Quando jovens da periferia são impedidos de entrar num shopping, desenrolam-se os capítulos contemporâneos da “Comédia Humana”
Por Fábio Salem Daie
Há cerca de duzentos anos, mais precisamente entre 1842 e 1848, Honoré de Balzac reunia o conjunto de sua obra para a publicação do ciclo romanesco que ficou conhecido como La Comédie Humaine (A Comédia Humana). Resultado de vinte anos de labuta literária, o empreendimento colossal (com mais de oitenta narrativas, muitas interligadas) registrava um dos grandes traços sociais de seu tempo: o esforço da classe burguesa ascendente em firmar-se como classe dominante, não apenas economicamente, senão culturalmente. Isto porque, se a revolução de 1789 havia soado a badalada final à imemorial supremacia política da aristocracia francesa, o período napoleônico e a Restauração mostrariam que havia ainda “feijão a comer” até a substituição de hábitos e valores há muito consagrados.
É nesse contexto que se move Lucien Chardon de Rubempré, famosa personagem de Ilusões Perdidas. Fruto da união entre um farmacêutico e a filha de uma família nobre decaída, o pobre e provinciano Lucien planeja vencer na vida por meio de seus talentos literários. Sua beleza, juventude e brilho conquistam o coração da Sra. de Bargeton, rica nobre da cidade de Angoulême, responsável por sua ruidosa acolhida no salão da aristocracia provinciana e que carregará consigo o poeta à capital parisiense.
O rolezinho de Lucien Chardon na Ópera
Uma das passagens mais importantes do romance tem lugar durante a apresentação de Les Danaïdes, ópera de Antonio Salieri (sim, aquele “arquirrival” de Mozart, em Amadeus). É por meio da Sra. de Bargeton que Lucien tem acesso ao camarote da Sra. D’Espard, prima daquela e marquesa influente da alta sociedade de Paris. É ali também, no entanto, em meio aos grandes brasões da França, que o herói vê tolhidos, pela primeira vez, todos os seus esforços para subir na vida. Jogado entre aqueles de uma classe superior à sua, Lucien fornecerá, sem perceber, as pistas de sua origem humilde e de seu nome vulgar (Chardon).
– Eis o senhor du Châtelet – disse nesse momento Lucien, levantando o dedo para mostrar o camarote da senhora de Sérizy (…). A esse sinal, a senhora de Bargeton mordeu os lábios em sinal de desprezo, pois a marquesa não pôde deixar de escapar um olhar e um sorriso de surpresa, que dizia tão desdenhosamente: ‘De onde saiu esse jovem?’ (…).
– Como fazem o senhor e a senhora de Rastignac, que todos sabem não dispor de mil escudos de renda, para manter seu filho em Paris? – disse Lucien à senhora de Bargeton (…).
– É evidente que o senhor veio de Angoulême – respondeu a marquesa bastante ironicamente, sem deixar o seu lornhão.
Após a ópera, questionada pela prima marquesa se tivera a ousadia de levar o filho de um boticário ao seu camarote, a Sra. de Bargeton se vê obrigada a expiar seus erros, desculpar-se pelo atrevimento e negar três ou dez vezes aquele Cristo vaidoso e belo. Abandonado à própria sorte, Lucien Chardon parte então para o verdadeiro conhecimento de Paris, suas ruas escuras, pensões sujas, figuras miseráveis; bem como seus salões, teatros e galerias vedados à gentalha: tais espaços, somente os burgueses muito ricos ou os artistas muito célebres possuíam a vênia (às vezes não dada) para adentrar.
O desprezo que a nobreza européia dispensava ao burguês era, também, o desprezo por aquele que desconhecia a etiqueta e as boas maneiras da alta sociedade. A detalhes tão eloqüentes (a ponto de denunciarem Lucien) unia-se um universo que poderia girar entre Vivaldi, Bach e Beethoven; Dante, Racine e Milton; os pensadores políticos ingleses, Hobbes, Locke, Bacon; os filósofos da tradição clássica (Platão e Aristóteles) e os filósofos cristãos (Santo Agostinho, Thomás Aquino); francês e latim; noções de arte, história e geo-política; a destreza no manejo de armas; o sentido de dever com o rei e com os servos da terra.
Pese a opressão do período feudal e, posteriormente, das monarquias absolutistas europeias, o burguês era encarado como filisteu e ordinário não somente porque escancarava o privilégio como advindo da exploração das camadas mais baixas (fossem camponeses ou operários). Importava o fato de que não dominava o código: a tradição cultural erguida, sepultada e mil vezes refeita através dos séculos, ao longo da ascensão e queda dos impérios. Isto era, em sentido forte, distintivo.
“Zoar, dar uns beijos, rolar umas paqueras”
Quando jovens da periferia são impedidos de entrar num shopping center de São Paulo, desenrolam-se aí os capítulos contemporâneos da Comédia Humana balzaquiana. Os Luciens Chardon de nosso tempo são meninos e meninas que almejam igualmente melhorar de vida, buscando para isso os símbolos de status e os objetos de desejo pelos quais se sentem menos excluídos de um universo (mesquinho) de valores. Se esses objetos são valor em si, também são os espaços de socialização em que o indivíduo se afirma como integrado.
Todos aqueles elegantes fidalgos usavam luvas magníficas, e ele tinha luvas de policial! Aquele brincava com uma bengala deliciosamente cravejada. Aquele outro usava uma camisa com punhos presos por delicados botões de ouro. Falando a uma senhora, outro torcia uma charmosa gravata (…). Um quarto retirava do bolso de seu colete um relógio liso como uma peça de cem sous (…). Observando essas pequenas bagatelas de que nem suspeitava, o mundo das superficialidades apareceu a Lucien e ele estremeceu pensando que era necessário um enorme capital para chegar ao estado de belo rapaz!
