Por Laércio Portela.
Seria irônico se não fosse trágico. Na semana em que a Oxfam Brasil divulga relatório alarmante sobre a desigualdade no país, o Fórum Econômico Mundial informa que avançamos no ranking de competitividade global. Alguns dirão que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Mas não estaria justamente aí o problema, considerando que o que nos faz retroceder de um lado é o que garante o crescimento do outro?
O relatório da Oxfam define a crise fiscal vivida pelo Brasil entre 2014 e 2015 como o ponto de inflexão a partir do qual, ainda no governo da ex-presidenta Dilma Rousseff, houve uma mudança de rumo na política econômica que passou a repercutir na política redistributiva. E que esse processo se agravou bastante no pós-impeachment.
“As reformas profundas que têm sido propostas nos últimos 16 meses afrontam o que preconiza nossa Constituição, e ameaçam reverter o processo de construção de nosso Estado de bem-estar social, em um período de crise econômica. Isto ocorre à revelia da população que, mesmo desconfiando do Estado, espera do setor público o atendimento de suas necessidades básicas. Existe evidente e acelerada redução do papel do Estado na redistribuição dos recursos em nossa sociedade, o que aponta para um novo ciclo de aumento de desigualdades”.
A trajetória de queda lenta da desigualdade no país – redução de 37% para 10% da população abaixo da linha da pobreza entre 1988 e 2015 – cessou e começamos 2017 com 16 milhões de brasileiros nessa faixa e uma perspectiva de terminarmos o ano com mais 3,6 milhões de pessoas passando a viver entre os mais pobres dos mais pobres, segundo o Banco Mundial.
O mundo real e a percepção do empresário
As reformas que preconizam o futuro sombrio para o combate às desigualdades sociais, segundo a Oxfam, são as mesmas que impulsionaram o Brasil, depois de quatro anos de queda, a voltar a subir no ranking de competitividade elaborado pelo Fórum Econômico Mundial, em parceria com a Fundação Dom Cabral. O Brasil deixou o 81º lugar no ranking e agora é o 80º, num total de 137 países. Avanço de uma só posição, mas muito festejado pela tríplice aliança entre governo, mercado e mídia.
O Brasil melhorou em 10 dos 12 itens avaliados. “A eficiência do mercado de trabalho subiu três posições. Esse pilar foi claramente afetado positivamente pela reforma trabalhista, sendo as altas mais expressivas percebidas nos subfatores qualitativos referentes à cooperação nas relações com o empregador do trabalho (+12 posições) e profissionalização da gestão (+11 posições)”, diz o Relatório Global de Competitividade 2017-2018 do Fórum Econômico Mundial.
A grave crise institucional que comanda a agenda pública nacional nos últimos dois anos envolvendo os Três Poderes da República, a crise de representatividade do Congresso Nacional mais conservador da história recente do país, as recorrentes denúncias de violações de direitos e seletividade nas investigações da Operação Lava-Jato passaram ao largo da avaliação do Fórum, que destacou a “independência do Judiciário e a força das normas de auditoria e relatórios” e para o qual ficaram evidenciados “os ganhos de credibilidade das instituições brasileiras durante o processo de renovação, luta por maior transparência e combate à corrupção”.
A alta mais expressiva do Brasil se deu no item Inovação com o avanço de 15 posições, consideradas a capacidade de inovar (ganho de 19 posições), qualidades das instituições de pesquisa científica (ganho de 9 posições) – não esqueçamos aqui dos cortes drásticos de recursos federais para as áreas de ciência e tecnologia -, a despesa das empresas com pesquisa e desenvolvimento (12 posições) e a colaboração universidade-indústria (20 posições).
O detalhe é que essas variáveis todas não são fruto de análise de dados objetivos, mas de percepções subjetivas dos executivos colhidas em entrevistas e refletem o seu “otimismo” no momento em que a desigualdade social volta a crescer. O único item com dados concretos sobre inovação é o índice de pedidos de patentes (justamente o único subfator em que o Brasil caiu duas posições). O mundo real contradizendo o mundo idealizado do nosso empresariado.
Paraíso fiscal ou modelo de negócios?
Façamos agora uma pausa para um rápida viagem à cidade de Zug, na Suíça. Antes disso convém explicar que a Suíça lidera o ranking de competitividade global. Um modelo, portanto, para o empresariado brasileiro e do mundo. Pois bem, Zug, um povoado de 15 mil habitantes entre Zurique e Davos, tem registrada 30 mil empresas. Zug tem mais sedes de empresas multinacionais do que o Rio de Janeiro com 6,5 milhões de habitantes, embora todas em salas modestas com cinco ou seis funcionários. Lá está, por exemplo, a Burguer King, que tem como maior acionista o bilionário brasileiro Jorge Paulo Lemann.
