Assassinado há 31 anos, Chico Mendes inspira luta contra o agronegócio no Acre

Famílias se agarram ao legado do seringueiro e resistem como podem aos tratores e às queimadas que devastam a floresta

Região de Xapuri (AC) registra índices de desmatamento e violência que remetem à época do assassinato de Chico Mendes / Arquivo/Agência Brasil

Por Catarina Barbosa.

O assassinato do sindicalista Chico Mendes, a mando de fazendeiros da região de Xapuri (AC), completou 31 anos no domingo (22). Os trabalhadores que hoje atuam na Reserva Extrativista Chico Mendes (Resex), localizada na fronteira do Acre com a Bolívia, onde o seringueiro nasceu e travou sua luta, relatam que o clima de violência no território é crescente e remete à época da morte do seu maior líder. 

Estimulados pelo discurso de apoio do presidente Jair Bolsonaro, madeireiros e pecuaristas se sentem encorajados a intimidar e expulsar extrativistas de suas terras na Amazônia. A tecnologia contribui para que as agressões à floresta sejam ainda mais impactantes: o que antes eram motosserras hoje são tratores, máquinas de grande porte.

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Segundo o advogado Gomercindo Rodrigues, do Comitê Chico Mendes, expulsões violentas e incêndios de casas de seringueiros tornaram-se cenas comuns nos últimos dois anos na região. O comitê foi criado em 1988 para exigir das autoridades policiais e judiciárias a apuração, julgamento e condenação de seus assassinos e dos mandantes, além de divulgar o legado do seringueiro.

“Infelizmente, 31 anos após o assassinato de Chico Mendes, a situação está bastante tensa no Xapuri. Há uma ação política no sentido de tentar diminuir a reserva e retirar direitos”, ressalta o advogado. “Há toda uma atuação do Judiciário que vem favorecendo, de novo, os fazendeiros contra os posseiros antigos, que são considerados invasores das áreas de fazenda. Na verdade, eles já eram posseiros, muito antes das fazendas se tornarem fazenda, desde a época do seringal. São pessoas que vivem 20, 30, 50 anos no mesmo lugar e que, de repente, são consideradas invasoras. Nas ações judiciais por aqui, os fazendeiros quase sempre ganham”, lamenta.

A Reserva Extrativista Chico Mendes é uma unidade de conservação federal criada por Decreto Presidencial em 12 de março de 1990 e ocupa uma área de 970.570 hectares. Em novembro, o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, determinou a paralisação da fiscalização ambiental na reserva após uma reunião com infratores ambientais. Participaram do encontro um autor de ameaça de morte a um servidor do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), um réu condenado por desmatamento e uma fazendeira que instalou um haras dentro de uma unidade de conservação.

O advogado conta que visitou o local na última semana e sentiu grande preocupação dos moradores por conta do discurso do governo Bolsonaro. Na visão dele, o cenário é até mais grave do que na época da morte de Chico Mendes.

“A diferença é que os desmatamentos antes eram feitos com motosserra. Os ‘empates’ eram feitos a partir de conversas com os operadores, que normalmente eram ex-seringueiros que tinham sido expulsos e que voltavam como desmatadores, trabalhando no desmatamento. Hoje, os fazendeiros começam a usar tratores, máquinas grandes, e aí o desmatamento é muito maior, mais rápido, mais violento”, acrescenta.

Na descrição, Rodrigues se refere ao “empate à derrubada”, conceito criado em 1976, sob a liderança de Wilson Pinheiro, presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Brasileia – o primeiro criado no Acre. O processo consistia em reunir famílias de seringueiros que iam para as áreas ameaçadas de desmatamento, desmontavam os acampamentos dos peões e paravam as motosserras. Por meio desse movimento de resistência, Pinheiro foi assassinado em 1980 dentro da sede do sindicato.

 

Reserva Extrativista Chico Mendes teve a fiscalização suspensa em novembro. (Foto: Greenpeace/Divulgação)

A luta, a amizade e a defesa da floresta

O líder comunitário e seringueiro Aldeci Cerqueira, mais conhecido como Nenzinho, é uma dos trabalhadores que leva adiante os ensinamentos de Chico Mendes.

Morador da reserva extrativista Cazumbá-Iracema, localizada em Sena Madureira (AC), Nenzinho conheceu Chico aos 18 anos, quando fazia parte do sindicato de seringueiros. A morte do amigo fez com que ele tivesse ainda mais vontade de lutar pelos direitos daqueles que dependem da floresta para viver. “A minha luta para criação da reserva Cazumbá, partiu do momento em que perdemos o Chico”, lembra.

Na Cazumbá-Iracema, os trabalhadores vivem do extrativismo da castanha e da borracha, além do artesanato. As famílias também desenvolvem a agricultura de subsistência, vendendo os excedentes, criam pequenos animais e vendem óleo de copaíba e seiva do jatobá.

Apesar das dificuldades, Cerqueira é bem humorado. Diz que adotou o bigode em homenagem ao amigo e brinca que o seu é mais bonito que o de Chico Mendes.

As reservas extrativistas, um dos sonhos do seringueiro assassinado há 31 anos, resistem como podem ao avanço da pecuária e à devastação que o agronegócio produz. Dia após dia, os amigos e herdeiros da luta de Chico Mendes buscam forças para encarar as violações de direitos a que são submetidos os povos da floresta.

A gestão da Cazumbá-Iracema é compartilhada entre o ICMBio e a associação de extrativistas locais. A reserva existe oficialmente desde 1993 e tem mais de 750 mil hectares, onde vivem 370 famílias. “Hoje, não tenho cargo no sindicato. Eu sou presidente da associação que faz a gestão compartilhada da reserva. É a ‘associação mãe’, que faz a gestão junto com o ICMBio, e eu trabalho no escritório do ICMBio dentro da gestão”, detalha.

Nenzinho afirma que, para quem depende da floresta para subsistir, a única opção de vida é a resistência.

Foi nesse contexto de luta que ele e Chico Mendes se conheceram, em 1980, época em que Nenzinho – um dos fundadores do Sindicato de Sena Madureira (AC) – soube da luta do seringueiro mais famoso do país.

O amigo lembra que Chico Mendes fez um pedido aos companheiros um mês antes de ser assassinado.

“Eu lembro muito bem que tivemos uma assembleia em Sena Madureira e ele, sentado, disse que poderia morrer a qualquer hora, mas que queria que a luta continuasse. Então, aquilo ficou marcado na minha vida, tanto que hoje eu uso bigode em memória do Chico. Ele foi um grande professor na minha vida”, assume.

Pecuária versus extrativismo

Segundo dados do portal TerraBrasilis, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Acre foi o sexto estado que mais sofreu com o desmatamento nos últimos dez anos, com 3.122,50 km² de terra devastada – o primeiro foi o Pará, com 30.861,76 km². As queimadas são cada vez mais frequentes, e o avanço da pecuária é o principal responsável pelo desmatamento na Amazônia. Nenzinho lamenta e diz que a floresta vale muito mais em pé do que transformada em terra para criar gado.

Ainda segundo dados do Inpe, até novembro deste ano, o desmatamento aumentou 203% dentro da Reserva Chico Mendes. São 74,5 km² de floresta devastados, o maior índice da série histórica, iniciada em 2008. Nenzinho diz que o acesso às políticas públicas está cada vez mais difícil e burocratizado, fazendo com que a saída dos seringueiros de seus territórios pareça inevitável.

“O extrativista tem muita dificuldade de acesso às políticas públicas do governo federal, porque é muita burocracia”, reafirma.

Discurso de ódio e aumento da violência

Darlene Braga, integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), analisa que o clima de violência e ameça das décadas de 1970 e 1980 é recriado com o discurso agressivo de Bolsonaro contra as populações tradicionais. A publicação de atos do governo como a MP 910, da regularização fundiária, segundo ela, deixam claro de que lado o governo federal está.

“O Acre era um grande seringal. Os malabarismos para promover o latifúndio, para que o latifúndio se perpetue, são os mesmos da década de 1970. Tem muitas áreas griladas, áreas sobrepostas, áreas com títulos da Bolívia, áreas com títulos totalmente irregulares, e isso abre muitos precedentes”, interpreta. “O governo fica na mão de grupos latifundiários, grupos madeireiros, grupos empresariais, que ficam mais ricos, e o que sobra para nós são os riscos e o desequilíbrio ambiental. Fica a violência, ficam os assassinatos”, lamenta Braga.

Sergio Lima da Silva, também coordenador da CPT, ressalta que os fazendeiros e madeireiros se sentem respaldados para perseguir quem defende a floresta. Para ele, a polícia e o Judiciário caminham com quem está disposto a lucrar com a floresta.

“A gente tem alguns casos bem emblemáticos de famílias que foram torturadas, tiveram suas produções roubadas por fazendeiros e policiais e, quando chegou na Justiça, na delegacia, passaram por mentirosos e ladrões. Como se seringueiro fosse o ladrão e o fazendeiro, o que estava certo”, conta.

Apesar dos desmandos do governo federal, Lima afirma que a CPT segue comprometida com o apoio e fortalecimento das populações tradicionais, porque – como dizia Chico Mendes – a luta não é pelos extrativistas ou pela floresta, mas pela humanidade.

“A CPT está junto dessas famílias na busca por direitos. Porque, muitas vezes, quando chega em um órgão do governo para reivindicar, elas são deixadas de lado. A Justiça às vezes não faz questão de ouvi-los. A CPT, com seu trabalho de organização, capacitação, vem avançando nisso, para que as famílias busquem seus direitos”, finaliza.

Edição: Daniel Giovanaz.

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