Por Giovanna Galvani.
A primeira crise causada pela pandemia de coronavírus é a de saúde pública, e não há liberalismo econômico no mundo que tenha conseguido provar o contrário até o momento. A dignidade das pessoas em cenários de pobreza, falta de renda, empregos e situações críticas de saúde, porém, não é uma realidade de hoje, e pensar em um cenário diferente desse para além do coronavírus é um dos aprendizados que a pandemia pode deixar no futuro.
É o que acredita Jurema Werneck, diretora-executiva da organização de direitos humanos Anistia Internacional Brasil e médica que, há mais de 30 anos, se dedica à saúde das mulheres e da população negra. “A crise de saúde que estamos vivendo é também uma oportunidade de revermos conceitos e práticas políticas, e enxergarmos que as autoridades podem e devem agir com urgência para virar a página das desigualdades e discriminações”, analisa.
Para Werneck, que atuou nos anos 80 como médica da família na Rocinha, bairro carente do Rio de Janeiro, o saldo da pandemia não pode ser o de jogar sob a população o ônus da proteção de seus próprios direitos. “Até uma vacina estar disponível para todo mundo e enquanto não resolvermos essas desigualdades, todo mundo vai continuar em risco”, destaca a médica. “Essa opção pelo estado mínimo fragilizou políticas públicas, e elas são essenciais não só pela pandemia, mas para manter condições de vida para a população”, diz.
O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, secretários estaduais e pesquisadores da comunidade científica já anunciaram que não sabem como um vírus que se espalha facilmente, como o coronavírus, irá se comportar em um ambiente de favela. A preocupação passa pelo básico: se a prevenção é a higiene básica, como cobrar a população de seguir as recomendações em locais sem terem sequer saneamento básico?
Essa dúvida expõe como que o Brasil precisa, primeiro, dar conta de resolver o fundamental quando se trata de saúde, diz Jurema. A própria dengue, que é uma ameaça atual e pode gerar ainda mais sobrecarga no SUS em meio à pandemia do coronavírus, não é um problema pelo Aedes aegypti, que transmite o vírus: “Até hoje dizem individualmente que precisamos matar mosquito, mas é preciso coleta de lixo e saneamento básico. Isso é adiado, e a dengue não vai embora. Com o coronavírus, não se pode repetir essa fórmula.”
Como médica, Werneck afirma que o poder público deveria estar equipado para poder chegas às comunidades carentes, já que o isolamento social é a medida recomendada pelo Ministério e, ao mesmo tempo, não há oferecimento de serviços essenciais nas periferias brasileiras.
Um dos programas mais importantes de distribuição de médicos de família pelo Brasil, o Mais Médicos, está com a logística de distribuição dos profissionais atrasada após um erro de gestão interna. Ainda não há data prevista para que populações miseráveis possam ter atendimento de saúde.
“A gente tá dizendo que é pior porque não tem teste, mas se as equipes de saúde da família estivessem equipadas, elas identificariam residências e territórios em risco. Agora, as pessoas estão nas periferias a sua própria sorte. Em algumas cidades do Brasil, por exemplo, a vacinação tá indo na casa das pessoas. Esse é o jeito correto de fazer a ação pública e produzir equidade e universalidade: se a pessoa tem que ficar em casa, o SUS deve ir até ela”, diz.
Repressão em tempos de pandemia
Segundo Werneck, há preocupação em observar como os governos lidam com as prerrogativas de um poder público em “estado de calamidade pública”, já que esse status afrouxa as regras de atuação dos governantes para que eles possam agir com agilidade – ou com força bruta, como já é costume em locais afastados e periferias.
“Os estados têm a obrigação de proteger e garantir o direito de todos e todas à saúde, sem discriminação. Não deve deixar para trás setores marginalizados e de maior risco, não deve censurar ou limitar o acesso a medidas preventivas ou informações baseadas em evidências, e também não deve recorrer à repressão e ao uso da força excessiva no policiamento de medidas de saúde pública.”, diz a diretora.
Entender “o que as autoridades devem e não devem fazer quando implementam medidas de saúde pública”, inclusive, é o nome de um documento publicado pela Anistia Internacional para a atuação nas Américas, que não sustenta um histórico positivo quando o assunto é preservar direitos básicos.
“A desigualdade profunda, a discriminação estrutural, uma tendência a retroceder para o policiamento repressor, a censura, os sistemas de saúde pública com recursos insuficientes, as proteções trabalhistas e de previdência social inadequadas – tudo isso antecede em muito o surto de Covid-19 na região”, escreve a ONG.
No documento, a Anistia chama a atenção para os direitos de povos indígenas e ribeirinhos, imigrantes e refugiados e, também, para a população prisional, que pode se tornar um perigoso vetor da doença nos ambientes insalubres do sistema de justiça brasileiro. Não apenas: proteger o “direito das pessoas à privacidade”, especialmente no que diz respeito aos dados pessoais coletados pelos órgãos públicos no manejamento de uma pandemia. “Quaisquer medidas de vigilância ou rastreamento devem ser legítimas, necessárias, proporcionais e não discriminatórias.”, recomenda.
Jurema destaca que o momento também depende da ação coletiva das pessoas – algumas, nas periferias do Rio de Janeiro, estão sendo acompanhadas de perto pela diretora e pela organização no Brasil. “Quem entendeu e respondeu, no que está ao seu alcance, foi a sociedade civil. A gestão pública deveria se inspirar nessa capacidade de se reinventar da sociedade.”, diz a diretora, que destaca, por fim, como que a solidariedade pode ser o primeiro passo para cobrar serviços essenciais à população.
“Para nós, como pessoas, é o momento de perceber que também temos um papel a cumprir nas ações para frear a disseminação desse vírus. É também o momento da solidariedade e ela nos aproxima uns dos outros, umas das outras, mesmo distantes fisicamente.”, diz a médica. “Passos têm sido dados, mas ainda falta muito em termos de fazer cumprir os direitos de cada grupo à vida e saúde.”