Bombardeio da Síria nada tem a ver com justiça e não será capaz de restaurar poder dos EUA no Oriente Médio. Mas pode incendiar de novo um dos barris de pólvora do planeta
Por John Wight, no Outras Palavras.
Descrever o ataque dos Estados Unidos à Síria como uma medida séria é ser incapaz de avaliação.
Sem nenhum respaldo do direito internacional ou na ONU, o governo Trump cometeu um ato de agressão contra mais um Estado soberano do Oriente Médio, o que confirma que os neoconservadores retomaram seu domínio sobre a política externa de Washington. Este ato de agressão acaba com qualquer perspectiva de desanuviamento entre EUA e Rússia no futuro próximo. Ao contrário: aumenta consideravelmente as tensões entre os dois países, não apenas no Oriente Médio como também no Leste Europeu, onde há algum tempo tropas da OTAN vem realizando exercícios militares a uma distância de ataque do território russo.
Na esteira da divulgação das terríveis imagens de Idlib, após o suposto ataque de gás sarin, observou-se no mundo ocidental um crescente clamor por mudança de regime em Damasco, com declarações de políticos e da mídia que apressam o julgamento e responsabilizam o governo sírio pelos ataques. Ninguém sabe com certeza o que aconteceu em Idlib, razão pela qual o que se deveria buscar é um acordo para realizar uma investigação independente em busca da verdade e, com ela, da justiça.
Em todo caso, apenas os mais ingênuos acreditariam que esse ataque dos Estados Unidos contra a Síria tenha sido cometido visando à justiça. Por que seria assim, quando sabemos que recentemente bombas estadunidenses mataram civis, inclusive crianças, em Mosul? E por que seria assim, se considerarmos o indizível sofrimento das crianças do Iêmen em consequência da brutal campanha militar da Arábia Saudita?
Não, este ataque dos Estados Unidos – que segundo relatos oficiais envolveu 59 mísseis Tomahawk, lançados de navios posicionados no leste do Mediterrâneo – foi perpetrado com vistas a uma mudança de regime, e estabelece um precedente que pode ter graves desdobramentos para toda a região.
Sobre o ataque em Idlib, o que pode ser dito com certeza é que, num momento em que as forças pró-governo na Síria estavam em ascensão e em que o governo obtinha progressos significativos na frente diplomática, seria um ato de sabotagem brutal realizar qualquer tipo ataque de armas químicas, ainda mais dessa magnitude.
Isso corresponderia a um governo empenhado em provocar seu próprio desmantelo. Deve-se levar em consideração o fato de que a Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ), uma organização apoiada pelos Estados Unidos, confirmou em junho de 2014 que o processo de destruição completa do arsenal de armas químicas da Síria tinha sido concluído. Além disso, as terríveis imagens e testemunhos oculares de Idlib que apareceram logo após o ataque são todos provenientes de fontes oposicionistas. Nenhum jornalista ou equipe de reportagem ocidental ousaria pôr os pés em Idlib, ou mesmo em qualquer outra parte do território sírio tomado pelas forças de oposição, pois sabem que, se assim procedessem, poderiam ser capturados e trucidados.
Com esta intervenção militar unilateral, Trump provou que pode facilmente ser tragado para dentro do conflito. Poucos dias após seu governo confirmar que uma mudança de regime na Síria estava fora de questão e que o seu foco era derrotar o terrorismo, Trump deflagra um ataque aéreo que apenas incitará as mesmas forças terroristas cuja derrota ele havia enfatizado ser o centro de sua política externa.
E agora? Claramente, essa ação militar coloca a Rússia em posição muito difícil. Desde que se envolveu no conflito na Síria, no final de setembro de 2015, por determinação de seu governo, Moscou trabalhou incansavelmente para construir uma saída negociada, uma saída que envolvesse as forças de oposição e as partes consideradas moderadas se comparadas aos fanáticos jihadistas salafistas do ISIS e Al Nusra, entre outros. Trata-se de um processo diplomático que acaba de sofrer um golpe devastador, pois a oposição agora está indubitavelmente convencida de que a mudança de regime virá via Washington e, portanto, se vê estimulada a trabalhar por este fim.
Enquanto isso, os aliados regionais de Washington – Israel, Arábia Saudita, Catar e Turquia (com Erdogan garantindo que se ligará a quem for mais forte…) – provavelmente agora começarão a pedir mais ações militares contra Damasco, vendo o ataque dos EUA como o catalisador de uma temporada de vale-tudo em relação à soberania do país.
Para Trump — que está sob intensa pressão do establishment mediático, político e das agências de espionagem de Washington desde que assumiu o governo –, esta ação garantirá um pouco da tão necessária aprovação e, com isso, uma trégua. Seu governo emitiu sinais ameaçadores durante algum tempo, a começar pela renúncia forçada de Mike Flynn como Conselheiro de Segurança Nacional em fevereiro, seguida pela recente saída de Steve Bannon do Conselho de Segurança Nacional da Presidência. Foi mais uma evidência de que os neoconservadores haviam reassegurado sua dominação sobre a Casa Branca, depois de um curto período de intensa luta pelo poder.
Numa visão mais ampla, a falta de memória de curto prazo em Washington é impressionante. Quatorze anos depois da desastrosa invasão do Iraque, que abriu os portões do inferno para deixar emergir o ISIS e outros grupos jihadistas, e seis anos depois de fazer da Líbia um Estado falido, disparando no processo uma crise de refugiados de proporções bíblicas, temos aqui novamente um ato de agressão contra um Estado soberano no Oriente Médio pelos EUA.
Destruir países para “salvá-los” é, desde sempre, a história de todos os impérios. Mas, como a história revela, todo império carrega dentro de si as sementes de sua própria destruição. Donald Trump caminha agora para ficar na história como um governante que, ao invés de salvar os EUA de si mesmos, pode ter ajudado apenas a acelerar sua queda até a morte final.
Tito Lívio, o grande historiador romano, escreveu certa vez: “Roma cresceu tanto desde seu humilde início que agora está devastada por sua própria grandeza.”
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Tradução: Maurício Ayer e Inês Castilho
Imagem tomada de: Pragmatismo Político