Por Luís Eduardo Gomes.
A partir dos dados divulgados pela Secretaria de Segurança Pública (SSP), duas doutorandas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul elaboraram o Atlas do Feminicídio no Rio Grande do Sul. O objetivo, segundo as autoras, é dar visibilidade aos casos e ajudar na construção de políticas públicas de prevenção. De acordo com as pesquisadoras, este é o primeiro trabalho do tipo especializado em feminicídios regionais do Brasil.
Idealizadora do projeto, Suelen Aires Gonçalves, doutoranda no curso de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania (GPVC), diz que, inicialmente, a intenção era dar visibilidade aos dados e facilitar o acesso. Ela conta que havia uma demanda de outros pesquisadores sobre o tema e tinham dificuldade de acesso aos dados de feminicídio.
“A gente buscou consolidar numa plataforma e poder ter essa acessibilidade. E outro desafio também é ver de que maneira a gente pode contribuir para a reflexão sobre o papel das políticas públicas que tivemos até os dias de hoje. Eu acho que é muito importante a gente pensar essas últimas três décadas, desde a fundação da primeira DEAM [Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher] em Porto Alegre, em 1988, para compreender o que avançamos do ponto de vista da ampliação da rede de enfrentamento à violência, quais foram os limites que nós tivemos, porque tivemos, e quais serão os desafios do próximo período. Temos essa compreensão de que podemos deixar essa contribuição para que outros, com o nosso trabalho, possam refletir e pensar alternativas”, diz.
Para analisar os dados, ela convocou a economista Cristina Maria dos Reis Martins, doutoranda do curso de Políticas Públicas da UFRGS e também integrante do GPVC, a participar do projeto. Cristina destaca que uma das primeiras conclusões que se chega ao observar os dados é que o feminicídio não segue a mesma dinâmica de outros crimes. “Tem várias correntes teóricas que falam que a criminalidade é resultado do processo de urbanização. O feminicídio tem um aspecto cultural, então ele pode acontecer em qualquer região. Isso a gente vê no Rio Grande do Sul. Enquanto os homicídios estão muito concentrados na Região Metropolitana e nas áreas mais urbanizadas, porque uma das causas seria esse acúmulo de urbanização e a precariedade do processo de urbanização acelerada, os feminicídios não, estão espraiados por outras áreas”, diz.
Há alguns anos, o governo estadual vem batendo na tecla de que 18 municípios — Alvorada, Cachoeirinha, Canoas, Capão da Canoa, Caxias do Sul, Esteio, Gravataí, Guaíba, Novo Hamburgo, Passo Fundo, Pelotas, Porto Alegre, Rio Grande, Santa Maria, São Leopoldo, Sapucaia do Sul, Tramandaí e Viamão — concentram grande parte da criminalidade no Estado, o que motivou a criação do programa RS Seguro para qualificar as políticas de segurança nesses locais. Já os casos de feminicídio estão mais espalhados pelo Estado.
O Atlas indica que, numericamente, a mesorregião Metropolitana de Porto Alegre é a que registou o maior número de casos em 2018, com 29 feminicídios. Contudo, esse número representa uma taxa de 0,8 casos consumados por 100 mil habitantes, a menor entre todas as regiões do Estado. O Atlas indica que, em primeiro lugar em termos de taxa proporcional de feminicídios, está a mesorregião Sudeste, que registrou 3,7 casos por 100 mil habitantes em 2019, sendo seguida pela região sudoeste (3,1 por 100 mil).
Já em termos de feminicídios tentados, o maior índice foi registrado na mesorregião Centro Ocidental, 8,5 casos por 100 mil. Para efeito de comparação, a região Metropolitana registrou 5,3 casos por 100 mil habitantes, de acordo com o Atlas.
Suelen diz que uma das intenções do Atlas foi justamente dar visibilidade a esse fenômeno e demonstrar que esses crimes ocorrem ao longo de todo o território do Estado, inclusive em cidades de pequeno porte.
Cristina avalia que uma das causas para essa maior proporção de casos no interior é o fato de que há mais casos consumados por tentativas no interior do que na Região Metropolitana. Enquanto a Capital e cidades vizinhas registraram 29 feminicídios consumados e 175 tentativas (um a cada seis), a região Nordeste apresentou 15 casos consumados para 25 tentativas, o que representa um feminicídio para cada 1,6 tentativas.
“O que a gente pode pensar disso? Que na Região Metropolitana a gente tem uma rede de proteção mais eficiente do que no interior. No interior, a gente tem municípios que nem tem rede de proteção, não tem delegacia da mulher, não tem patrulha Maria da Penha. Isso aí conta. Então, o que acontece é que as tentativas se consumam mais no interior do que na Capital”, diz Cristina. “Se a gente for pensar em uma mulher em situação de violência na Fronteira Oeste ou na Região da Campanha, ela teria que andar um trajeto de mais de 100 km até um ponto da rede”, complementa Suelen.
