Por Paulo Kliass.
Vira e mexe o roteiro surrado e desgastado reaparece nas cenas da Esplanada brasiliense. Em geral, o movimento tem início quando algum governo impopular ou mal das pernas no quesito pesquisa de opinião pública precisa conquistar apoio para suas maldades. São medidas polêmicas e redutoras de direitos, que dificilmente contariam com a benevolência da maioria da população. Conhecemos bem esse enredo.
Há dois anos ocorreu com a duplinha dinâmica Temer & Meirelles. Na sequência do golpeachment que afastou Dilma do Palácio do Planalto sem nenhuma prova de crime de responsabilidade, o governo ilegítimo precisava marcar sua posição a respeito das chamadas “reformas estruturais urgentes”. De acordo com o comando econômico, elas seriam a previdenciária, a trabalhista e a do teto dos gastos. Caso fossem aprovadas pelo Congresso Nacional, o Brasil entraria na fase da redenção e da prosperidade. Pausa para um sorriso, carregado de forte ironia. Estávamos em novembro de 2017.
A partir do momento em que se preparava o campo para a Reforma da Previdência, o governo encomendou junto à representação do Banco Mundial (BM) em Brasília um estudo que corroborasse a emergência da medida destruidora de direitos. Era o popular “dois em um”: um estudo técnico encomendado pelo próprio governo para chancelar a PEC dos gastos e a Reforma da Previdência. Uma vergonha! A papelada foi para o ar e a equipe do BM foi para os holofotes com a missão de chancelar o polêmico congelamento das despesas do orçamento da União por longos 20 anos que o governo tinha aprovado e esperava fazer o mesmo com a retirada de direitos previdenciários.
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Banco Mundial: parceiro das maldades
O documento foi amplamente criticado pela grande maioria dos economistas e entidades envolvidas com o tema, pois não oferecia nenhuma substância técnica confiável quando de sua elaboração. Na verdade, seu único propósito era o de fornecer munição a Meirelles em seu intento de, entre outros desastres, acabar com a previdência social pública e universal – que o Brasil ainda mantém apesar das inúmeras tentativas. Eu mesmo escrevi um artigo a esse respeito à época, desmontando a falácia da operação puramente mercadológica à qual a equipe do BM se prestava naquele momento.
Pois agora a operação-enrolação se repete. Às vésperas do anúncio de uma Reforma Administrativa cuja versão definitiva segue guardada a sete chaves, o governo de Bolsonaro & Guedes pede ajuda ao BM mais uma vez. Do pouco que já foi vazado a título de balão de ensaio da proposta que vem sendo cuidadosamente preparada pela equipe do Ministério da Economia, sabe-se que a coisa vai na mesma ladainha da destruição e da redução. Alguns profissionais da imprensa foram informados de medidas como o fim da estabilidade para os servidores públicos, a possibilidade de redução de jornada com diminuição de salário, a introdução de piso salário máximo para ingresso no serviço público de R$ 5 mil e otras cositas más.
Depois da Reforma Trabalhista, da EC 95, da tentativa da Reforma Previdenciária e da onda de privatização de empresas estatais, agora o governo prepara seu novo bote para prosseguir no intento de redução do Estado brasileiro à sua dimensão mínima. Trata-se de uma suposta “Reforma Administrativa” que pretende tão somente consolidar o processo de desmonte. E, para tanto, faz um novo apelo ao BM, sempre na tentativa desesperada de buscar uma certificação de “seriedade e neutralidade” para mais essa maldade cometida contra os interesses da maioria da população.
Reforma Administrativa: cortar e destruir
O documento elaborado pela tecnocracia com sede em Washington é de uma desonestidade impressionante. Manipulando dados estatísticos de forma escandalosa, o texto sugere que há excesso de servidores públicos no Brasil (somando de forma equivocada a esfera federal com a estadual e a municipal) e que os mesmos recebem remuneração muito elevada. Com isso, em nosso país haveria um percentual de gasto sobre o PIB mais alto do que deveria. Bingo! Ocorre que o próprio material reconhece que esse índice para o Brasil está bem abaixo da média registrada para os países da OCDE.
