Por Graça Druck, Luiz Filgueiras e Uallace Moreira.
Introdução
O documento divulgado pelo Banco Mundial (Bird), intitulado “Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, não deixa margem a dúvidas; é de novo “o samba de uma nota só” do ajuste fiscal. Na linha do “o Estado brasileiro gasta muito e gasta mal”, a peça foi encomendada pelo ministro da Fazenda (Joaquim Levy) do segundo governo Dilma, com o objetivo evidente de justificar e legitimar o “ajuste fiscal” que então se iniciava.
Esse documento vem à luz em uma conjuntura de avanço no mundo, e no Brasil, de reformas e políticas de cunho neoliberal na sua vertente mais dogmática e fundamentalista – com o agravante de estarem sendo executadas por um governo ilegítimo, repudiado por quase a totalidade da população brasileira no pouco tempo de sua existência. E também em um momento de ataque às universidades públicas brasileiras (invasão da UFSC e da UFMG e prisão de seus dirigentes) por golpistas encastelados na Polícia Federal, no Ministério Público e no Judiciário, que vêm patrocinando uma campanha cujo objetivo é claro: desmoralizá-las para privatizá-las – como foi feito com a Petrobrás.
O objetivo do documento do Bird é desqualificar os gastos correntes, em especial os gastos sociais do Estado, taxando-os de excessivos, ineficientes e socialmente regressivos; portanto, a sua preocupação é com a folha salarial dos funcionários públicos e os gastos com educação, saúde, previdência e assistência social. Apesar de, surpreendentemente (por ato falho?), afirmar que, para restaurar o equilíbrio fiscal, “o aumento das receitas tributárias e a redução dos altos pagamentos de juros sobre a dívida pública” poderia ser uma alternativa à redução dos gastos.
Na verdade, a razão fundamental da fragilidade financeira do Estado é a dívida pública, que só faz crescer, porque já há muito tempo se descolou e não depende, principalmente, das contas primárias do governo; ela ganhou autonomia, tem um movimento próprio, que amplia o seu montante permanentemente e está associado à entrada de capitais estrangeiros especulativos.
O ajuste fiscal não tem capacidade de resolver o problema, porque a dívida é recriada permanentemente na relação do governo com os mercados financeiros. O que o ajuste fiscal faz é transferir uma parcela maior das receitas do governo para o capital financeiro; por isso é que ele passou a ser uma política permanente do grande capital e da direita liberal. Daí, o congelamento dos gastos correntes do Estado por vinte anos. É um eterno retorno; os problemas estruturais permanecem, a pobreza continua existindo, a concentração de renda não se altera ou até piora, o mercado de trabalho se precariza, mas os ricos ficam mais ricos.
Por outro lado, a estrutura tributária existente no Brasil é vergonhosamente regressiva, calcada, sobretudo, em impostos indiretos que sobrecarregam principalmente as famílias de menor renda, enquanto não se tributam os ganhos financeiros, a propriedade fundiária e a herança. Mesmo no que se refere ao imposto de renda, caracterizado por sua baixa progressividade, a sua carga recai, principalmente, sobre a “classe média”, em especial a sua fração assalariada.
Para complementar, tem-se uma enorme evasão fiscal, através da sonegação, da sistemática renúncia fiscal para os grandes grupos econômicos e de sucessivos e reiterados perdões aos grandes sonegadores (Refis).
No que tange às despesas da União, considerando-as por função, não são os gastos primários do governo a razão do déficit público. Entre 2000 e 2015, os encargos especiais – refinanciamento da dívida interna e externa, serviço da dívida interna e externa – absorveram bem mais do que 50% do orçamento. Em 2000 e 2015 a sua participação foi, respectivamente, de 70,5% e 56,7%; em contrapartida, as despesas em educação e saúde foram de um pouco mais de 3% e 4%, respectivamente.
O presente texto é, sobretudo, uma crítica à parte do documento do Banco Mundial que se refere ao ensino superior brasileiro, em particular, às universidades federais; portanto, não trata especificamente das outras esferas atacadas pelo Bird: saúde, previdência e assistência social.
O ensino superior no Brasil nas últimas três décadas
Na década de 1990, o ensino universitário privado começou a se difundir em todo território nacional, espalhando-se mais ainda nas regiões Sul e Sudeste, nas quais já marcava forte presença.
Nos governos FHC, houve um forte incentivo aos investimentos, através de financiamentos concedidos pelo BNDES às instituições privadas já existentes e também para a criação de novos estabelecimentos. Com financiamento de longo prazo e juros subsidiados para a construção de prédios e compra de equipamentos, ampliou-se o número de instituições privadas e de vagas oferecidas.