Zug caiu no radar do jornalista inglês Andy Robinson quando este cobria as reuniões anuais do Fórum Econômico Mundial, em Davos, nos alpes suíços. Lá onde uma vez por ano os homens mais ricos do mundo se reúnem para analisar relatórios de competitividade, bater palmas para políticas de ajustes fiscais implementadas mundo a fora e planejar ações de filantropia a países do terceiro mundo abalados por desastres naturais e políticos, como o Haiti. Andy mata a charada: “Zug é o cantão da Suiça – país classificado como paraíso fiscal pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – onde se pagam menos impostos sobre o lucro e outros ganhos de capital”. Um fator que, certamente, contribui decisivamente para o aumento da competitividade do país líder do ranking.
Zug é, afinal, um pequeno símbolo das idealizações competitivas do “mercado” e a Suíça o paraíso onde se escondiam mais de 8 mil contas não declaradas à Receita pela elite brasileira. Reveladas após vazamento feito por funcionário do HSBC suíço que veio à tona em 2015.
A festa do andar de cima
Voltemos ao Brasil. Aqui onde os ventos da desigualdade sopram sem barreiras. Onde fechamos a semana com mais um relatório. Desta vez produzido pela consultoria Capgemini. Em 2016, quando a economia brasileira afundou com uma queda de 3,6% no PIB e 14 milhões de desempregados, o Brasil viu aumentar em 10,7% o número de milionários, índice superior à média mundial (7,35%). São considerados milionários todos aqueles que possuem US$ 1 milhão ou mais em ativos disponíveis para investimento, excluindo imóveis em que residam, artigos de coleções e bens de consumo duráveis.
A riqueza acumulada pelos milionários brasileiros subiu de US$ 3,7 trilhões em 2015 para US$ 4,2 trilhões em 2016. Passamos de 148,5 mil super-ricos para 164,5 mil. As explicações para tremenda falta de sintonia com o mundo real (de recessão econômica, alta do desemprego e aumento da pobreza verificado no ano passado) está no “otimismo” do “mercado” com a queda da ex-presidenta Dilma Rousseff e a expectativa da retomada da economia. Foi na arena da Bolsa de Valores que a festa do andar de cima aconteceu. A bolsa brasileira foi a que mais subiu em todo o mundo no ano passado com alta de 69% em dólar. Não importa que as expectativas tenham sido frustradas no mundo real, os ganhos financeiros foram devidamente computados. Lembremos que os recordes de transações na bolsa continuam se acumulando em 2017.
Até que ponto o descompasso entre o boom do mercado financeiro e o aumento da desigualdade deve ser aceito com naturalidade pelos brasileiros? Da mesma forma como vamos nos acostumando a ver o crescimento no número de moradores de rua cascavilhando sacos de lixo nas calçadas para se alimentar? Ou crianças tomando as esquinas das grandes cidades pedindo moedas a motoristas impacientes nos semáforos?
Democracia importa
Para a Oxfam Brasil, o país precisa de mais e não menos gastos sociais em saúde e educação; menos de uma reforma previdenciária e mais de uma reforma tributária na qual quem tem mais pague mais e quem tem menos pague menos (com menos impostos sobre consumo e mais sobre patrimônio e lucro); combate à discriminação racial e de gênero (que só reforça e estigmatiza a desigualdade social); geração de emprego estável e formal; política consistente de valorização do salário mínimo; e defesa da democracia.
“A redução de desigualdades requer um sistema democrático saudável. No Brasil, durante o período da ditadura militar, até as primeiras eleições gerais com voto direto em 1989, o índice de Gini para renda variou, mas não saiu do patamar do 0,750. A partir de então, começou uma trajetória de redução que nos levou ao patamar de 0,620 em 2013. A possibilidade de escolher governos não explica sozinha a trajetória histórica, mas a ausência de democracia certamente é um empecilho à redução de desigualdades”.
No cruzamento das análises dos relatórios da Oxfam Brasil e do Fórum Econômico Mundial fica evidente a qual agenda o governo Temer tem servido. Fica evidente também o quanto a crise de representatividade política, o aumento do desemprego casado com a flexibilização das leis trabalhistas, a redução dos gastos sociais e do tamanho do Estado brasileiro, o incremento do discurso antidemocrático e o boom do mercado financeiro estão direta ou indiretamente relacionados.
Fonte: Jornal GGN