Por Murilo Pajolla, Brasil de Fato.
Avança na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei (PL) 571/2022, que transfere ao presidente da República o poder de autorizar por decreto a mineração em qualquer área do país, incluindo unidades de conservação, terras indígenas e propriedades particulares. A matéria é considerada inconstitucional por especialistas ouvidas pelo Brasil de Fato.
Para ser aprovado, o PL não precisa ser votado por todos os deputados. Basta que ele seja aprovado por quatro comissões da Casa: Constituição e Justiça, Minas e Energia, Meio Ambiente e Direitos Humanos. É a chamada tramitação conclusiva, que envia a matéria diretamente para o Senado em caso de aprovação pelas comissões. Até agora, nenhuma das comissões emitiu parecer sobre o projeto.
Dentro da Comissão de Meio Ambiente, o relator designado em 12 de maio é o deputado Evair Vieira de Melo (PP-ES). Em 2014, última eleição em que foi permitido o financiamento privado, a campanha dele recebeu R$ 50 mil da gigante da siderurgia ArcelorMittal, que também atua no ramo da mineração.
Aliado das mineradoras, Evair foi um dos sub-relatores do novo Código de Mineração, considerado um retrocesso em relação à preservação ambiental e à proteção das populações atingidas pelos empreendimentos. Na relatoria, ele propôs a aprovação automática de projetos minerários que fiquem mais de um ano em análise na Agência Nacional da Mineração (ANM).
O Brasil de Fato procurou o deputado Evair Vieira de Melo e perguntou se ele considera haver conflito de interesses, por ter sido financiado por uma empresa que poderá se beneficiar do PL por ele relatado. Até a publicação, não houve resposta e o espaço segue aberto.
Nesta quarta-feira (25), a mesa diretora da Câmara aceitou o pedido do deputado Túlio Gadêlha (Rede-PE) de submeter o projeto à Comissão de Direitos Humanos, que até então estava fora da tramitação. Na justificativa, Gadêlha afirmou ser preciso levar em conta o interesse das comunidades indígenas afetadas.
A comissão de Meio Ambiente está tomada por ruralistas. O presidente é Covatti Filho (PP-RS). Sua trajetória política está ligada ao agronegócio no Rio Grande do Sul, onde foi secretário da Agricultura. Segundo o De Olho Nos Ruralistas, é autor de um dos textos que inspirou o Projeto de Lei nº 6299/2002, o PL do Veneno.
Outro político financiado pelo agronegócio é o 2º Vice-Presidente da Comissão de Meio Ambiente, Neri Geller (PP-MT). Latifundiário e inimigo autodeclarado do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), é relator do PL 337/2022, que pretende excluir o estado do Mato Grosso da Amazônia Legal.
“Interesse nacional”
O PL 571/2022 prevê que projetos minerários de “Interesse nacional” poderão ser liberados via decreto presidencial, caso haja contexto de crise global ou interna que prejudique o abastecimento.
A autorização seria válida para qualquer território do país, incluindo unidades de conservação protegidas por lei e propriedades particulares. Pelo texto, indígenas teriam direito “à participação na lavra [mineral]”, e proprietários seriam indenizados.
O autor da matéria é o deputado José Medeiros (PL-MT). Vice-líder do governo de Jair Bolsonaro (PL), o parlamentar é um dos principais defensores da regulamentação do garimpo ilegal e aliado próximo do presidente.
Ao justificar a proposta, Medeiros escreveu que o conflito na Ucrânia poderá prejudicar o abastecimento de fertilizantes, importados principalmente da Rússia. “Sem o insumo poderemos ir à completa bancarrota, na medida em que o agronegócio, principal sustentáculo da economia, não poderá se desenvolver de forma adequada”, argumentou.
O presidente Jair Bolsonaro (PL) já afirmou que o conflito internacional é uma “boa oportunidade” de abrir as terras indígenas à mineração. E tem como agenda prioritária o PL 191/2020, que permite a instalação de grandes empreendimentos em territórios originários. Praticamente todas as organizações indígenas brasileiras, no entanto, são contrárias a projetos minerários nas áreas protegidas.
Claramente inconstitucional
Duas advogadas especialistas em direito ambiental afirmaram ao Brasil de Fato que a iniciativa é “claramente inconstitucional”.
Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, classificou a proposta como “inconsequente” ao dar “poder ilimitado” ao chefe do Executivo, ferindo princípios como os da legalidade, impessoalidade e moralidade.
“A centralização de poder decisório prevista no projeto de lei é inconstitucional. Vivemos numa democracia, abalada pelas tendências autoritárias do atual governo, mas ainda uma democracia”, apontou.
A advogada Juliana Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), diz que um projeto com essas características nem tramitaria no Congresso se o contexto brasileiro fosse de normalidade institucional.
“O PL se insere em uma estratégia mais geral de avanço sobre essas terras protegidas. Um avanço completamente indiscriminado. Porque são as terras onde ainda existe madeira e recursos florestais”, afirmou.
“Para as terras indígenas, há necessidade de lei regulamentadora e autorização do Congresso, empreendimento por empreendimento, mediante decreto legislativo, assegurada a oitiva das comunidades afetadas”, alertou Batista.
As críticas das advogadas ao PL 571/2022 foram publicadas em uma reportagem no final de abril. Na ocasião, o Brasil de Fato procurou o autor do PL, o deputado José Medeiros, para abrir o espaço ao contraditório. Ele nunca respondeu aos questionamentos.
Edição: Rodrigo Durão Coelho