O governo de Javier Milei completou um ano no dia 10 de dezembro, apesar das previsões iniciais de que não iria durar seis meses. Para a missão a que veio, pode-se afirmar que é um governo bem-sucedido. Sob o pretexto de controlar a inflação e retomar o crescimento, todos os indicadores sociais pioraram no seu governo, alguns de forma inusitada. Segundo o Relatório do Observatório Social da Universidade Católica da Argentina (UCA), 49,9% da população se encontra abaixo da linha da pobreza, isto é, não dispõe de renda suficiente para custear o que chamam de “cesta básica total” de uma família, o que inclui habitação, alimentação, educação, saúde e transporte. Conforme o relatório, pelo menos 23 milhões de pessoas estão nessa condição. Cerca de 4 milhões de argentinos entraram nessa condição em 2024, portanto durante o governo de Milei.
A natureza do ajuste econômico da Argentina é revelada pelos dados concretos: em nome da queda da inflação, desde o começo do governo, os preços de água, gás, luz e transporte público estão bem mais altos, o poder aquisitivo de salários e aposentadorias despencou, juntamente com a produção industrial e os serviços. De acordo com relatório da Bolsa de Comércio de Rosário, o consumo médio de carne bovina na Argentina (quinto maior produtor do mundo), deverá ser de 44,8 quilos por habitante neste ano, o menor volume desde 1920, mais de um século atrás.
Ao mesmo tempo em que trabalha para constituir uma maioria de pobres e indigentes, o Presidente da República habita um universo paralelo, no qual alimenta firme convicção que o problema da Argentina começou há um século, quando o país teria “abandonado” o modelo capitalista para aderir às ideias do “socialismo” ou do “coletivismo”. Essa versão pode até enganar alguns por algum tempo, mas se depara com um obstáculo nada trivial: é um delírio. Como mostram os historiadores argentinos, há um século a Argentina amargava uma crise dramática decorrente justamente do seu atraso econômico. Não por acaso, o movimento peronista, que tem grande base popular no país por ter realizado importantes mudanças em favor da população, emplacou a partir da década de 1940.
Milei e seus aliados alegam que a partir da chegada dos peronistas ao poder, a Argentina teria entrado em um processo de decadência econômica. Porém, essa hipótese não resiste a um exame mais cuidadoso dos fatos. É relativamente fácil de verificar que o grande problema da Argentina começou com a chegada dos militares no poder, que colocaram em prática as políticas neoliberais. O historiador argentino Ezequiel Adamovsky, por exemplo, mostra que, a partir do final da Segunda Grande Guerra em 1945, nos trinta anos seguintes, a Argentina dobrou sua renda per capita e aumentou seu PIB a taxas superiores às dos Estados Unidos, Reino Unido, Austrália e outros. Segundo o autor, foi somente em 1975 que a economia do país começou a declinar abruptamente, em relação à praticamente o mundo inteiro. Mas, afinal, o que significa a “simples realidade” comparada com as inabaláveis convicções do presidente da Argentina?
No dia em que seu governo completou um ano, Milei declarou que sua equipe econômica está finalizando a proposta de uma reforma tributária, que tem como objetivo reduzir em 90% os impostos nacionais em 2025. Prometeu também, além da tributária, uma série de reformas estruturais para a Argentina no ano que vem: previdenciária, uma nova reforma trabalhista, uma profunda reforma penal, uma reforma política e outras tantas. No discurso de um ano de governo, o presidente retomou seu devaneio de extinção do Banco Central que, segundo ele, deve “terminar para sempre com a inflação” na Argentina.
A fórmula de Milei, se for colocada em prática integralmente, significará uma explosão econômica e social rápida, da Argentina. Ele defende um programa que nunca foi aplicado em qualquer país, com base exclusivamente em esquemas abstratos, que ignoram olimpicamente a realidade. Um exemplo disso é o sonho de implementar um tratado de livre comércio com os Estados Unidos, do tipo da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), que foi rechaçada pelos países do Mercosul no início dos anos 2000. A assessoria econômica de Milei não lhe informou que a economia argentina concorre com a economia norte-americana em vários setores?
