O conflito dos índios da etnia Guarani Kaiowá com fazendeiros do Mato Grosso do Sul, que segundo a vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, pode converter-se na maior tragédia contemporânea relacionada à questão indígena em todo o mundo, tem sido praticamente ignorado pela grande mídia. Em contrapartida, a causa dos índios Guarani Kaiowá tem despertado bastante receptividade e difusão nas redes sociais. Uma forma original de manifestação de apoio mostrou-se particularmente popular: a mudança do nome no perfil de cada usuário da rede. Acrescenta-se ao avatar o termo Guarani Kaiowá, como se o indivíduo também fosse parte da tribo em questão. De certa forma, forma-se uma nova “tribo”, composta pelos “Guarani Kaiowá” virtuais. Trata-se de um gesto simbólico, uma forma interessante e original de divulgar a causa, além de se mostrar uma maneira de empatia com uma comunidade indígena vítima de violência e de opressão.
Surpreendentemente, esse singelo ato inofensivo gerou uma onda de reações agressivas por parte de diversos articulistas da grande mídia. Em sua maioria, eles flertaram com argumentos do século XIX que, infelizmente, ainda fazem parte do senso comum. Apresentaram os índios como um povo atrasado, cuja cultura deve ser assimilada em nome do avanço do “progresso” da civilização ocidental. Alguns foram além na argumentação e, semelhantes aos primeiros jesuítas, há cinco séculos, compararam os índios a uma comunidade ainda em estado infantil. Colunista de um dos principais jornais do país chegou a defender a ideia de que as pessoas que acrescentam um nome índio ao seu devem ser classificadas como doentes mentais.
Toda essa ira desproporcional conduz à reflexão sobre o fato de nós, brasileiros, ainda termos vergonha da identidade indígena presente em nossa história social e individual, em maior ou menor escala. Parece que o processo colonizador causou danos permanentes na psique nacional, pois refutamos veementemente a ideia de sermos confundidos com os índios, o povo “primitivo”. Queremos nos assemelhar ao colonizador: europeu ou norte-americano, ocidental, branco e “civilizado”. O fato interessante é que, se tivermos coragem e curiosidade, e perguntarmos para qualquer norte-americano ou europeu veremos que, por mais que isso atinja nosso orgulho, eles não nos consideram ocidentais. Em sua visão, não somos ocidentais (e nem brancos, não importa o quão alva sua pele seja ou o quanto você destaque o ramo europeu da sua ascendência). Tal fato parece chocante e difícil de aceitar. Seríamos uma ex-colônia que recebeu influência de pelo menos mais duas culturas em sua constituição: a negra e a índia. Pensamos e agimos diferente. Eles nunca nos aceitarão em seu clube deles, por mais que tentemos desesperadamente macaqueá-los.
Agora vem a boa notícia: ao contrário do que o senso comum pensa, ser não ocidental é o que pode nos dar prestigio e valor internacional. Atualmente, os países ocidentais vivem uma grande crise de valores. A crença no progresso e em seus ideais vem sendo questionada e criticada no ocidente desde a metade do século passado. A promessa de felicidade contida na ideologia do progresso mostrou-se falsa. Ela produz cada vez mais ansiedade, estresse e depressão; sociedades fragmentadas, ambiente em constante degradação.
Os ocidentais perceberam isso e estão querendo mudar. Para muitos deles, a busca pela resposta a tais problemas passa pelo diálogo com outras culturas. Elas podem oferecer um novo olhar para velhos problemas. Compreendendo as coisas de maneiras diferentes, é possível estimular a criatividade na resolução de problemas. Outras culturas podem nos oferecer respostas diferentes e criativas.
A cultura brasileira é única justamente por ter sido construída em meio à da peculiar interação e da coexistência entre pelo menos três culturas: europeia, negra e indígena. Esse um valor perante a comunidade internacional. É nossa maior riqueza. É isso que podemos oferecer de diferente, que eles não têm.
O problema é que temos vergonha de ser diferentes. Temos vergonha de ser índios. No fundo, achamos que, se nos livrarmos dos índios e do que há de presumidamente primitivo em nós, os povos que acreditamos serem superiores (norte-americanos e europeus) finalmente nos aceitarão como iguais, como “civilizados”. Preferimos ser vistos como um país vendedor de soja e de suco de laranja do que um país de grande diversidade cultural. O motor da economia do século XXI são as ideias, a criatividade e a cultura, mas não acompanhamos ainda essa mentalidade. Demonstramos mais orgulho por produtos agrícolas de exportação do que dos povos que fazem parte da pluralidade cultural brasileira. E, paradoxalmente, ficamos irritados quando consideram nosso país república de bananas. Não percebemos o fato de que, se preservássemos a essência dessas culturas, seríamos um modelo de ação em qualquer país “civilizado”.
Como é possível mudar isso? Como deixar de associar o indígena a atraso e finalmente perceber o valor da diversidade humana que existe no país? Para aceitar, primeiro devemos nos conhecer.
Na verdade, o que se chama genericamente de índios é um grupo de mais de trezentos povos que, juntos, falam mais de 180 línguas diferentes. Cada um desses povos possui diferentes histórias, lendas, tradições, conceitos e olhares sobre a vida, sobre a liberdade, sobre o tempo e sobre a natureza. Em comum, tais comunidades apresentam a profunda comunhão com o ambiente em que vivem, o respeito em relação aos indivíduos mais velhos, a preocupação com as futuras gerações, e o senso de que a felicidade individual depende do êxito do grupo. Para eles, o sucesso é resultado de uma construção coletiva. Estas ideias, partilhadas pelos povos indígenas, são indispensáveis para construir qualquer noção moderna de civilização. Os verdadeiros representantes do atraso no nosso país não são os índios, mas aqueles que se pautam por visões preconceituosas e ultrapassadas de “progresso”.
Fonte: Outras Palavras