Por Lúcia Helena Rangel e Roberto Antonio Liebgott.
Ao longo das décadas, os povos indígenas viram seus territórios serem invadidos, loteados e explorados por aqueles que desejam implementar grandes projetos econômicos de mineração, garimpo, criação de gado e plantio de soja em suas terras. Viram a imposição de uma política predatória e devastadora dos bens ambientais e das águas. Uma política propositadamente implementada para aniquilar direitos, o modo de ser dos povos e suas perspectivas de vida e de futuro. As violências e violações contra os povos indígenas são, no Brasil, práticas sistemáticas. Elas formam a base sobre a qual, desde 1964, projetos desenvolvimentistas avançaram, ao custo de expropriações forçadas, redução ou eliminação de territórios, epidemias induzidas e assassinatos de lideranças.
Nos últimos anos, porém, temos assistido a uma escalada sem precedentes nos ataques aos territórios, inclusive com a venda de lotes de terra em áreas demarcadas. No ano de 2019, primeiro sob a presidência de Jair Bolsonaro, o recém-lançado relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), registrou um crescimento inédito das invasões e danos ao patrimônio indígena: foram 256 casos, 135% a mais do que no ano anterior, que atingiram 143 povos e 151 terras indígenas em 23 estados. Essas invasões referem-se a uma série de danos, tais como exploração ilegal de madeira, garimpos, pesca e caça predatórias, incêndios, loteamento ilegal de terras, grilagens; invasões para formação de fazendas agropecuárias e para empreendimentos de infraestrutura rodoviária, ferroviária e energia elétrica. Também houve contaminação de águas e alimentos por agrotóxicos e 35 registros de conflitos territoriais. Além disso, houve 113 assassinatos, 24 tentativas de assassinatos e 33 ameaças de morte contra indígenas. Dos 133 suicídios registrados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a maioria afeta jovens, entre 14 e 29 anos, do sexo masculino. A desassistência à saúde resultou em 825 mortes de crianças entre 0 e 5 anos por causas tratáveis, na maior parte dos óbitos.
Além do registrado em 2019, o descaso em relação à saúde desses povos também tem se refletido de maneira bastante severa no combate à pandemia de covid-19. Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, até o dia 20 de outubro havia 37.219 indígenas de 158 povos infectados pelo novo coronavírus e 856 óbitos ocasionados pela doença. No Mato Grosso do Sul, um dos estados com os maiores índices de contágio, são 2.400 infectados; no Maranhão foram, até o momento, 1.533 casos e 27 mortes. As lideranças indígenas do Maranhão relatam problemas como a falta de medicamentos, remédios vencidos, má distribuição de recursos e de equipamentos de proteção individuais. Faltam inclusive caixões para enterrar os mortos.
Desde a década de 1980, quando começou a registrar regularmente as violências cometidas contra os povos originários, o Cimi utiliza as informações sistematizadas pelo Relatório em defesa das comunidades, fazendo denúncias aos poderes públicos no Brasil e a organismos nacionais e internacionais.
A cada publicação, percebemos que as violências e violações são uma constante invariável, praticadas por agentes ávidos pela destruição e pela apropriação dos recursos naturais dos territórios indígenas em nome do lucro e de uma racionalidade econômica desenvolvimentista – uma perspectiva segundo a qual o desejo de trabalhar a terra em consonância com as necessidades familiares e com a transcendência que une matéria, espírito e cosmos é apenas uma expressão do “atraso”.
Esta visão unicista de produtividade, que irmana empresários, grileiros e assaltantes ilegais da madeira, do minério e dos peixes, reconhece apenas o valor das grandes plantações e dos grandes negócios. Onde vivem povos e comunidades indígenas existem mais recursos naturais e mais árvores em pé, mais água, mais animais, isso os satélites já mostraram. Mas nelas há uma também realidade dramática, composta por diversas formas de expropriação, esbulho e espoliação de terras, sustentada por uma política de Estado composta por princípios depredadores e destruidores de vida. As agressões ao patrimônio indígena – que muitas vezes se desdobram, também, em agressões às pessoas que vivem nesses territórios – continuam a evidenciar o quanto as terras indígenas são vulneráveis às ações desses agentes que cobiçam os recursos e as riquezas nelas existentes.
Os dados de 2019 demonstram o aumento significativo das omissões do governo federal em relação às suas obrigações constitucionais no que tange aos povos indígenas. Tais omissões contam com a complacência do mais alto dirigente do país, Jair Bolsonaro. Assim ocorre quando o próprio presidente da República deixa de cumprir o artigo constitucional que determina que se demarquem e titulem terras indígenas e quilombolas. Assim ocorre quando o próprio presidente da República esvazia o órgão indigenista oficial, retirando de seu quadro especialistas e técnicos, trocando-os por indicações políticas dos ruralistas.
O governo fez de seus órgãos e ministérios – Funai, Ministério da Justiça, Ministério da Agricultura, Incra – instâncias que passaram a contestar os direitos constitucionais dos povos indígenas, propagando discursos inclusive sobre a necessidade de revisão destes direitos e propondo que as terras tradicionais fossem disponibilizadas para a especulação econômica.
Concomitante a essa perspectiva de governo, houve a imposição de limites assistenciais aos indígenas pela Funai, determinando-se que somente seriam assistidos aqueles que não estivessem requerendo e/ou lutando por demarcação. O governo acabou por transformar o órgão indigenista oficial em uma espécie de agência reguladora de negócios dentro de terras indígenas demarcadas, firmando acordos com latifundiários. Além disso, determinou a suspensão de todos os estudos demarcatórios e mandou rever os que estavam em andamento.
Há uma intencionalidade expressa do presidente da República em promover a desconstitucionalização dos direitos indígenas; em desencadear um intenso processo de desterritorialização dos povos, retirando-os de seus lugares originários e transferindo-os para cidades e reservas; em estabelecer, como política de Estado, a integração dos indígenas à sociedade envolvente. Não é de hoje. Ainda como deputado federal, Bolsonaro apresentou propostas contrárias aos direitos indígenas, a exemplo do Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 170, de 1992, que pretendia revogar a demarcação Terra Indígena (TI) Yanomami.
A lógica de pensamento do grupo que está no poder carrega consigo outras três graves características: a desqualificação dos povos indígenas enquanto sujeitos de direitos, fato amplamente propagado pelo presidente da República ao longo do ano de 2019, chegando a dizer que “índio não precisa de terra” e que deve ser integrado à sociedade; a desvalorização das formas e dos processos de produção dos povos indígenas, reativando os estereótipos que retratam estas populações como improdutivas, indolentes e obsoletas – que servem, por sua vez, para justificar que as terras que seriam demarcadas para o usufruto exclusivo destes povos sejam disponibilizadas aos produtores não indígenas; a desumanização da pessoa do indígena, retomando a imagem de que são um estorvo, empecilho, um problema a ser removido – conceituação com base na qual se promovem as mais variadas formas de agressões.
Ao se analisar o conjunto de medidas e de discursos de integrantes do governo Bolsonaroconsegue-se entender o esfacelamento das políticas assistenciais de educação, de saúde, de proteção aos povos livres (também conhecidos como isolados) e de demarcação de terras, bem como a imposição de um clima de insegurança e violências em todas as regiões onde há presença indígena.
No âmbito da política de educação, as afirmações do presidente e de seus ministros, de que os povos indígenas devem ser integrados ao mercado, que devem assumir formas de viver e pensar da sociedade majoritária para se tornarem, no dizer do presidente da República, “humanos como nós”, desrespeitam premissas constitucionais previstas nos artigos 231, 232, 210 e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Assim, a perspectiva assimilacionista é reavivada, nos moldes do regime ditatorial, e a oferta de educação escolar visa, portanto, romper com as perspectivas de consolidação de uma política pautada na diferença, a partir de um amplo conjunto de leis que garantem a educação escolar indígena específica, diferenciada, plurilíngue, organizada de modo a respeitar as pedagogias e os processos de aprendizagem de cada povo. Esse direito constitucional foi desrespeitado e os dados do Relatório indicam o abandono da educação, das escolas e dos professores. Não há infraestrutura, não há material didático, não há formação.
A política de proteção aos povos livres ou em situação de isolamento voluntário foi esvaziada e suas estruturas físicas e de pessoal destruídas ao longo de um ano. As informações apontam que está em curso o extermínio programado dos povos indígenas livres. Não se trata tão somente de uma omissão do governo Bolsonaro, mas de ação deliberada no sentido de possibilitar a invasão dos territórios, o que, historicamente, significou a violência e o massacre desses povos. Faz parte desse plano depredador e genocida a desconstrução de todo o sistema de proteção da Funai, ao mesmo tempo que, ora de forma velada, ora de forma explícita, respalda os invasores de seus territórios. Os levantamentos feitos pela Funai e pelo Cimi dão conta da existência de 116 registros povos isolados, grande parte dos quais em áreas sem qualquer providência em termos de demarcação e proteção de suas terras.
As demarcações, paralisadas desde o governo Michel Temer, sofreram ainda maiores retrocessos com o governo Bolsonaro. É o que mostram as mudanças quanto ao papel do Estado na condução da política de demarcação de terras, bem como a sua proteção e fiscalização. O governo, no atual contexto, age como legalizador ou autorizador das invasões e da exploração destas terras, na medida em que atua para inviabilizar qualquer possibilidade de que elas venham a ser demarcadas. Contrariando preceitos constitucionais, o governo abre mão da responsabilidade de preservação dos bens do Estado e lança mão de discursos e de medidas administrativas que estimulam a expansão agropecuária, o garimpo, a mineração, a exploração de madeira, a caça e pesca predatória, o loteamento e a grilagem das áreas que deveriam ser preservadas.
No ano de 2019, houve, logo depois da posse do presidente Bolsonaro, a iniciativa de se transferir a Funai para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, por meio de Medida Provisória. A função principal do órgão indigenista – a demarcação de terras – foi transferida para o Ministério da Agricultura. Frente ao veemente posicionamento e pressão dos povos indígenas e das entidades indigenistas, essas mudanças foram rejeitadas por decisão do Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal (STF). As atribuições de demarcação, proteção e fiscalização das terras voltaram a ser integralizadas na Funai, sob o comando do Ministério da Justiça, mantendo-se a estrutura anterior. No entanto, isso não implicou num realinhamento das propostas e perspectivas fundiárias do governo.
E para dar forma de legalidade a todas as medidas contrárias aos povos indígenas, o governo se amparou no Parecer 001, da Advocacia Geral da União (AGU), que vigora desde 2017. Neste parecer, se adotou uma lógica de desqualificação dos direitos constitucionais indígenas, aplicando de forma enviesada as 19 condicionantes do julgamento da ação popular contra a demarcação da TI Raposa Serra do Sol, o qual estabeleceu que elas se referiam tão somente àquele caso concreto, não sendo vinculantes a outros procedimentos demarcatórios.
Além das condicionantes, a AGU também impôs a tese do “marco temporal” nos procedimentos de demarcação de terras futuras, o que também contraria o julgamento referido e as decisões do STF sobre o tema. Esta tese restringe as demarcações apenas àquelas terras que estivessem sob posse comprovada dos povos indígenas em 5 de outubro de 1988. Ao fazer isso, legaliza e legitima as violências que atingiram os povos originários antes desta data, ignorando as violações da Ditadura Militar e o fato de que, até então, estes povos eram tutelados pelo próprio Estado que violava seus direitos.
Há, com a promoção dessa desestruturação das políticas, um propósito muito evidente do governo Bolsonaro: o de intensificar a exploração primária das terras onde há recursos ambientais, minerários, hídricos, bem como identificar as potencialidades produtivas para se colocar mais boi nos pastos e plantar soja transgênica. Nesse contexto, a promoção de incêndios criminosos na Amazônia, a retirada ilegal de madeira, o avanço de garimpeiros e a grilagem de áreas de florestas são, do ponto de vista do governo, essenciais para consolidar a transferência do patrimônio público para a iniciativa privada.
Parte das forças políticas e econômicas que dão sustentação ao governo Bolsonaro são, nas regiões, as mesmas forças que agridem e deslegitimam as lutas dos povos indígenas por seus territórios. Esse foi o caso do assassinato de Paulo Paulino Guajajara, ocorrido no dia 1º de novembro de 2019 na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, onde a ausência e a omissão absolutas do Estado levaram os indígenas a colocar suas próprias vidas em risco para fiscalizar e proteger seus territórios através de grupos de Guardiões da Floresta. A atuação dos Guardiões desperta reações violentas de madeireiros, grileiros e invasores.
Os povos indígenas enfrentam essa realidade de violência articulando ações e cobrando medidas para combatê-las no âmbito dos poderes públicos. Mas há de se fazer mais. Precisamos intensificar as campanhas em defesa destes povos, das terras e do meio ambiente junto aos organismos internacionais, requerendo também deles que se voltem para o Brasil e exijam do governo o respeito aos direitos humanos. Os gritos de dor e as lutas dos povos denunciam as variadas formas de violência e constituem-se em apelo em defesa da vida e pela garantia e consolidação dos direitos indígenas no Brasil.
Lúcia Helena Rangel é assessora antropológica do Cimi e professora de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
Roberto Antonio LIebgott é missionário e coordenador do Cimi Regional Sul, graduado em Filosofia, pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição (Fafimc) e em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)