“Às vezes, está estragado, mas pessoas querem mesmo assim”: o garimpo dos ossos e o apagão dos programas sociais

Não há naturalidade ou imprevisibilidade na volta da fome no país. Desde julho, notícias sobre a formação de filas para doações de ossos e restos de açougues circulavam nos jornais

Trabalhadores, no Rio de Janeiro, recolhendo restos de ossos e carne que seriam utilizados para a produção de sabão e de ração. Foto: Causa Operária

No dia 29 de setembro, o retrato dilacerante de famílias de trabalhadores, no Rio de Janeiro, recolhendo restos de ossos e carne que seriam utilizados para a produção de sabão e de ração para servirem como alimentos circulou no Brasil e no exterior.

Uma dessas imagens, do fotógrafo Domingos Peixoto, mostra um homem agachado em meio a restos de ossos, capturando a condição inominável a que chegamos. Uma das mulheres que recolhia os restos afirmou “ou comemos isso, ou morreremos de fome”, outra conta que há seis meses vai até o caminhão com os ossos: “pego aqui há seis meses (…). É uma ajuda e tanto! Pego, levo e salgo”.

Desde, pelo menos, meados de julho, notícias sobre a formação de filas para recolha de doações de ossos e restos de açougues já circulavam nos jornais. Na periferia de Cuiabá, onde famílias madrugam e formam filas para coletar doações de ossos e legumes que seriam descartados e não ficar sem ter o que comer, um homem afirmou: “Antes, nós conseguíamos comprar carne. Fico triste (…). Saio para conseguir doações para termos o que comer, quero ver meus filhos saudáveis”.

É uma espécie de “garimpo dos ossos” que se espalha pelo país como forma de sobrevivência, em um retrato violento do horizonte social do Brasil de agora e dos próximos anos. O desemprego, a carestia, a extrema pobreza e a fome estão de volta no país que em 2014 teve sua saída do Mapa da Fome anunciada pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Naquele ano, pela primeira vez no Brasil, havia menos de 5% da população ingerindo quantidade menor de calorias que o recomendável.

É um retrocesso que não pode ser naturalizado. Há um percurso do qual emerge que não está relacionado apenas à crise econômica no contexto da pandemia. Configura-se mediado pelo apagão dos programas sociais, sistematicamente impulsionado pela política econômica de anos recentes.

Desde 2016, redes nacionais de distribuição de cestas básicas já vêm sendo (re)ativadas, em escala não vista desde a década de 1990, diante dos cortes de beneficiários do – agora extinto – Programa Bolsa Família. Em 2019, com o fim do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o alerta para o desmanche das políticas de soberania alimentar soou mais alto. Em fins de 2020, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan), 116,8 milhões de pessoas já se encontravam em condição de insegurança alimentar, sendo 19,1 milhões passando fome.

Em 2020, no contexto da pandemia e com a articulação de uma diversificada frente política pelo Auxílio Emergencial, 46 milhões de brasileiros, informais, autônomos e desempregados, que não constavam nos cadastros socioassistenciais do governo federal precisaram do Auxílio para sobreviver.

A desconexão entre os direitos sociais e o trabalho, acentuada pela reforma trabalhista, já mostrava também seus efeitos e a precarização dos vínculos empregatícios, configurando o desemprego de 14,7% da população e salários insuficientes a 72,4% das famílias de trabalhadores, de acordo com dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) mais recente.

É uma parcela expressiva de trabalhadores que passaram por um processo acelerado de empobrecimento, e que agora se vê à beira dos degraus de privação material da população que já era atendida pelos programas sociais por estarem nas linhas de corte de renda definidas como de “pobreza” e de “extrema pobreza”.

Em 2021, com a publicação da Medida Provisória (MP) 1.061 que instituiu o Programa Auxílio Brasil no início de agosto, o Programa Bolsa Família, uma das ações do leque de políticas sociais responsáveis pela saída do Mapa do Fome em 2014, foi finalizado.

O Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), que permite acompanhar a condição das famílias atendidas por diversos programas sociais, já vinha sendo sistematicamente desatualizado e agora corre o risco de ser transformado em mero instrumento de cadastro.

Articulada aos dados do CadÚnico, a rede de proteção social cristalizada no Sistema Único de Assistência Social (SUAS), desde 2019, sofre um apagão que cumpre o papel de acentuar a interpretação distorcida de que pobreza e fome não estão relacionadas às escolhas políticas do governo, mas sim que, como ressalta o texto da MP do Auxílio Brasil, correspondem à necessidade de “incentivo ao esforço individual” e à “emancipação cidadã”.

