Por Rita Coitinho, para Desacato.info.
Recentemente o presidente dos EUA, Donald Trump, declarou que o Brasil é excessivamente protecionista em matéria de comércio, que “joga duro” nas negociações e que os EUA não aceitarão mais essa postura. O Brasil precisa ceder. Logo Trump, que vem comprando brigas com o mundo inteiro, até mesmo com seus aliados do G-7, em razão de seu retorno ao protecionismo comercial e que este ano levou a questão ao ponto de abrir uma guerra comercial de largas proporções com a China. Beira mesmo o inacreditável.
Mas esperar destes governos, dirigidos por políticos que ascendem com aura de redentores da pátria, sem um histórico de lutas populares, sustentados por campanhas midiáticas (e, no caso de Trump, subterrâneas) que se preocupem em fazer um discurso coerente é perda de tempo. Quando as regras do jogo se quebram sem ter quem as sustente, o inacreditável passa a ser a regra, especialmente nesses momentos de crise em que todos os monstros se libertam. Sendo francos, quando foi que em nosso continente tivemos sossego? À luz da história, a verdade é que nossa meia-calmaria de dez anos, entre 2002 e 2012, foi absolutamente excepcional.
Gabriel Garcia Márquez, quando recebeu o Nobel de literatura, disse que seu realismo fantástico não tinha nenhuma dose de invenção. O que ele fazia era usar a imaginação a partir da realidade. Jamais inventou nada. O real é o substrato ideal para o fantástico, o mágico, ou o fantasmagórico. Em seu discurso naquela ocasião (que pode ser lido aqui: http://desacato.info/a-solidao-da-america-latina/), ele relembrava nossa realidade latinoamericana, tão incrível que jamais poderia ter sido inventada por um escritor:
“Nossa independência da dominação dos espanhóis não nos pôs fora do alcance da loucura. O general Antonio López de Santa Anna, três vezes ditador do México, providenciou um magnífico funeral para a perna direita que ele perdera na chamada Guerra dos Pastéis. O general Gabriel García Moreno governou o Equador por dezesseis anos como um monarca absoluto; em seu velório, o corpo ficou sentado na cadeira presidencial, vestido com o uniforme completo e decorado com uma camada protetora de medalhas.
“O general Maximiliano Hernández Martínez, o déspota teosófico de El Salvador, que teve 30 mil camponeses aniquilados num massacre selvagem, inventou um pêndulo para detectar veneno em sua comida, e mantinha as lâmpadas das ruas envolvidas em papel vermelho para vencer uma epidemia de escarlatina. A estátua do general Francisco Morazán, na praça principal de Tegucigalpa, é na verdade do marechal Ney, comprada num depósito de esculturas de segunda mão em Paris”.
Eu poderia completar a lista de Gabo com o revolucionário e ex-escravo haitiano que se coroou rei; com Maximiliano, único imperador do México; a proposta de San Martín de coroar um rei Inca para garantir a unidade e a independência das províncias do Prata e do antigo Vice Reinado do Peru, e tantos outros episódios de nossa realidade alucinante, sempre repleta de governantes autoritários (muitos dos quais, generais)… Mas Gabo é melhor na arte de recuperar fatos reais que parecem brotar da cabeça de algum escritor:
“Não temos tido sequer um minuto de sossego. Um prometeico presidente, entrincheirado em seu palácio em chamas, morreu lutando contra um exército inteiro, sozinho; e dois suspeitos acidentes de avião, ainda por explicar, abreviaram a vida de um grande presidente e a de um militar democrata que tinha ressuscitado a dignidade de seu povo. Já ocorreram cinco guerras e dezessete golpes militares; surgiu um diabólico ditador que está realizando em nome de Deus o primeiro etnocídio da América Latina de nosso tempo. Nesse ínterim, 20 milhões de crianças latino-americanas morreram antes de completar um ano de vida – mais do que as que nasceram na Europa desde 1970”.