Em 1995, início do primeiro governo FHC, o número de instituições de educação superior no Brasil era de 894, sendo 210 públicas (23,5%) e 684 privadas (76,5%). No final do seu segundo governo, em 2002, esse número alcança 1.637 (taxa de crescimento de 83,1%), com 195 públicas (11,9%) e 1.442 privadas (88,1%).
Com as facilidades propiciadas pelos governos FHC, criou-se uma grande capacidade ociosa, em virtude da diminuta renda per capta dos brasileiros. A solução para o problema, criado com o uso do dinheiro público, foi aportar mais dinheiro público para as instituições privadas. Se os governos FHC estimularam o ensino privado pelo lado da oferta, os governos Lula e Dilma o incentivaram pelo lado da demanda, com a grande ampliação do financiamento do pagamento das matrículas e mensalidades dos estudantes (Fies e ProUni).
O total de instituições de ensino superior no Brasil, em 2003, era de 1.859, com as instituições publicas somando 207 (11,1%) e as instituições privadas 1.652 (88,9%). No final do governo Dilma (2011-2016), o número total de instituições foi para 2.364; 2.069 privadas (87,5%) e 295 públicas (12,5%); as primeiras ampliando ainda mais o seu predomínio no ensino superior brasileiro.
Por sua vez, os dados disponíveis sobre o Fies indicam que, de 2004 a 2011, entre 63% e 80% das instituições privadas aderiram e se beneficiaram dessa fonte de financiamento aos estudantes para pagarem o ensino superior. O número de contratos novos do Fies era de 43.610 em 2004, saltou para 732.243 em 2014, uma taxa de crescimento de 1.579% no período.
O crescimento do número de contratos do Fies está associado ao aumento do crédito orçamentário para esse fundo para o mesmo período: em 2004, era de R$ 872 milhões, saltando para R$ 12,1 bilhões em 2014, uma taxa de crescimento de 1.291%.
O governo brasileiro também aumentou o número de bolsas pelo ProUni; em 2005 era de 112.275, saltando para 306.726 em 2014, o que representa uma taxa de crescimento de 173,2%. Esse crescimento é contínuo durante os governos de Lula e Dilma.
O resultado desse processo expressa-se no número de matrículas hoje existentes no sistema universitário brasileiro: em 1995, no início do governo FHC, o percentual de matriculados nas instituições privadas era de 60,2% e nas instituições públicas, 39,8%. Em 2002, as instituições privadas aumentam sua participação para 69,8% e as instituições públicas reduzem sua participação para 30,2%.
Nos governos Lula, a participação dos alunos matriculados em instituições privadas alcança, em 2010, 73,2%, enquanto as instituições públicas reduzem sua participação para 26,8%. Essa realidade, praticamente, se manteve durante o governo Dilma; mesmo considerando-se o aumento do número das instituições públicas com a criação do REUNI durante o segundo governo Lula.
A consequência foi o fortalecimento econômico e político das instituições privadas, em particular os seus grandes grupos econômicos – agora já com a presença de capitais multinacionais, que passaram a adquirir instituições de grande e pequeno porte; evidenciando-se forte processo de internacionalização e centralização de capitais, com quatro grandes empresas educacionais tendo suas ações negociadas na BMF&Bovespa.
Como se pode constatar, o ensino superior no Brasil é um “grande negócio”, no qual o Estado financiou, a juros subsidiados, o estabelecimento e/ou ampliação das instalações físicas (capital fixo) dos grandes grupos econômicos privados. Além disso, não há riscos para o investimento nem a possibilidade de descasamento entre oferta e demanda: a compra da mercadoria-ensino também está garantida antecipadamente pelo Estado.
Os recursos do Fies e do PorUni são transferidos diretamente para as corporações do ensino superior; a inadimplência dos estudantes “beneficiados” é zero e os valores cobrados pelas matrículas e mensalidades, exorbitantes – principalmente nas chamadas “ciências duras”. Esse é o “liberalismo” e o “menos Estado” do Bird, do capital financeiro e da direita liberal brasileira; na verdade, sem a transferência de recursos públicos (orçamentários), agora também para grandes grupos internacionais, esse negócio não poderia sobreviver; pelo menos na enorme dimensão que assumiu no Brasil.