Ainda que optemos por jogar o jogo previsto para o Auxílio Brasil, cabe a pergunta: que tipo de emancipação é possível em meio a essa cidadania destroçada que nos resta, se aceitamos, enquanto sociedade, que recursos de sobrevivência como o “garimpo dos ossos” existam?

Não se pode esquecer que a volta do país ao Mapa da Fome, assim como sua saída em 2014, está relacionada à dimensão das escolhas políticas que orientam as ações e interesses do Estado. Tais escolhas são elementos de um processo que se expressa como parte da essência de nosso modelo de desenvolvimento, situado entre a modernização e a reinvenção de formas “arcaicas” de produção, estabelecendo ritmos híbridos de desenvolvimento, tal como formulado pelo sociólogo Francisco de Oliveira.[1]

Esses ritmos híbridos se beneficiam da existência de circuitos como o do garimpo de ossos. Em Cuiabá, centro da modernização expressa pelo agronegócio, um homem na fila da doação de ossos diz que “É a maior felicidade a gente conseguir um ossinho (…) Eu estou desempregado e não tem para onde a gente recorrer. Faz tempo que eu não como carne, se não fosse o ossinho”.

Não há naturalidade ou imprevisibilidade na volta da fome no país. A proposição do Auxílio Brasil e o encerramento do Bolsa Família mobilizam um estado de paralisia das ações socioassistenciais que compõem a rede de proteção social. De fato, até o momento, não há interesse político em realocar o orçamento para o Auxílio Brasil e a transição de beneficiários do Bolsa Família para este outro programa está paralisada, enquanto o pagamento do Auxílio Emergencial chega ao fim.

No dia 23 de setembro, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) ocupou a sede da Bolsa de Valores. Em imagem da fotojornalista Amanda Perobelli, um homem e uma mulher seguram ossos de boi, erguidos em sinal de protesto no moderno saguão da Bolsa. Ao fundo, a bandeira nacional fixada pelos manifestantes no luminoso painel de ações estava marcada com a palavra “fome”. Os ossos, como síntese da contradição fundamental do Brasil circulam cada vez mais e, além de recurso de sobrevivência, se tornam símbolo de denúncia do retrocesso da volta da fome no país.

Os cartazes erguidos durante o protesto na Bolsa diziam “tem gente ficando mais rica com a nossa fome”, expressando a contradição dos ritmos híbridos de nosso desenvolvimento. Alguns dias depois, o motorista do caminhão que carrega os ossos coletados no Rio de Janeiro expressa o impacto da condição real desses ritmos: “Um país tão rico não pode estar assim. (…) O meu coração dói. Antes as pessoas passavam aqui e pediam um pouco de osso para dar para os cachorros. Hoje, elas imploraram por um pouco de ossada para fazer comida (…) Às vezes, está meio estragado, a gente fala, mas as pessoas querem mesmo assim”.

A circulação dos ossos na cena pública evidencia o curto-circuito das possibilidades de mobilidade social que pairavam no horizonte social brasileiro até 2016. Curto circuito que, por sua vez, é expresso na atual ênfase em ações individuais previstas no Auxílio Brasil. O Programa reforma e institui para os programas sociais a ideia de que a saída para a fome e a pobreza pode ser desconectada de ações coletivas e sociais. Não é de forma ignorante a essa leitura social que ações para desmobilizar iniciativas populares, invocadas pela solidariedade social, venham ocorrendo.

Caso mais recente é o da cozinha da Azenha, inaugurada em Porto Alegre pelo MTST e que teve ordem de despejo anunciada em outubro. A cozinha foi aberta em imóvel desocupado para distribuir refeições gratuitas para a população que está “vivendo de bicos ou dependendo da ajuda de familiares”, em um contexto no qual “não tem emprego, não tem renda, nem teto, muito menos comida”.

Pode-se ainda elencar os constantes ataques aos líderes comunitários que têm mobilizado redes de distribuição de alimentos, itens básicos de higiene e refeições, utilizando-se, para tanto, de espaços de culto religioso, das ruas, de garagens e das redes sociais. Em meio ao crescimento do número de furtos famélicos, de acidentes domésticos pelo uso de lenha e álcool mediante o encarecimento do gás de cozinha, e ao surgimento de “circuitos dos ossos”, ações de mobilização como estas se valem da dimensão da solidariedade social e, progressivamente, abrem brechas de sobrevivência.

Tal como as diversas ações populares das campanhas cívicas na década de 1990 que forneceram substrato para o desenvolvimento de programas sociais nacionais nos anos 2000, ações como as das cozinhas solidárias e da distribuição massiva de alimentos nos alertam para o esfacelamento da rede de proteção social conquistada neste novo século. Porém, talvez cumpram também o papel fundamental de indicar caminhos e pautas para a reconstrução do horizonte social do país.

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