A ex presidenta Cristina Kirchner, em uma palestra recente, relatou que durante o governo de Raul Alfonsin (1983-1989), um alto funcionário do governo foi ao Banco Mundial pedir empréstimo para privatizar os setores siderúrgico e petroquímico. Com o dinheiro, o governo pretendia “sanear” os setores e prepará-los para a privatização (é o conhecido processo de “privataria”). Como eram recursos solicitados para privatizar setores industriais estratégicos, receita número 1 do Banco Mundial para países subdesenvolvidos, o membro do Governo Alfonsín tinha certeza de que seu pedido seria imediatamente atendido. Segundo Cristina, o presidente do Banco Mundial negou imediatamente o empréstimo, justificando que os Estados Unidos nunca permitiriam que o Banco concedesse o empréstimo, porque a economia argentina competia diretamente com os setores petroquímico e siderúrgico norte-americano. Ou seja, no que se refere à relação com o país líder do imperialismo, a visão de Milei, além de subserviente, é caracterizada por uma impressionante ignorância da realidade econômica argentina.
Apesar das bizarrices do governo, a proposta de economia política que está sendo posta em prática já foi tentada algumas vezes no país vizinho (e na vizinhança). Se trata de implantar um modelo baseado exclusivamente na financeirização da economia. Ou seja, ao invés dos recursos econômicos serem estimulados a produzir bens e serviços, eles são direcionados para o mercado financeiro, com a maior rentabilidade e o menor risco possível. Não há aposta por parte do governo, em um modelo de produção na Argentina. Ao invés de colocar o dinheiro no processo produtivo, o capitalista é induzido a colocar seus recursos no banco, o que garante uma rentabilidade em dólares, bastante robusta. Quem vai se arriscar na produção em um país que apresentou queda do PIB neste ano em torno de 3% ou 3,5%?
Liquidação da produção industrial e dizimação do mercado consumidor interno é uma fórmula que, mais cedo ou mais tarde, irá provocar a explosão da sociedade argentina. O cálculo do imperialismo americano e do sistema financeiro, que no momento dão sustentação à Milei, é ganhar muito dinheiro em pouco tempo, transformando a Argentina em uma base de extração de lucros extraordinários, nem que seja por um período relativamente curto.
O modelo praticado na Argentina é a menina dos olhos dos países imperialistas. Destruição da indústria, liquidação do mercado consumidor interno, superávit orçamentário às custas da fome da população, déficit em conta corrente e dívida externa insustentável. A dívida externa está em 286,9 bilhões de dólares, equivalente a 45% do PIB. Neste momento, o país está em negociação com bancos internacionais para obter um empréstimo de cerca de US$ 2,7 bilhões, visando cumprir suas obrigações com a dívida em janeiro de 2025. De certa forma, toda a política de espoliação do povo argentino tem como centro a manutenção dos pagamentos aos banqueiros.
O governo Milei representa um aprofundamento nas formas de dominação imperialista, cujo padrão de exploração dos trabalhadores, e entrega das riquezas nacionais, não se sustenta sem uma grande restrição dos espaços de democracia, que já são bastante limitados nos países subdesenvolvidos. Passado um ano de governo, após um período de observação para testar a reação popular – que foi pífia considerando a truculência das medidas – há um movimento dos governos imperialistas e dos grandes meios de comunicação, em apoio ao governo Milei. Aumentou a ênfase na caracterização da política de governo como sendo um “remédio amargo, porém necessário”. Não podemos ter sequer um resquício de dúvida de que, até uma possível implosão do governo Milei, todos os países da América Latina correm o risco de sofrer essa experiência de destruição nacional, apelidada de “anarcocapitalismo”.
Economista do DIEESE e colunista do Portal Desacato.
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