Depois que García Márquez proferiu este discurso, tivemos ainda o desastre humanitário na América Central e a Guerra das Malvinas. Depois tivemos o neoliberalismo e seus milhares de mortos por fome em nome da liberdade comercial. Menem e suas “relaciones carnales” com os EUA, Fernando Collor, o autointitulado caçador de Marajás, que bloqueou o dinheiro de um país inteiro no primeiro mês de governo e acabou derrubado diante da suntuosidade de seus imóveis cobertos de luxo e mau-gosto pagos com dinheiro público. No século XXI, quando parecíamos virar a página com os governos populares, mais uma série de golpes e retrocessos assolam nossas terras, alguns tão inacreditáveis quanto o funeral da perna direita de Antonio López Santana. No Brasil, desde 2013, temos manifestações democráticas pedindo ditaduras e golpes de Estado; ator pornô eleito em chapa moralista-cristã; príncipe defensor da monarquia eleito deputado; capitão dando ordens para general.
Com tudo isso em nosso currículo, como cobrar coerência no discurso de Donald Trump? Ao fim e ao cabo, o presidente estadunidense está levando adiante seu programa de governo, e nisso ele é bastante coerente: fazer a América (só o pedacinho deles, os EUA) “grande outra vez”, não importa às custas de quem. Enquanto Trump coleciona crises internacionais e desmonta o aparato construído pelos próprios EUA no pós-Segunda Guerra, a economia estadunidense dá sinais de recuperação, embora, é claro, não haja qualquer melhora para seus 40 milhões de sem-teto – a recuperação estadunidense é profundamente desigual e concentradora de renda.
Nosso problema, enquanto brasileiros e latino-americanos não se chama Donald Trump, embora sua política pouco previsível e agressiva tenha aumentado a sensação de insegurança no mundo – aqui mesmo nesse espaço já tratamos deste tema inúmeras vezes. Nosso problema central é a ausência de um projeto nacional coerente e o poder econômico concentrado nas mãos de uma elite desorientada, despolitizada, ignorante de seu próprio povo e profundamente antinacional. Uma elite que não vê nenhum problema em, nesse momento, abandonar trinta anos de construção de instituições democráticas e dar espaço ao caos institucional e à violência. Que aceita, docilmente, abrir mão da soberania nacional para ficar bem aos olhos das autoridades dos EUA. Que prefere fazer suas compras em Miami ou New York e zomba de seu próprio povo. É isso que está no programa de seu candidato preferido nessas eleições – sob um discurso “nacionalista” repleto de verde e amarelo, de ameaças a quem pensa diferente e vazio de projetos. Trump, aliás, deve estar ansioso pela vitória do candidato que já bateu continência à bandeira dos EUA e que promete, desde já, retornar àquela prática diplomática que julgávamos superada, de alinhamento automático ao Tio Sam, com direito à entrega da Base de Alcântara, das estatais e tudo o que nosso vizinho mais forte desejar – para superar lá os seus próprios problemas enquanto nós, aqui, nos afundamos nos nossos. Vamos ajudar os estadunidenses a serem “great again”,
Essa tremenda viralatice é a origem de nossa insuperável solidão. Sempre que este país começa a se aproximar de seus vizinhos, tecer laços com outros gigantes em desenvolvimento e procurar seu próprio caminho, os mesmos mensageiros do atraso organizam-se para sabotar tudo o que possa levar-nos a um novo patamar. A sanha destruidora é tamanha que provavelmente elegerão presidente alguém tão detestável que mesmo os ícones mais detestáveis do planeta desejam distância. Ao que parece, nosso país vive uma febre, mais grave até que aquela que acometeu a Macondo de Cem Anos de Solidão. Lá ninguém podia dormir. Aqui ninguém pode opinar, sob o risco de ser agredido por cidadãos comuns com comportamento febril e desnorteado, mantidos sob o estresse permanente de um bombardeio (des)informacional via Whatsapp. Mas essa febre, como tantas outras que já vivemos, vai passar. Só não sabemos a que custo. E o Brasil, já acostumado aos lances fantásticos, levará anos para recompor-se e voltar a imaginar caminhos para superar sua solidão.
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Rita Coitinho é socióloga, Dra. em Geografia e membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz.