Por Caroline Cavassa, Janaina Cesar.
Por trás dos cantos gregorianos que enaltecem os monges beneditinos do rico Mosteiro de São Bento, localizado no coração de São Paulo, se escondem denúncias de assédios e abusos sexuais, humilhações e perseguições a jovens seminaristas. Dois deles se uniram e, após terem deixado a instituição, denunciaram à polícia, em maio de 2019, quatro pessoas do mosteiro pelos abusos sofridos.
Ao longo de um ano e meio de apuração, o Intercept contatou as vítimas, falou com advogados, procuradores e testemunhas e localizou outras três pessoas que também teriam sofrido abusos no mosteiro quando eram menores de idade, mas que preferiram não se manifestar.
O inquérito, ao qual tivemos acesso, resultou em uma denúncia do Ministério Público de São Paulo apresentada em junho de 2020 e apreciada pela justiça em abril. Entre os acusados estão dois noviços e dois monges do mosteiro. Um deles é João Baptista Barbosa Neto, um monge “pop” e instagramer conhecido na igreja como Dom João Baptista, autor de diversos livros em vendas em livrarias católicas, entre eles, “Cozinhe com os monges: as tradicionais receitas do Mosteiro de São Bento” e “As peripécias de Jennifer”.
Também conversamos com três monges do mosteiro sob a condição de anonimato. Segundo os religiosos, o então abade Mathias Tolentino Braga, conhecido como Dom Mathias, teria sido informado sobre os abusos, mas preferiu acobertá-los. À época das situações descritas pelos ex-seminaristas, ele era o principal responsável pela instituição. Desde 2019, um decreto assinado pelo Papa Francisco como uma resposta aos constantes escândalos de abusos na Igreja Católica obriga padres e religiosos a denunciarem às autoridades eclesiásticas qualquer suspeita de crimes sexuais.
Em primeira instância, a justiça impediu o prosseguimento da ação sem analisar o mérito do caso por considerar que houve “decadência”. Ou seja, havia expirado o prazo legal para que as vítimas comunicassem os fatos às autoridades. Mas, como os abusos teriam acontecido quando as vítimas eram menores de idade, o MP diz que essa interpretação não se aplica. Os promotores recorreram e aguardam decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo.
O início do fim
Em fevereiro de 2020, dias antes que começasse a pandemia do coronavírus no Brasil, Rodrigo, hoje com 22 anos, recebeu a reportagem do Intercept acompanhado pelos pais no pequeno apartamento onde mora, no centro de São Paulo. Os fatos narrados por ele fazem parte da denúncia criminal do MP e teriam acontecido entre os anos de 2016 e 2018 – enquanto ele trabalhava na biblioteca e estudava filosofia na Faculdade São Bento, ligada ao mosteiro.
“Para um garoto pobre, de família simples, a religião às vezes te faz sentir muito especial”. É assim que Rodrigo começou a falar da relação que nutria pelo catolicismo antes de tomar uma das decisões mais importantes de sua vida: estudar no Mosteiro de São Bento para tornar-se monge e dedicar sua vida à tradição “ora e trabalha” (do latim ora et labora), dos religiosos que tanto admirava.
Ele conta que tinha 16 anos quando se matriculou no curso gratuito de canto gregoriano oferecido pelo mosteiro e começou a frequentar o local. Seu interesse pelas artes o levou a visitar, nos intervalos das aulas, as alas da instituição repletas de obras de arte restauradas. Foi nessa época que ele relata ter sofrido o primeiro assédio sexual. A investida teria partido de Rafael Bartoletti, que no mosteiro é chamado pelo seu nome religioso, Irmão Hugo, um dos quatro denunciados pelo MP. Hugo também aparece como algoz dos assédios sexuais sofridos pelo jovem Felipe, cuja história contaremos mais adiante.
