As reformas de Michel Temer não reconhecem o trabalho das mulheres

 Por Sinara Gumieri.*

Segundo a Constituição Federal, a Previdência Social, junto com a assistência social e a saúde, é parte da seguridade social, que é um conjunto de políticas de promoção de cuidado às pessoas e suas famílias, inclusive e especialmente em situações em que viver com dignidade torna-se mais difícil – seja em função de desemprego, doença, velhice, deficiência. A seguridade social materializa o que a Constituição chama de objetivos da República: construir uma sociedade justa, livre, igualitária, sem pobreza e desigualdade. Quando fala em trabalho, a Constituição associa-o à garantia de existência digna para todas as pessoas, com justiça social.

Se previdência e trabalho tem a ver com cuidado e vida digna, é preciso saber quem cuida, e reconhecer desigualdades para não reproduzi-las nem agravá-las. Sob o pretexto de aliviar encargos de empresas e cortar gastos públicos, as reformas trabalhista e previdenciária não fazem isso, e o resultado já é conhecido: serão mulheres e famílias as mais afetadas – ou pior, as mais prejudicadas.

Entre as mudanças da reforma trabalhista já aprovada na Câmara, estão o aumento da jornada de trabalho, a redução do tempo de intervalo, o parcelamento das férias, e a possibilidade de que os acordos feitos entre trabalhadores e empregadores prevaleçam sobre os direitos mínimos determinados pelas leis trabalhistas. A desigualdade de forças na negociação é óbvia em pender para o lado dos patrões, tranquilizados pela possibilidade de buscar trabalhadores sempre mais desesperados para serem submetidos à exploração.

Para as mulheres, especialmente as negras, ainda mais precarizadas no mundo do trabalho, a tragédia é certa. A herança do patriarcado escravocrata oferece exemplo: o trabalho doméstico é a ocupação de 18% das mulheres negras e 10% das mulheres brancas no país. Para essas trabalhadoras, cujos direitos trabalhistas só foram equiparados aos dos demais trabalhadores por mudança constitucional em 2013, a luta ainda é pelo mais básico: apenas 30% tem carteira assinada e a renda média da categoria ainda não alcança o salário mínimo. Para as demais 70%, direitos a férias, jornada de trabalho, tempo de intervalo e negociação coletiva sequer chegaram.

Este é o plano de aposentadoria do governo do não-eleito Michel Temer: homens e mulheres que contribuem pelo menos 25 anos, e se aposentam com a mesma idade mínima, de 65 anos. Só que, na vida real brasileira, as condições de homens e mulheres para cumprir esses requisitos não são as mesmas. Aumentar o tempo de contribuição de 15 para 25 anos afeta mais os trabalhadores mais precarizados, que mais sobrevivem no mundo do trabalho informal, recebem salários menores e enfrentam mais desemprego. E quem são elas? Sim, são as mulheres. Além de buscar sustento para suas famílias – em que a participação dos homens é socialmente tratada como facultativa–, as mulheres têm ainda que lavar, limpar, cozinhar, cuidar da educação e da saúde de crianças, idosos e pessoas com deficiência. Cuidar e criar também são formas de trabalho: somando trabalho remunerado e trabalho doméstico não remunerado, a jornada de trabalho semanal das mulheres brasileiras tem 7,5 horas a mais que a dos homens. Se as mulheres trabalham mais que os homens, como pode ser justo que tenham que se aposentar com a mesma idade?

É cínico o argumento de que manter diferenças de tratamento entre homens e mulheres em marcos normativos do trabalho e da previdência é legitimar a desigualdade. Talvez seja nos raros países em que a igualdade no mundo do trabalho e das relações de dependência da casa está mais próxima, mas no Brasil, não é: reconhecer a desigualdade na forma como se compartilham socialmente os deveres de cuidado é requisito para garantir cuidado a quem precisa dele. Igualdade de gênero não se faz por decreto: exige creches, escolas de qualidade e em tempo integral, mulheres com tempo livre para se dedicar à qualificação profissional, patrões que não discriminam ou assediam, homens educados desde cedo – nas tais escolas de qualidade, onde debate sobre gênero não falta – para assumir responsabilidades como pais e não violentar. Exige, para começo de conversa, um governo que reconheça a dignidade das mulheres e de seu trabalho.

*Sinara Gumieri é advogada e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética. Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga https://www.facebook.com/AnisBioetica

Fonte: Justificando.

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