Crítica à análise e propostas do Banco Mundial para as universidades públicas federais
Em apenas sete páginas, o Bird propõe as seguintes orientações e medidas ao ensino superior: (1) redução dos recursos destinados às universidades federais, o que as obrigaria a “redefinir a sua estrutura de custo e/ou buscar recursos em outras fontes”; (2) introdução de “tarifas” escolares (ensino pago); (3) financiamento (o Fies) para os estudantes que não puderem pagar as mensalidades instituídas pelas universidades federais; e (4), para completar, bolsas de estudos gratuitas para os estudantes mais pobres, através do ProUni.
Segundo o Banco Mundial, as despesas com o ensino superior, entre os anos de 2013 e 2015, além de excessivas e ineficientes, são também regressivas: “os níveis de gastos por aluno nas universidades públicas são de duas a cinco vezes maiores que o gasto por aluno em universidades privadas” (p.13); “embora os estudantes de universidades federais não paguem por sua educação, mais de 65% deles pertencem aos 40% mais ricos da população” (p.13); e “a pequena minoria de estudantes que frequenta universidades públicas no Brasil tende a ser de famílias mais ricas que frequentaram escolas primárias e secundárias privadas” (p.131).
Em suma, as universidades públicas além de ineficientes, também são regressivas socialmente; portanto, propõe a redução do financiamento público para forçá-las a serem mais eficientes, e o pagamento de mensalidades pelos estudantes (instituição de “tarifas”) – com recursos de suas famílias ou através do crédito educativo e, para os mais pobres, bolsas de estudo do ProUni.
Entretanto, dados do próprio Banco Mundial informam que o Brasil nãodireciona um montante de recursos adequados à educação, considerando-se todos os seus níveis: da educação infantil à superior.
Comparando-se com os 34 países da OCDE (Amaral, 2017), o Brasil está entre os primeiros colocados em termos de valor aplicado em educação (US$ 184,9 bilhões), correspondendo a 6% do PIB (US$ 3,081 trilhões). No entanto, por ter um grande número de matrículas (53.746.345), só menor do que o dos Estados Unidos, o Brasil é o último colocado no que se refere ao valor aplicado por matrícula em todos os níveis educacionais (US$ 3.439,49); abaixo mesmo do Chile (US$ 4.325,39) e semelhante ao do México (US$ 3.347,41), os dois únicos países latinoamericanos que integram a OCDE.
O Bird rebaixa a complexidade das universidades federais ao compará-la às instituições de ensino privado que, na maioria dos casos, se limita ao ensino presencial e, também agora, ao novo filão de ganhar dinheiro que é a “Educação à Distância – EAD”; contando para isso com um corpo docente bem menos qualificado/titulado, em tempo parcial, mal remunerado e carregado de turmas para dar aulas.
As universidades federais têm, como regra, além do ensino, atividades de pesquisa e extensão, hospitais universitários de alta complexidade, clínicas e laboratórios, museus, orquestras, teatros, cinemas, escritórios de assistência jurídica à população mais pobre etc.; contando para isso com um corpo docente altamente qualificado/titulado e, na maior parte, trabalhando em tempo integral.
Como consequência dessa enorme diferença, não levada em consideração pelo Bird, afirmar que as universidades federais têm um custo por estudante maior do que as universidades privadas não tem a menor credibilidade, se não separar-se, dos gastos totais realizados pelas primeiras, os gastos com todas as outras atividades listadas acima. Além disso, tem que se abater o pagamento das aposentadorias e pensões que também fazem parte e compõem o orçamento das universidades federais. Apenas depois dessa operação de subtração é que se pode fazer uma comparação do custo por estudante entre os dois tipos de Instituição.
Estudo de Amaral (2017), para discussão nas universidades federais brasileiras e na Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superio (Andifes), evidencia que, depois de realizada a devida subtração mencionada, o custo médio anual do ensino, por aluno, nas universidades federais, para o ano de 2015, é de R$ 13.875; menor do que a média da OCDE de R$ 15.772.
No que se refere à origem social dos estudantes das universidades federais, o Bird, a partir do conceito de pobreza/riqueza relativas, e classificando os estudantes por quintil de renda per capta, calcula com base na Pnad que, em 2014, somente 20% desses estudantes faziam parte dos 40% mais pobres da população, ao passo que 65% pertenciam ao grupo dos 40% mais ricos. Portanto, isso provaria que os gastos com as universidades federais beneficiariam os estudantes das famílias mais ricas.
Em contrapartida, no mesmo estudo de Amaral, os estudantes das universidades federais no ano de 2014 são classificados segundo a renda bruta familiar por faixas salariais, hierarquizadas pelo número de salários mínimos.
