Por Rodrigo Martins.
A decisão do Conselho Nacional do Ministério Público, de desarquivar um processo disciplinar contra Deltan Dallagnol baseado nas mensagens do Telegram reveladas pelo The Intercept Brasil, aproxima ainda mais a espada da cabeça do chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Intocável até há pouco tempo, o procurador sentia-se à vontade até para investigar e pressionar ministros do Supremo Tribunal Federal. Agora, com os pecados expostos, vê-se cada vez mais acuado, alvo até de constrangedores recados públicos de Raquel Dodge, procuradora-chefe do Ministério Público Federal. Pior: não pode sequer escorar-se no parceiro Sérgio Moro, igualmente desgastado pela Vaza Jato, como o escândalo ficou conhecido.
Em parceria com o BuzzFeed, o site fundado por Glenn Greenwald trouxe mais uma amostra da atuação enviesada e partidária dos “heróis do combate à corrupção”. Na véspera da prisão de Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara e principal articulador do impeachment de Dilma Rousseff, o então juiz Moro convenceu Dallagnol a não pedir a apreensão dos telefones celulares usados pelo emedebista. Vazados por uma fonte anônima, os diálogos no aplicativo Telegram ocorreram em 18 de outubro de 2016, pouco mais de um mês após a cassação do mandato do parlamentar.
Na ocasião, Dallagnol perguntou ao magistrado sobre a conveniência de fazer a solicitação. “Acho que não é uma boa”, respondeu Moro. O procurador solicitou, então, uma reunião com o magistrado. “Gostaria de explicar razões”, disse. O encontro foi marcado para as 12h15 daquela terça-feira. Nos diálogos, não há registros do que foi discutido pessoalmente. Às 14h16, Dallagnol enviou, no entanto, uma nova mensagem a Moro, na qual informa que, após conversar com colegas e levar em consideração o que foi dito pelo juiz, havia desistido de pedir a apreensão dos celulares. “Cnversamos [Conversamos] aqui e entendemos que não é caso de pedir os celulares, pelos riscos, com base em suas ponderações.”
Hoje ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, Moro ainda não explicou a falta de interesse nos celulares de Cunha, beneficiário de multimilionárias contas na Suíça, ao passo que levou mais de um ano para ordenar a devolução do iPad do neto de Lula, apreendido durante a operação de busca e apreensão na casa do ex-presidente. Por meio de nota, disse não reconhecer a autenticidade das “mensagens obtidas por meio criminoso” e esquivou-se com o argumento de que os telefones celulares do emedebista haviam sido “apreendidos por ordem do STF na Ação Cautelar 4044, antes da prisão preventiva”. A força-tarefa repetiu a mesma desculpa. Mas isso ocorreu em 15 de dezembro de 2015, dez meses antes da prisão de Cunha. Sob a orientação do magistrado, Dallagnol abriu mão de periciar os aparelhos usados pelo ex-presidente da Câmara ao longo desse período. Por quê?
Esse não é o primeiro indício de que os procuradores fizeram vistas grossas para o comportamento de certos investigados. Na segunda-feira 12, o Intercept revelou que Dallagnol sabia que o então deputado Onyx Lorenzoni, hoje ministro da Casa Civil e colega de Moro no governo, estava na lista de beneficiários de doações da Odebrecht por meio de caixa 2. Mesmo assim não apresentou qualquer denúncia contra o parlamentar, visto como um aliado no Congresso para a aprovação do projeto das “10 medidas contra a corrupção”.
Em 17 de abril de 2017, Dallagnol conversou pelo Telegram com Fábio Oliveira, um dos líderes do movimento “Mude – Chega de Corrupção”. No diálogo, o ativista pergunta ao procurador se ele sabia da menção a Lorenzoni na “lista de Fachin”. “Vi… (já sabia, mas tinha que fingir que não sabia, o que foi, na verdade, bom rsrsrs)”, respondeu Dallagnol. Como o leitor deve ter reparado, as mensagens foram reproduzidas com a grafia encontrada nos arquivos originais.