As pesquisadoras destacam que o principal instrumento de proteção às mulheres vítimas de violência em termos de alcance territorial são as delegacias da mulher, mas ainda assim são em número insuficiente para atender todo o Estado. Atualmente, o RS conta com 18 unidades da Delegacia de Polícia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), todas elas localizadas em cidades com mais de 60 mil habitantes.
Queda no número de feminicídios em 2019
Em 2019, o Rio Grande do Sul registrou queda no número total de homicídios de 24% na comparação com 2018. O número de feminicídios também apresentou queda, de 14% — de 116 para 100. No entanto, as pesquisadoras alertam que o número de tentativas subiu e que, apesar da redução em 2019, o número de feminicídios consumados foi o segundo maior deste 2012, primeiro ano da série histórica disponibilizadas pela SSP, quando 101 mulheres morreram por sua condição de mulheres. Já o número de feminicídios tentados atingiu o maior número da série histórica, 359 — em 2018, foram 355 tentativas.
“O que eu entendo é que a tentativa é um consumado fracassado. A tentativa só não se consumou por incompetência do autor. Então, a tentativa é tão importante quanto o consumado. Isso mostra que a tendência não foi de uma queda muito grande”, diz.
Nesse sentido, Suelen destaca a importância de se pensar séries temporais mais longas, não de apenas um ano para outro. “Até porque a gente teria que ver e refletir sobre qual a ação de política pública, de enfrentamento à violência, que foi eficaz para que houvesse essa diminuição. Então, por isso que nós estamos pensando nessas séries mais temporais para a gente poder olhar a média prazo qual é o impacto da construção de políticas públicas que tivemos no RS nessa última década e qual também o impacto da não política pública que é o que estamos vivenciando nos dias de hoje”.
Subnotificação
As pesquisadoras ressaltam que, quando se trata de registro de casos de feminicídios, há um problema histórico de subnotificação, mas que o dado divulgado pela SSP foi qualificado a partir de 2018 com a adesão do Estado ao Protocolo latino-americano para investigação de mortes violentas de mulheres. “Quando a gente compara com o dado do Datasus de homicídios de mulheres por agressão a gente vê que a diferença é relativamente grande, mas a gente também não pode afirmar que todos aqueles homicídios ali foram feminicídios”, diz Cristina.
Suelen avalia que há um problema concreto quanto à conceituação do que é feminicídio e do que o diferencia de outros tipos de homicídios de mulheres. A legislação federal estabelece dois casos para um homicídio ser considerado feminicídio: em decorrência de violência doméstica e pela condição de mulher. A pesquisadora diz que, a partir da análise de casos de mortes de mulheres já julgados, percebeu que há uma grande dificuldade de definição para o segundo caso.
“Se a gente for ver, alguns casos são obviamente homicídios, porque são cometidos por terceiros, mas a grande parcela dos casos têm como componente o menosprezo da figura do indivíduo, que é uma mulher”, afirma Suelen. “Por exemplo, tem três indivíduos, dois homens e uma mulher, passa um carro e atira nos três. Isso aí é um homicídio de mulher, porque não mataram ela porque era mulher, mas porque queriam matar aquelas pessoas que eram da facção contrária. Mas tem casos que deixam dúvidas. Teve agora um caso real de uma menina que, em plena luz do dia, foi amarrada com as mãos para trás, foi jogada no meio da rua e levou dez tiros. Será que ela morreu porque tava devendo para o tráfico e morreu como morreria um homem ou será que ela morreu porque era mulher e ‘cometeu o pecado’ de não cumprir o status de mulher? Nesse caso, fica difícil interpretar”, complementa Cristina.
Um dos objetivos da pesquisa de doutorado de Suelen é justamente tentar estabelecer critérios para definir melhor quais crimes podem ser considerados feminicídios. “Eu acredito que a gente precisa refletir melhor, conhecendo, de fato, os casos. A gente consegue identificar com uma facilidade maior os casos em que essa mulher é companheira ou é ex-companheira desse autor. Os demais, temos essa dificuldade de compreensão, suas motivações, suas circunstâncias. Precisaríamos de uma pesquisa mais aprofundada para compreender se são feminicídios ou não”.
Ela aponta ainda que outro problema na lei é que ela não abarca os casos de assassinatos de mulheres trans, como os casos que foram registrados em Santa Maria no início deste ano. “Então, em tese, também é uma morte em decorrência de ela ser mulher, pelo menosprezo a sua condição de mulher”, diz.