“O Hugo era quem me guiava nessas visitas às dependências do mosteiro. Um dia, ele me levou à sala de música, entrei e fiquei olhando as pinturas. Ele trancou a porta, veio na minha direção e me empurrou para baixo, com a mão nos meus ombros. Nesse momento eu levantei e ameacei contar pro monge que era mestre de noviços na época. Foi a primeira vez que ele me assediou”. A sua primeira reação, contou, foi de susto e confusão, porém, com medo, resolveu não contar nada a ninguém.
‘Errado seria não satisfazer as próprias vontades carnais.’
Ainda tímido e constrangido pelo que acabara de revelar na presença dos pais, que até aquele momento não sabiam detalhes dos abusos sofridos pelo filho, Rodrigo precisou da ajuda da mãe para dar prosseguimento à entrevista. Foram quatro horas e meia de conversa, que gerou diversas crises de pânico no rapaz, que ainda vive à base de remédios controlados e acompanhamento psiquiátrico.
Quando terminou o ensino médio, Rodrigo recebeu uma bolsa de estudos para cursar filosofia na faculdade do mosteiro: ele iria trabalhar na biblioteca em troca da formação. E, segundo ele, os abusos continuaram durante esse período. Ao todo, ele passou quatro anos no São Bento. O jovem precisou pegar um papel e caneta para traçar uma linha do tempo e conseguir contar, em ordem cronológica, como e quando aconteceram os abusos que o levaram a duas tentativas de suicídio – uma, inclusive, dentro do próprio mosteiro.
Assédios sexuais na ordem do dia
O instagrammer Dom João Baptista era o monge responsável pela biblioteca na época em que Rodrigo trabalhava no local. O jovem conta que, quando o questionava sobre o comportamento inadequado de alguns seminaristas e religiosos, ele afirmava que o errado era não satisfazer as próprias vontades carnais.
“Na biblioteca, ele tinha a mania de fazer brincadeiras [de cunho sexual]. Quando chegava, sempre me dava um tapinha [na bunda] ou então me abraçava por trás, essas coisas”. Rodrigo relata que, por diversas vezes, disse a Dom João que não gostava de ser tratado daquela maneira, e o monge dizia que tudo não passava de brincadeiras e que não se tratava de assédio. Segundo Rodrigo, Dom João Baptista também se comportava dessa forma com outros meninos da faculdade.
Em uma ocasião, conta, o próprio Dom João Baptista, ao cumprimentá-lo, o teria beijado na boca. Rodrigo também diz ter sido abusado por um outro noviço chamado Josiel Amaral. Assim como Hugo e João Baptista, ele consta entre os acusados na denúncia feita pelo MP. Em um dos vários episódios de abuso que teriam ocorrido entre as muralhas do Mosteiro, Rodrigo diz que num dia de festividade na instituição, foi obrigado a fazer sexo oral em Amaral, que o levou para a hospedaria e disse que se iria se matar caso o rapaz não fizesse o que ele pedia. “O Josiel tinha a mania de usar o psicológico e quando me pedia essas coisas, também dizia que ia se matar. E aí teve um dia que ele me pressionando dessa maneira, eu fui e cedi. Ele disse que ia se matar, eu não sabia o que fazer e fiz…” desabafou.
Após esse ciclo de violência, sem saber como agir, Rodrigo conta que passou a se isolar e a manter distância de quase todos os companheiros de estudo e, principalmente, de seus superiores na instituição. Ele diz ter desenvolvido uma depressão profunda, além de ter começado a questionar a sua própria fé na religião e no catolicismo.
‘Quando você não corresponde às investidas de um irmão, padre ou frei, aí que eles resolvem te perseguir de outros jeitos’.
Quando completou 18 anos, diz que, em vez de celebrar a maioridade com alegria, passou a ter cada vez mais medo e pânico dos assédios, que neste período teriam passado a ser ainda mais intensos e declarados. “Os padres e freis, quando foram me parabenizar, chegaram a dizer que, a partir daquele momento, poderiam abusar de mim à vontade sem correr o risco de irem parar na cadeia”, lembra o ex-seminarista.