Lorenzoni confessou ter recebido 100 mil reais em “doações não declaradas” do Grupo JBS, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, para custear despesas de campanha. Pouco depois de aceitar o convite de Bolsonaro para chefiar o Ministério da Justiça, Moro minimizou o pecado do colega de governo. “Ele mesmo admitiu e tomou providências”, disse o ex-juiz, em novembro do ano passado. Provocador, o senador Roberto Requião chegou a propor um projeto, ironicamente batizado de “Lei Onyx”, que anistia crimes eleitorais por arrependimento. O indulto seria dado, a critério do juiz, a quem apresentasse pedido público de perdão e de dispensa da pena.
Sob a liderança de Dallagnol, vale recordar, a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba planejou coletar informações contra Mendes na Suíça, com o objetivo de afastá-lo de processos relacionados à operação ou mesmo pleitear o seu impeachment, e também queria devassar as finanças pessoais de Toffoli, na expectativa de encontrar repasses de empreiteiras envolvidas com a corrupção na Petrobras. É o que revelam reportagens do jornais El País e Folha de S.Paulo, baseadas em mensagens vazadas ao Intercept. “Tudo indica, à medida que os fatos são revelados, que nós tínhamos uma organização criminosa para investigar”, reagiu Mendes, amparado pela lei. Ministros do Supremo não podem ser investigados por procuradores da primeira instância, como é o caso de Dallagnol e seus colegas. Segundo a Constituição, só é possível abrir um inquérito contra um deles com o aval da própria Corte. Além disso, a apuração ficaria sob os cuidados do procurador-geral da República.
A fatura começa a chegar. A pedido de dois integrantes do CNMP, um processo disciplinar contra Dallagnol, lastreado nos vazamentos, foi desarquivado e voltou a tramitar no órgão de controle externo da categoria. No Supremo, os advogados de Lula apresentaram um novo habeas corpus, pedindo que a corte reconheça a suspeição dos procuradores da Lava Jato, acusados de agir por “motivação pessoal e política”. Na petição, os defensores também requisitaram o compartilhamento do material apreendido na Operação Spoofing, que identificou suspeitos de hackear celulares de autoridades.
A procuradora-geral Raquel Dodge prorrogou por mais um ano a atuação da força-tarefa da Lava Jato, criada em 2014, mas enviou um constrangedor recado ao grupo. “A Procuradoria-Geral da República apoia a atuação institucional de todos os seus membros, para o cumprimento da missão. Mas igualmente exige que o desempenho da atuação institucional se dê inteiramente dentro dos marcos da legalidade”, discursou na terça-feira 13.
Dallagnol e seus colegas do Ministério Público Federal dizem não reconhecer as mensagens atribuídas e obtidas por “crime cibernético”. Além disso, consideram normais os contatos mantidos com o juiz Sérgio Moro ao longo do processo.
Não é o que pensa um grupo de 17 juristas, a incluir advogados, ex-ministros da Justiça e ex-integrantes de cortes superiores de oito países, em carta endereçada ao STF. Para eles, as mensagens vazadas revelam “práticas ilegais e imorais”, que afetam a credibilidade do Judiciário nativo. “Ficamos chocados ao ver como as regras fundamentais do devido processo legal brasileiro foram violadas sem qualquer pudor”, diz um trecho do texto. “Num país onde a Justiça é a mesma para todos, um juiz não pode ser simultaneamente juiz e parte num processo.”
Entre os signatários da carta figura Susan Rose-Ackerman, professora da Universidade Yale, nos EUA. Dallagnol chegou a publicar foto com ela no Twitter, apresentando-a como “a maior especialista mundial em corrupção”. O texto é subscrito ainda pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli, um dos mais categorizados discípulos de Norberto Bobbio e referência do garantismo jurídico no mundo, o juiz espanhol Baltasar Garzón, que condenou o ditador chileno Augusto Pinochet por crimes contra a humanidade, e os ex-ministros da Justiça Alberto Costa, de Portugal, e Herta Däubler-Gmelin, da Alemanha. Nenhum deles considera “normal” o que ocorre no Brasil.