Por Paulo Meirelle.
Embora a gestão de Donald Trump seja abertamente a favor de estreitar as relações com o setor privado, o uso das portas-giratórias nem de longe é uma prática exclusiva ou invenção de sua administração
Imagine um alto-executivo de uma empresa que deixa seu cargo nessa companhia para assumir no governo uma posição em que ele atuará como legislador ou regulador justamente do setor em que seu antigo empregador atua. Ou o caminho contrário: um funcionário público do alto escalão do governo que migra para o setor privado para trabalhar como executivo, lobista ou consultor de empresas ou grupos que fazem negócios na área em que anteriormente ele era o responsável. Ou mesmo o militar de alta patente que, uma vez aposentado, pula entre grandes corporações e altas funções na burocracia do Estado.
É a esse movimento de alternância entre cargos públicos e privados realizado pelas mesmas pessoas que se dá o nome de portas-giratórias. No cerne desse vai-e-vem reside intrínsecos conflitos de interesses cujas ondas de choque que propaga, dada a importância dos Estados Unidos no cenário internacional, se fazem sentir não apenas na política interna dos Estados Unidos, mas também – ou principalmente – ao redor do globo.
Donald Trump se encontra com CEOs de grandes empresas no início de seu mandato
Desde que assumiu a presidência dos Estados Unidos, em janeiro de 2017, Donald Trump tem lubrificado e colocado em movimento as engrenagens desse mecanismo ao indicar para o primeiro escalão de sua administração, homens e mulheres que possuem laços estreitos com grandes empresas do setor privado.
Rex Tillerson, indicado por Trump e aprovado pelo Senado para ser Secretário de Estado, por mais de 40 anos fez parte da gigante petrolífera Exxon Mobil. Uma das atribuições de Tillerson será lidar com as sanções impostas à Rússia, que proibiram empresas norte-americanas de fazer negócios em setores estratégicos daquele país. Um desses setores é o de energia, no qual a Exxon Mobil detém contratos bilionários que estão congelados e só poderão ser efetivados se as sanções forem retiradas.
Jim Mattis e John Kelly, respectivamente os secretários dos departamentos de Defesa (DoD, na sigla em inglês) e de Segurança Interna ( DHS), são velhos conhecidos das empresas de defesa e ambos têm afirmado o interesse de trabalhar mais de perto com o setor privado.
Mattis figura como membro do conselho diretor da General Dynamics, empresa fabricante de submarinos, tanques, munições e bombas. Enquanto isso, Kelly possui ligação com uma série de companhias de defesa que possuem contratos com o governo norte-americano. Dentre elas, a DynCorp, uma das maiores companhias militares privadas do mundo e que hoje possui projetos em uma área que tem sido prioridade para Trump: o controle de imigração.
É, porém, nas posições para as quais não se requer aprovação do Senado para o exercício do cargo que se tem visto o maior movimento das portas-giratórias, com um destaque para os departamentos chefiados por Mattis e Kelly. Ao menos 15 são os apontados para ocupar funções de chefia no DoD e DHS, que trabalharam como consultores na indústria de defesa ou como lobistas de grupos especializados em lobby nesse setor. Entre seus antigos empregadores estão Lockheed Martin, Halliburton, as já mencionadas Boeing e General Dynamics, e empresas e grupos menos conhecidos como CACI Internacional, L1 Identity Solutions e SBD Advisors.
Embora a gestão de Donald Trump seja abertamente a favor de estreitar as relações com o setor privado, o uso das portas-giratórias nem de longe é uma prática exclusiva ou invenção de sua administração.
Seu antecessor, Barack Obama, ainda que em sua primeira campanha presidencial em 2007 tenha prometido frear a influência dos lobistas em Washington e por fim às portas-giratórias na política norte-americana, viu-se incapaz de cumprir sua promessa.
O jornal Politico, em 2014, apontou que, na realidade, a administração Obama contratou mais de 70 lobistas registrados previamente para ocupar cargos no governo durante seus dois mandatos. O período de Obama na Casa Branca foi também aquele em que os Estados Unidos mais exportou armas desde a Segunda Guerra Mundial.
O gráfico mostra a liderança dos EUA em vendas de armas tanto em valor dos acordos de transferência como em percentual de participação no mercado global, em 2015.
Antes de Obama, George W. Bush também contava com membros de gabinete ligados a empresas privadas de segurança e de reconstrução. Dick Cheney, vice-presidente durante o governo Bush, foi também CEO da companhia Halliburton até o ano 2000, quando abandonou sua posição para concorrer ao lado de Bush. O Financial Times, em 2013, revelou que a Kellog Brown and Root, uma subsidiária da Halliburton, ao longo de uma década de guerra no Iraque colheu 39,5 bilhões de dólares em contratos com o governo.
O complexo militar-industrial e o perpétuo estado de guerra
De fato, as portas-giratórias, no que diz respeito aos setores de defesa e segurança nacional, têm sido uma constante em governos democratas e republicanos pelo menos ao longo das últimas cinco décadas. Esse fenômeno está profundamente ligado ao desenvolvimento de um complexo militar-industrial nos Estados Unidos durante a primeira metade do século XX, notadamente, fruto do seu envolvimento com as duas guerras mundiais nesse período.
