Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Em um livreto escrito em castelhano e publicado no fim do século 15, o bispo de Ávila discorre em linguagem simples e acessível sobre como se comportar de acordo com os preceitos cristãos. Na mesma época, Hernando de Tavalera, conselheiro da rainha Isabel de Castela (1451-1504), publicou um pequeno tratado sobre um tema deveras comezinho: o murmurar (ou fofocar).
O objetivo era demonstrar que comentários depreciativos e pouco edificantes não estavam dentro da moral cristã e, caso o ato fosse incontrolável, era preciso saber como conduzir a situação da melhor maneira possível, se desculpando, por exemplo.
Outro documento da época, La arte de bien morir Y breve confessionário, versa sobre a importância de se preparar para a morte. No texto, o autor esmiúça a chamada boa morte, também em linguagem acessível, para que clérigos ao visitar fiéis, professar missas ou praticar atividade confessional pudessem memorizar e retransmitir conceitos sobre a tentação contra a fé, a desesperança, a impaciência e a avareza, de modo que o fiel pudesse subir aos céus em paz.
Mas nem só desses tratados comportamentais era feita a iniciativa da Igreja Católica de difundir, no fim da Idade Média, a moral cristã na Península Ibérica. Havia a publicação de textos jurídicos, fábulas e espelhos de príncipe (histórias destinadas a criar imagens de reis para serem imitadas ou evitadas) que, escritos em português ou língua castelhana – e não mais em latim –, tinham por objetivo serem mais acessíveis para que clérigos transmitissem a informação para os fiéis.
No total, 56 desses documentos históricos estão agrupados no banco de dados “Obras pastorais e doutrinárias do mundo ibérico“, com acesso aberto para pesquisadores e curiosos. O projeto da Unicamp é fruto de um Auxílio de Jovem Pesquisador, da FAPESP. O projeto reuniu 32 historiadores e filólogos de sete diferentes países. O banco de dados abriga comentários de especialistas nos textos, opção por busca de palavras e até 20% do conteúdo do documento original escaneado.
“Para o pesquisador que vai usar o banco de dados, há uma infinidade de possibilidades para iniciar novos estudos em diferentes áreas do conhecimento. Trata-se dos primeiros escritos em línguas vernáculas de Portugal e Castela. Além dos 56 verbetes, temos mais seis para serem publicados. É um projeto em construção. Mas o nosso maior desafio é como levar esse conteúdo ao grande público”, conta Leandro Teodoro, professor do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e pesquisador responsável pelo banco de dados.
Teodoro explica que, além da comunidade acadêmica, o material pode ser interessante para alunos de ensino médio descobrirem outra realidade a partir do contato com documentos de leitura acessível escritos séculos atrás.
“Aprender sobre esse finalzinho de Idade Média por meio dos verbetes que dispomos no banco de dados pode render ricas descobertas para esses alunos, não só de linguagem ou comportamentos da época, mas também sobre como essas informações eram transmitidas e quais eram as preocupações daquele período”, avalia.
Conquista de fiéis
O pesquisador ressalta que, entre os séculos 13 e 15, a Península Ibérica passava por mudanças profundas. Estava em curso a Guerra da Reconquista, que expulsou o povo árabe dos territórios do sul da Europa em 1492. Por lá, viviam também muitos judeus e a grande maioria das pessoas não sabia ler. Esses fatores dificultavam a difusão do conhecimento sobre a moral cristã, os mandamentos da Igreja e, inclusive, orações como o Pai Nosso e Ave Maria.
Por isso, nessa época, a Igreja adotou como estratégia a divulgação de textos escritos em português e castelhano, de modo que um maior número de clérigos tivesse acesso a conteúdos sobre a moral cristã e pudesse transmitir esses ensinamentos aos fiéis.
“É senso comum pensar a Igreja na Idade Média como uma grande instituição dominadora e articuladora. Uma época em que todos temiam a Deus. Obviamente, era uma instituição dominante, mas ela não era a única. Havia os Estados que começavam a se formar naquela época, por exemplo. Portanto, a mensagem tinha de ser, acima de tudo, atrativa”, explica.
A realidade é que pouca gente, de fato, tinha um conhecimento muito aprofundado sobre a moral cristã. “Muitos desses textos foram escritos para ensinar a clérigos e, por consequência os fiéis, a como rezar as orações e a entender o uso dos mandamentos no cotidiano. Por exemplo, identificar que assassinato e blasfêmia [falar mal de Deus] eram pecados mortais.”
Os documentos hoje reunidos no banco de dados faziam parte da estratégia de difundir a moral cristã pela Península Ibérica. “Mesmo na Idade Média, quando as pessoas temiam o inferno, essas regras de comportamento não eram assimiladas do dia para a noite. O acesso às informações era muito difícil, poucos sabiam ler e muitos moravam afastados das cidades. O contato que tinham com quem era um pouco mais instruído ocorria, geralmente, durante a missa, numa pregação, ou quando recebiam a visita de um clérigo. E mesmo esse sacerdote, muitas vezes, não era tão bem instruído assim, não sabia latim”, conta.
Outro ponto importante era fazer com que a mensagem tocasse o coração de novos fiéis. “A conversão era algo importante. Até nos dias de hoje, ninguém se converte simplesmente por uma pressão imposta. A mensagem tem de fazer sentido para as pessoas. Por mais que para os outros ela possa parecer até absurda, para quem se converte ela tem de tocar fundo a ponto de fazer querer seguir aqueles preceitos”, diz.
Teodoro está realizando outro estudo no momento, em parceria com a Universidade de Friburgo, na Suíça, sobre um gênero específico de textos: exempla (narrativas). O grupo pretende mapear essas pequenas histórias que tinham por finalidade transmitir uma lição para que as pessoas se identificassem com a narrativa definida como o ideal ou refutassem a prática recriminada (leia mais em: agencia.fapesp.br/37178).
“A ideia não é descrever obra por obra, mas mapeá-las para mostrar quais eram as semelhanças entre essas curtas narrativas e entender em que medida elas influenciaram a formação moral cristã em solo ibérico. Vamos cruzar essas narrativas a fim de compreender quais eram os modelos que elas fixavam e se havia um padrão entre esses modelos na formação do indivíduo nessa época: final da Idade Média e começo da Idade Moderna”, explica Teodoro.
Os dois projetos de pesquisa se fundem, pois muitos dos textos que serão analisados já integram o banco de dados. Entre as narrativas estudadas que estão no banco de dados está o texto Calila y Dimna, de 1251. A história escrita para o futuro rei Afonso X, quando ele ainda era um infante, é uma reelaboração – em forma de espelho de príncipe – de uma antiga coleção de contos hindus, que havia feito uma longa jornada pelo Oriente.
Nele, conta-se a história de dois chacais – um representando a fidelidade e o outro, a ganância. Com isso, preceptores religiosos recriaram a historieta em que personagens homens ou animais serviam para exemplificar ações a serem copiadas, reproduzidas ou evitadas.
“A variedade de gêneros usados naquela época para difundir a moral cristã é algo impressionante também. No caso de Calila y Dimna, ensina-se como um rei pode selecionar as pessoas que vão estar ao seu lado durante o seu reinado. Já o texto sobre a murmuração trata de algo mais cotidiano: o que a gente fala e como a gente fala. Mas, independentemente do gênero e do público que se queria alcançar, esses são os primeiros textos em língua vernácula que recontam os costumes da época, a história da língua portuguesa e do castelhano. Tudo era uma forma de propagar a moral cristã naquela época.”