Rodrigo diz que os assédios, além de sexuais, também aconteciam paralelamente em forma de perseguição. “Quando você não corresponde às investidas de um irmão, padre ou frei, aí que eles resolvem te perseguir de outros jeitos: inventando histórias mentirosas sobre você dentro do mosteiro, criando intrigas entre colegas seminaristas, espalhando fofocas, te excluindo dos grupos, ou seja, criam um ambiente de total hostilidade para quem não cede aos assédios cotidianos”, relembrou.
O jovem relata também ter sofrido inúmeros assédios sexuais por parte de religiosos de outros locais que com frequência visitavam o mosteiro. Ele cita uma ocasião em que, durante um evento na instituição, um padre de outra congregação teria ido ao seu dormitório com uma desculpa qualquer e tentado beijá-lo. “Não entendia o porquê disso, já que eu ficava sempre na minha. Mas eles chegavam insinuando coisas, dando em cima de mim. Depois fiquei sabendo que quem incentivava aquele comportamento era o próprio João Baptista, que espalhava aos quatro cantos que eu era perigoso e gostava de dar em cima das pessoas”.
Ele diz que tentou buscar ajuda duas vezes. A primeira, quando confidenciou os abusos a dois amigos que fez na faculdade de Filosofia e, a segunda, quando tentou fazer uma denúncia interna ao abade Dom Mathias. O abade é como o presidente do mosteiro. É ele quem comanda e convoca os monges para os capítulos, reuniões em que se determinam decisões a serem tomadas para o funcionamento da instituição.
O ex-seminarista conta que o abade era totalmente grosseiro e inacessível e, por isso, Rodrigo não conseguiu chegar até a ele para formalizar a denúncia. Diante disso, resolveu contar ao prior Camilo de Jesus Dantas, segundo responsável pelo mosteiro, sobre os constantes assédios que vinha sofrendo. Porém, não foi levado a sério: “como eu não entendia direito como funcionava o esquema de denúncias nas dioceses, eu falei com o prior, já que o abade não escutava a gente. Quando eu contei a ele e a outros irmãos, eles fizeram cara de chocados e disseram que não sabiam que tudo aquilo acontecia, porém, a maioria sabia, sim. Eles disseram que levariam o tema para o capítulo, mas isso nunca aconteceu”.
Rodrigo diz que o quadro de terror que encontrou durante os anos em que estudou e trabalhou no mosteiro o levou a acreditar que a única saída para seus problemas seria a morte.
Ele conta que começou a ter outras alucinações, com vozes lhe dizendo para se matar, além de imaginar cenários de suicídio recorrentemente. Ele também lembra que, na época, passou a praticar várias formas de automutilação. “Era como se a dor me ajudasse a esquecer tudo que me atormentava dentro do Mosteiro de São Bento. O meu lado psicológico estava tão afetado que a dor física começou a ser uma espécie de prazer”, explica o rapaz. “Na verdade, acho que eu tentava descontar em alguma coisa, e descontava no meu corpo. Na minha cabeça, eu era o culpado por tudo aquilo ter acontecido, então, a forma que eu tinha de me punir era aquela”.
Aos 17 anos, ele tentou pela primeira vez cometer suicídio. O jovem conta que “enquanto girava em volta da fonte, pensava em tudo o que aconteceu, em tudo que havia passado e aguentado nos últimos anos, enfim, tudo que sofri. Enquanto estava naquele looping, vi minha vida inteira até aquele momento e não senti que existia alguma solução”. Então, já “totalmente enfraquecido”, ele tentou se matar na biblioteca em que trabalhava. “Acreditava que aquele momento seria o fim”.
Em 2018, após a segunda tentativa de suicídio, ele deixou definitivamente o mosteiro.
“Essa é uma das coisas que tenho muita dificuldade de contar. Teve um dia que cheguei a ouvir vozes, tipo alucinações, me dizendo que eu não tinha mais para onde ir, que a minha vida não tinha mais sentido e que a única solução para aquilo tudo seria me matar. Até que tive a última tentativa de suicídio. Não lembro exatamente o motivo, só lembro que algum deles [dos monges] disse algo que foi a gota d’água para aquele meu momento de desespero”.