Última atualização da segregação econômica (e racial) que vigora em São Paulo, a repressão ao rolezinho vem escancarar que, em passeata ou arrastão, pesa mais a condição da pobreza do que a de manifestante ou fora-da-lei. Qualquer reunião é suspeita. Ao morro só se concede descer em grupos no carnaval. Fora de época, o morro não desce: ou corre ou marcha. Por essas a elite, quando decide desembolsar cem reais “apenas para entrar” numa casa noturna, sabe, no fundo, que não se trata “apenas” disto. Trata-se, de fato, de comprar a exclusividade do espaço junto àqueles que partilham do mesmo berço (por menos ornado de outras qualidades que não o puro e bom dinheiro). Em São Paulo e no Rio, pagar para entrar é, também, medida social.
Lucien via-se separado deste mundo por um abismo, perguntava-se por que meios poderia transpô-lo, pois desejava se assemelhar àquela esbelta e delicada juventude parisiense. Todos esses rapazes saudavam mulheres divinamente vestidas e belas, mulheres pelas quais Lucien se deixaria cortar em pedaços em troca de um único beijo (…).
La Comédie Humaine completa o ciclo com requintes de histeria. A elite e a classe média escarceam acusações que vão da “falta de modos” a tumulto e vandalismo. Na realidade, a quebra do decoro dos atuais Luciens difere daquela do jovem Chardon. Lucien, à ópera, deixava revelar à aristocracia seu aspecto de impostor, que em vão deseja parecer fidalgo. Lucien adivinhou que tinha ares de quem se vestira pela primeira vez na vida. Os Luciens contemporâneos não pagam esse tributo. Não só derrubam a exclusividade de consumo e de espaços de socialização, mas o fazem sem pedir, criando eles mesmos sua forma de socialização: o (inédito) rolezinho. A classe considerada subalterna inventa para si modalidades de inserção, com capacidade de aglomeração que a classe média apenas conhece em dias de festa.
Quem tem motor faz amor / Quem não tem passa mal (MC Daleste)
Em algum lugar, Jorge Luis Borges explica que a poesia gauchesca – que tanto cantou os feitos do homem do campo na Argentina – é, e só poderia ser, criação de literatos da classe média de Buenos Aires. Isto porque aquilo que os gaúchos reais de fato cantavam ao pé do fogo não era o pampa, o cavalo, o laço: coisas pertencentes ao cotidiano. O gaúchos falavam de coisas a que aspiravam e suas letras, explica Borges, traziam elementos incríveis (causos, personagens…) e algo de tendência reflexiva: um pouco à moda dos repentes e da literatura de cordel nordestinos.
O funk ostentação canta os desejos do jovem da periferia, e que só à primeira vista se resumem à necessidade de consumo. Embora relacionado sem dúvida ao progressivo acesso ao mercado consumidor, facultado pelo aumento da renda e do crédito nos últimos anos, caberia perguntar: assim como as reflexões gauchescas não aspiravam a ser verdadeira filosofia, seria o consumo do funk ostentação tão pretensiosamente sério?
Carros de luxo, helicópteros, aviões e até submarinos surgem nas letras, numa sucessão delirante de marcas e objetos caros, cobertos de ouro. Não algum ouro: mas quilos de ouro. Este toque de (talvez não seja equivocado dizer) “exagero” parece indicar algo óbvio, mas pouco notado nas canções: ostentar e possuir são coisas diferentes.
Se na matriz norte-americana as excentricidades de consumo estão, de fato, à mão de rappers milionários, no Brasil tudo parece tomar novas dimensões, próprias à realidade local. Basta ver que boa parte das letras gringas que falam sobre dinheiro vem acompanhada de, por assim dizer, questões práticas: fundos de investimento, transações vantajosas, negócios imobiliários, especulações arriscadas etc. O motivo é simples: os cantores de rap e hip-hop mais bem sucedidos nos Estados Unidos são também empresários, a ponto de, em 2013, a revista Forbes ter organizado as dez melhores dicas de finanças retiradas das letras de hip-hop1. Assim, a posse efetiva de carros luxuosos e iates se expressa, nas letras, pelos problemas que naturalmente assediam este mundo; diríamos, os ossos do ofício.
Esta constatação, comparativamente, deixa ver o peso que a palavra “ostentação” carrega no contexto brasileiro. O “exagero” presente nas letras aponta, sem querer, para o que há de limite na própria ascensão econômica. Pese o dinheiro conquistado por alguns funkeiros da ostentação, é como se dissesse: “vamos passear de helicóptero, porque trabalhar é de ônibus, mesmo”. Não há contradição. A parte do helicóptero é o sonho, o que resiste de lúdico num contexto em que, se há uísque, faltam ainda educação, saúde e moradia de qualidade.
Talvez isto seja a conexão mais profunda entre os rolezinhos e o funk ostentação. Paquera-se não só pessoas, mas as coisas, sem que isso implique tê-las. É passear antes de possuir, ainda que a posse se mantenha no horizonte. Estar próximo ao universo desejado, dentro dele (nos shoppings), entre um cabedal de objetos que vale mais pelo que tem de possibilidades do que de custo-benefício ou prazo de garantia. Daí a sucessão sem fim de marcas e formas, que atravessam umas as outras, sem fixar-se.
Contudo, o funk ostentação e os rolezinhos também podem ser, ironicamente, o primeiro tempo da questão social no Brasil em 2014, recuperando, quem sabe, ecos de junho do ano passado. Ainda há o que ver nesse rolê.
Fonte: Outras Palavras