“O Brasil não produz muitos dados e os dados que produz não são com a qualidade devida. Então, muitos estados não elaboram estatísticas relacionadas, por exemplo, aos homicídios e que tenha a informação de raça”. Este é o relato da jornalista investigativa Cecília Olliveira, diretora da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), para a Alma Preta Jornalismo sobre a ausência de dados relacionados à questão racial no Brasil.
Durante o 17° Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, que se encerrou neste domingo (7), o jornalismo investigativo e de dados foram discussões centrais das mesas e painéis compostos por profissionais de diversos veículos. Segundo as experiências relatadas, há um desafio ao se cobrir os temas que atravessam a população negra pela dificuldade de se encontrar dados – ou por sua não publicização.
Ainda de acordo com a diretora da Abraji, dentro da temática de segurança pública, há estados que não produzem dados sobre letalidade policial e homicídios cometidos em decorrência de atividade policial.
“Assim, não tem como a gente produzir políticas públicas eficientes sem os dados que poderiam embasar essas políticas”, destaca.
A jornalista foi uma das participantes da mesa “Os efeitos da cobertura de violência racial na rotina de repórteres negros”, em que também esteve presente Lola Ferreira, repórter do UOL e com passagem na organização Gênero e Número.
De acordo com Lola Ferreira, quando se fala em segurança pública, há uma dificuldade de se encontrar mais informações e dados, porque não é muito do interesse dos órgãos oficiais relacionados divulgar determinadas informações.
“Eles não colocam de forma tão fácil, eles não dizem o perfil daquela pessoa, por exemplo, que foi morta numa ação de violência policial. Então a gente tem que buscar os meios para descobrir. Quando a gente fala de saúde, era para todos os dados terem dados cor/raça, mas ainda é um caso que entra muito como não preenchido”, relata Lola à Alma Preta Jornalismo.
Segundo ela, as pessoas ainda não entenderam a importância de se ter dados categorizados e com uma boa qualidade. “Quando a gente consegue mapear, por exemplo, que a maioria das vítimas de estupro são mulheres negras, a gente busca entender e colocar isso em um contexto mais social, de como a mulher negra é vista, mas as pessoas em geral não acham isso importante. Então desconsideram”, pontua a repórter do UOL.
No mesmo sentido, Gil Luiz Mendes, repórter da Ponte Jornalismo, também concorda que há ausência de informações raciais sobre a população negra.
Gil Luiz Mendes ao centro | Crédito: Fernanda Rosário/ Alma Preta Jornalismo
“Uma pauta que a gente fez chama-se ‘Morte sem cor’, porque a polícia dá como indefinido a cor das pessoas negras, principalmente quando cai na questão racial, em que a polícia não quer ser apontada de racista. Então os dados em relação a raça, principalmente em São Paulo, nesse recorte que a gente fez, é bem falho mesmo”, ressalta o jornalista.
Não publicização dos dados
A jornalista de dados na TV Globo Ana Carolina Moreno também esteve durante o Congresso da Abraji e pontuou que enfrenta dificuldades de encontrar informações raciais em bases de dados sobre educação. De acordo com ela, este ano o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) retirou os microdados do ar por um entendimento de que poderia haver um cruzamento de informações e levar à identificação de pessoas.
“São dados anonimizados, então, em tese, eles não estão submetidos à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, mas mesmo assim o Inep diz que daria pra fazer algum cruzamento. Então com essa alegação, em vez de talvez divulgar microdados só que sem todas as informações, eles retiraram a divulgação desses microdados”, explica.
De acordo com ela, da forma como os dados eram disponibilizados antes era possível fazer matérias, por exemplo, mostrando a formação dos professores segunda a raça para mostrar se professores negros tinham uma formação mais precária que a de educadores brancos. Também não é possível fazer matéria detalhando o perfil racial dos estudantes da educação básica.
“A gente usava muito esses dados para mostrar a desigualdade racial na educação. As bases educacionais eram um exemplo para o Brasil inteiro e agora houve um retrocesso enorme”, conta a jornalista de dados, que menciona outras dificuldades já enfrentada anteriormente, como problemas nas autodeclarações motivadas por estigma, por exemplo.
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Como enfrentar essa realidade?
A diretora da Abraji Cecília Olliveira conta que para enfrentar essa situação criou o Fogo Cruzado, que nasceu em 2016 para mapear tiroteios no Rio de Janeiro e usa a tecnologia para produzir e divulgar dados abertos e colaborativos sobre violência armada.
“A gente produz algumas informações relativas à violência armada especificamente, mas a gente também encontra dificuldades em levantar informações sobre raça, porque as nossas informações são colaborativas. Então a gente pega, por exemplo, informação da imprensa que não vem com esse dado, informação das polícias que não vem com esses dados, então também encontramos essa dificuldade”, relata Cecília.
A repórter do UOL Lola Ferreira também conta que para lidar com casos em que dados específicos não são encontrados, ela trabalha com documentos, entra em contato com a família e entende o contexto do ocorrido.
“Falando de saúde, quando a gente não encontra dados, a gente tenta levantar personagens que se encaixam naquilo. A gente tenta trazer especialistas que se debruçam sobre aquilo na pesquisa universitária para contextualizar aquela informação dentro de um panorama racial”, pontua.
“Na pauta de segurança, é mais uma investigação de ir atrás dos documentos, de ouvir as pessoas. Se, felizmente, não for uma ação que terminou em morte, ouvir a própria vítima, porque muitas vezes a violência policial, quando é marcada por questões de raça, tem muito isso de ouvir”, complementa Lola Ferreira.
A jornalista de dados Ana Carolina Morena ressalta que também faz matérias questionando a ausência dos dados.
“Os microdados do Enem também vieram com menos informações. A gente espera que os dados do Censo Superior também sigam esse mesmo problema e que isso só deva ser resolvido com entendimentos jurídicos muito claros e concretos de que dá para divulgar essas informações ou por meio de guias e manuais de como divulgar as informações anonimizadas para garantir a proteção dos dados pessoais e também garantir informações para a sociedade”, acrescenta.
Na mesa sobre “A cobertura da pauta trans no Brasil”, durante o Congresso da Abraji, o jornalista Caê Vasconcelos, autor do livro Transresistência, pontua que há também uma ausência de dados sobre a população trans no país e que essa também é uma informação relevante para produções jornalísticas. É raro ver fontes oficiais dando dados sobre a população trans, sobretudo com um recorte racial.
Mesa sobre a cobertura da pauta trans no Brasil | Crédito: Fernanda Rosário/ Alma Preta Jornalismo
“Tem que valorizar os dados da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). É a Bruna Benevides, uma pessoa, que faz tudo isso. A gente tem os dados porque a Bruna para o tempo dela e ela não recebe para isso. Imagina se o Estado olhasse para esses dados? A gente precisa que o IBGE traga quantas pessoas trans existem no Brasil”, explica.
“Se sai qualquer documento sobre segurança pública, tem que ter os dados sobre a população trans e tem que ter o recorte racial, que, como muito bem a Antra traz, historicamente mais de 80% dos assassinatos são de mulheres trans e travestis negras. Então quando a gente está falando sobre uma luta contra a transfobia, tem que ser uma luta contra o racismo. Sem esses dados a gente vai continuar sem conseguir falar de políticas públicas”, acrescenta Caê Vasconcelos.
Para o jornalista Gil Luiz Mendes, o próprio poder público tem que buscar fiscalizar a produção de dados. “O Ministério Público fiscalizar a polícia, mas também fiscalizar todo o processo do sistema de segurança, cobrar por exemplo alguma lei e determinação que fosse obrigatório produzir dados claros”, finaliza.