Em janeiro de 1961, em seu discurso de despedida como presidente, Dwight D. Eisenhower apontou sua preocupação em torno da “conjunção de um imenso estabelecimento militar” e “uma permanente indústria de armas de vastas proporções”. Já naquela época, Eisenhower afirmava que a influência “econômica, política, e mesmo espiritual” desse complexo, se fazia sentir “em cada cidade, cada Estado e em cada escritório do governo federal”. O risco era o de que o peso de toda essa influência viesse comprometer as liberdades e os processos democráticos daquele país.
Ordens militar, política e econômica: as “altas rodas” da sociedade norte-americana
Em outras palavras, o que Eisenhower observava era uma tendência cada vez maior da política externa dos Estados Unidos de ser sequestrada por interesses privados e de um dado setor do governo (o militar), envolvendo o país num perpétuo estado de guerra.
Não por acaso, a segunda metade do século XX, afora a corrida armamentista contra a União Soviética, presenciou uma massiva participação dos Estados Unidos em uma série de conflitos e intervenções militares, como a Guerra do Vietnã, a Guerra do Golfo e as intervenções nos Balcãs.
Desde a virada do milênio, os Estados Unidos iniciaram duas guerras: uma no Afeganistão e outra no Iraque, ambas sem um fim aparentemente claro em vista, apesar de oficialmente as operações terem sido encerradas, respectivamente, em 2014 e 2011.
Houve também a intervenção na Líbia em 2011 e, mais recentemente, a coalizão liderada pelos Estados Unidos para atacar as posições do Estado Islâmico, na Síria e no Iraque, além do envio de armamentos para grupos rebeldes que lutam contra Bashar al-Assad. Ainda, no Iêmen, a força militar dos Estados Unidos se expressa através de sucessivos ataques com drones.
Esse perpétuo estado de guerra prenunciado por Eisenhower significa também, para as companhias de defesa, um perpétuo estado de lucro. Como afirmou a CEO da Lockheed Martin, Marillyn Hewson, a contínua volatilidade no Oriente Médio faz da região uma área de crescimento para a empresa. Essa afirmação descreve, de maneira geral, a situação de todas as empresas envolvidas nas empreitadas militares dos EUA.
Após Donald Trump autorizar na última quinta-feira, 06 de abril, o ataque contra bases militares da Síria em resposta ao uso de armas químicas, na terça-feira, 04 de abril, que o governo norte-americano atribui a Assad, as ações das empresas Raytheon, fabricante dos mísseis Tomahawk disparados pela Marinha norte-americana, chegaram a ter aumento de 3% na sexta-feira, 07 de abril. Após o uso de 59 mísseis desse tipo, a reposição do estoque deve custar ao governo norte-americano quase 100 milhões de dólares. Seguindo a tendência, as ações de Boeing, General Dynamics e Northrop Grumman também apresentaram alta.
Estado, capital e guerra
O famoso sociólogo norte-americano, C. Wright Mills, em sua obra a Elite do Poder, afirmava que “já não existe, de um lado, uma ordem econômica, e do outro, uma ordem política encerrando uma organização militar sem importância para a política e os lucros”. Imbricadas uma na outra, diz Mills, o que existe é “uma economia política ligada, de mil modos, às instituições e decisões militares”.
As portas giratórias são as articulações que mantém unida e funcionando esse grande mecanismo que molda e sustenta a política doméstica e externa dos Estados Unidos.
O alerta de Eisenhower confirmou-se muito mais como uma profecia. E, embora ele temesse o fim da liberdade e do processo democrático nos Estados Unidos, a ameaça do complexo militar-industrial, e das portas-giratórias como suas vias para dentro e para fora do governo, está majoritariamente concentrada longe de sua terra natal. Ela tem se concretizado, nas últimas décadas, no Oriente Médio. Ironicamente, sob a justificativa de levar a liberdade e a democracia à região.
Por fim, cabe um questionamento: de onde emerge essa dinâmica? É um problema jurídico a ser sanado por leis mais assertivas que limitem a influência de grandes corporações na política? Ou seria esse um problema inerente ao capitalismo e, portanto, muito mais antigo e de uma resolução muito mais complexa?
Outro grande sociólogo norte-americano pode nos indicar uma resposta. Charles Tilly afirma que, historicamente, a formação do Estado moderno é indissociável de dois elementos: a concentração de capital e o fazer da guerra. Há que se perguntar, então, se à medida que o primeiro torna-se cada vez maior, também o segundo não se torne cada vez mais frequente.
Para Tilly, contudo, não é que um desses elementos preceda o outro em um tipo de relação de causalidade, mas justamente que capital e guerra estão numa relação inextricável e concomitante desde os primórdios do Estado. Caminham juntos como que por uma fita de Möbius.
As portas-giratórias da política norte-americana evidenciam que, no capitalismo, lucro e guerra são perpetuamente as duas faces de uma mesma moeda.
Fonte: Outras Palavras.