No entanto, o que mais chama a atenção é que o texto não se contenta em avaliar e analisar o quadro do serviço público em nossas terras. Ao assumir de forma envergonhada que se trata de uma encomenda do Palácio do Planalto, a equipe do BM ousa apresentar uma série de propostas para “resolver”, de acordo com a visão austericida da ortodoxia financista, essa complexa e sensível questão. Assim, bastaria acabar com a estabilidade do servidor público, estabelecer um salário de ingresso máximo de R$ 5.000, alongar a evolução salarial no interior das carreiras, não repor por meio de novos concursos a totalidade dos servidores que partirem para aposentadoria e permitir a contratação de novos servidores sem concurso público. Perfeito! Com isso se alcançaria facilmente o objetivo de reduzir os gastos com pessoal. Uma loucura recheada de irresponsabilidade!
É uma pena que a equipe do BM no Brasil continue se prestando a tal tipo de papel na nossa cena política. Aliás, se tivessem um mínimo de sensibilidade e informação, avaliariam melhor esse tipo de interferência negativa na formulação e implementação de políticas públicas em países que lhes são estranhos. O atual caso das propostas esdrúxulas e inconsequentes do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o Equador está aí para que todos possamos aprender a lidar de forma mais adequada com temas e conjunturas como essas.
Mas felizmente a reação organizada de instituições e pesquisadores da Administração Pública brasileira não se fez esperar. Um conjunto de entidades reunidas em torno do tema elaborou um documento que pretende ser o início da resistência e da ofensiva contra as intenções de Bolsonaro e Guedes. A Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público organizou um importante ato político na Câmara dos Deputados na manhã do dia 15 de outubro, com a missão de denunciar os riscos envolvidos na manobra do Palácio do Planalto. No evento foi lançado o estudo “Reforma Administrativa do Governo Federal: contornos, mitos e alternativas”.
Resistência, mobilização e alternativas
Utilizando-se de dados e informações oficiais do próprio Estado, o documento vai desfazendo alguns dos mitos criados em torno da própria administração pública. Na verdade, trata-se de mentiras e falácias difundidas pelos meios de comunicação em conluio com os interesses do conservadorismo financista. Assim, por exemplo, os autores apontam seis casos em que os argumentos usados para justificar o desmonte em curso não param em pé:
“(…) mito 1 – o Estado é muito grande e a máquina pública está inchada;
mito 2 – as despesas com pessoal da União são muito altas e estão descontroladas;
mito 3 – o Estado é intrinsecamente ineficiente;
mito 4 – a estabilidade do funcionalismo é um privilégio e é absoluta;
mito 5 – o dinheiro do governo acabou;
mito 6 – as reformas da previdência, administrativa e microeconômicas vão recuperar a confiança dos investidores privados, o crescimento e o emprego; (…)”
Valendo-se de informações públicas e elementos de comparação internacional, o texto vai desmontando cada uma dessas inverdades e termina por apresentar as diretrizes de uma Reforma Administrativa republicana e democrática. Como era de se imaginar, as propostas caminham na contramão de todas as orientações sugeridas pelo BM e que tudo indica serem as bases da proposta de Bolsonaro e Guedes.
O pontapé inicial foi dado. Agora cabe às entidades e associações interessadas na preservação das condições mínimas de sobrevivência do Estado brasileiro a ampliação das denúncias e a mobilização de suas bases para impedir mais essa tentativa do governo atual. Manter um serviço público de qualidade e voltado aos interesses da maioria da população é um imperativo de soberania e um mandato previsto na própria Constituição.
Assim, longe de se constituir em uma defesa de interesses meramente corporativos, trata-se de um movimento que visa assegurar a existência dos elementos da administração pública capazes de proporcionar, no futuro próximo, a possibilidade de implementação de um projeto de desenvolvimento econômico e social que seja inclusivo, sustentável e redutor de desigualdades. Ou seja, exatamente o oposto do que pretende nos empurrar goela abaixo a velha receita de bolo solado da tecnocracia do BM.
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