cerca de 2 milhões de pessoas pobres de casas rurais isoladas e realocá-las em vilas em locais selecionados pelo governo em quatro províncias do país. Autoridades prometeram que nessas novas vilas as comunidades realocadas teriam acesso a sistemas de saúde, educação e outros serviços básicos – o que antes elas não possuíam.
Em Gambella, o governo realocou residentes de 37.883 domicílios, aproximadamente 60% de todas as casas da província, de acordo com estatísticas do governo da Etiópia citadas pelo Painel de Inspeção. O governo etíope disse que todos os reassentamentos foram voluntários.
Muitos dos Anuak, um grupo indígena majoritariamente cristão de Gambella, disseram porém que não queriam se mudar. Os indígenas e seus advogados declararam que eles foram retirados de suas terras férteis por soldados e policiais e que, depois, boa parte das terras foram arrendadas pelo governo a investidores. As remoções foram “acompanhadas por violações de direitos humanos generalizadas, incluindo desalojamento forçado, prisões e detenções arbitrárias, espancamentos, estupros e outras violências sexuais, de acordo com um relatório da ONG Human Rights Watch, publicado em 2012.
O relatório da Human Rights Watch e a reclamação dos refugiados Anuak ao Painel de Inspeção denunciam o uso de recursos do Banco por autoridades locais e regionais para sustentar realocações forçadas. Eles dizem, por exemplo, que os salários dos oficiais do governo que ajudaram a realizar as remoções foram pagos com recursos da iniciativa PBS.
O Banco Mundial continuou apoiando o programa PBS ao longo da campanha de formação das vilas. Em 2011 e 2012, o Banco aprovou novos financiamentos para o PBS e até hoje apoia a iniciativa. Desde o lançamento do PBS, a Etiópia vem registrando avanços na redução da mortalidade infantil e no aumento das matrículas na educação primária.
A campanha da realocação para as novas vilas terminou em 2013 e acredita-se que tenha reassentado número substancialmente menor do que a estimativa de 2 milhões de pessoas antecipada pelo governo.
O caso da Etiópia é um entre uma série de projetos recentes financiados pelo Banco Mundial que atraíram críticas de grupos ativistas por supostamente terem também financiado violações de direitos humanos. Entre eles está um empréstimo para uma empresa produtora de óleo de palmeira em Honduras, cujos guardas foram acusados, por advogados de direitos humanos, de assassinar dezenas de camponeses envolvidos em uma disputa por direitos agrários com a companhia; e um programa de conservação ambiental do governo do Quênia denunciado pelo povo Sengwer como ferramenta para forçá-los a sair de suas florestas ancestrais.
No caso da Etiópia, o Painel de Inspeção decidiu que as alegações mais severas de remoções forçadas e violência estavam fora da competência do seu mandato; em parte porque as regras do banco limitam a investigação a ações realizadas com recursos da parcela mais recente de financiamento ao programa PBS.
Durante sua investigação, o Painel de Inspeção pediu a Eisei Kurimoto, professor da Universidade de Osaka no Japão e especialista no povo Anuak para viajar a Gambella e ajudar a analisar a reclamação dos Anuak.
Kurimoto relatou ao ICIJ que os Anuak com quem ele falou disseram que as autoridades etíopes usaram ameaças de violência para forçá-los a se mudar. Os oficiais da Etiópia que conduziram o programa de reassentamento “sempre iam com policiais e soldados armados”, contou Kurimoto. “Está muito claro que o governo regional pensava que muitas pessoas não iriam se mudar feliz ou voluntariamente. Então eles precisaram mostrar seu poder e a possibilidade de usar a força”.
David Pred, da Inclusive Development International, disse que agora cabe ao presidente do Banco Mundial, Jim Yong Kim, decidir se a “justiça será feita” no caso dos Anuak. “A justiça começa com a aceitação da responsabilidade pela culpa – o que o Painel de Inspeção encontrou em abundância – e termina com o fornecimento de compensações significativas”, afirmou.
Foto: Andreea Campeanu/ICIJ
*Do International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ)
Fonte: Agência Pública