O resultado é bem diferente; não deixa margem à dúvida com relação à baixa e média baixa posição socioeconômica da grande maioria desses estudantes: um pouco mais de 51% têm renda familiar de até três salários mínimos (R$ 2.811, tendo por base o valor de 2017); se considerarmos todos aqueles cujas famílias têm renda de até seis salários mínimos (R$ 5.622, atingimos 76% do total de estudantes das universidades federais. Apenas 10% dos estudantes estão no topo da distribuição, isto é, pertencem a famílias que têm renda acima de dez salários mínimos (R$ 9.370).
Pode-se fazer algo semelhante ao que foi feito pelo Bird, utilizando os dados acima: agregando-se todos os estudantes cuja renda familiar é maior do que seis salários mínimos (R$ 5.622), tem-se um total de 24% de estudantes integrando as famílias “mais ricas”. Para se chegar próximo aos 65% dos estudantes mais ricos que, segundo o Banco Mundial, se beneficiam do ensino gratuito das universidades federais, é necessário somar todos os estudantes cuja renda familiar bruta é maior do que dois salários mínimos (R$ 1.937,36). Esses são os “mais ricos” (63,4%) segundo a metodologia (menos/mais) do Bird, e com dois detalhes importantes: nos dados citados, a renda é familiar (não per capta) e bruta (o que inclui valores ainda não deduzidos, como a Previdência Social, por exemplo).
Quanto à afirmação gratuita do Bird de que os estudantes das universidades federais são egressos de escolas privadas de nível médio, o estudo de Amaral, mais uma vez, desmente categoricamente: em 2014, 64% dos estudantes cursaram o ensino médio integralmente, ou a maior parte, em escolas públicas e, em sentido oposto, 36% cursaram em escolas particulares.
Conclusão
O documento do Bird ignora e despreza a realidade do sistema público de universidades federais, maquiando e manipulando tendenciosamente informações A intenção é clara: destruir a universidade pública, gratuita e democrática, socialmente referenciada; uma instituição que foi construída pela sociedade brasileira com o objetivo de alcançar a autonomia e independência econômica e política do país.
Em contrapartida, o documento da Andifes “Universidades Federais – Patrimônio da Sociedade Brasileira”, divulgado recentemente (nov. 2017), expõe as razões fundamentais para a manutenção e defesa do sistema público (gratuito) de universidades federais.
O atual sistema público de universidades federais é constituído por 63 instituições distribuídas por todas as regiões do país. Congrega cerca de 1,2 milhão alunos de graduação e pós-graduação. As universidades federais mantêm 46 hospitais universitários de alta complexidade, inseridos no Sistema Único de Saúde (SUS) e que atendem à comunidade.
É parte das universidades federais um conjunto de centros e laboratórios de pesquisa científica em todas as áreas do conhecimento, produzindo inovações e desenvolvendo um trabalho científico imprescindível ao desenvolvimento socioeconômico do país. Em dez anos, as atividades de pesquisa realizadas nessas universidades levaram o Brasil da 23ª para a 13ª posição entre as nações que mais produzem ciência. (ANDIFES, 2017)
Sustentada no tripé ensino, pesquisa e extensão, as universidades federais formam ininterruptamente gerações para todas as profissões e, não por acaso, aqueles profissionais mais reconhecidos nacional e internacionalmente pela sua contribuição científica são oriundos dela e das demais universidades públicas.
As atividades de extensão junto às comunidades, na forma assistencial de serviços aos segmentos carentes, através da atuação conjunta com outras instituições públicas e privadas, e de programas desenvolvidos em conjunto com diversos segmentos da sociedade, servem para socializar o conhecimento produzido, bem como contribuem para a execução de políticas públicas.
O “ajuste fiscal” permanente, imposto pelas instituições que representam os interesses do capital financeiro internacional, é o retrocesso em termos econômicos, sociais, políticos e culturais, com total subserviência e subordinação do país à ordem mundial do capitalismo financeirizado, comprometendo e dificultando ainda mais a busca de emancipação da maioria da sociedade brasileira.
Este texto é um resumo de um artigo que, em sua versão completa, pode ser acessado em www.edgardigital.ufba.br/?p=5841; ele também foi submetido para ser publicado no Caderno do CEAS.
*Graça Druck, Luiz Filgueiras e Uallace Moreira são, respectivamente, professora titular de Sociologia, professor titular de Economia e professor adjunto de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).