As mulheres sangram e as ruas gritam contra a hipocrisia

Por Paula Guimarães, para Desacato.info. 

O atendimento à mulher em processo de abortamento no hospital público pode ser tão humilhante quando inseguro. Mesmo que não seja possível dizer num primeiro momento se ela provocou ou não a interrupção da gravidez, espera-se que conte com a sorte de “cair” no plantão de profissionais que sejam mais humanos do que necessariamente “cristãos”. O policiamento começa ali mesmo no momento de maior vulnerabilidade de um ser humano com dor e medo. Além da negligência no socorro, está a postergação no atendimento como forma de punir a mulher pecadora e criminosa. Isso quando ela sobrevive ao submundo da clandestinidade. Na vida real, são as mulheres pobres e negras que pagam um preço alto pela falta de recursos, desinformação e são vítimas fáceis de intimidação e punição. O calvário que vai da clínica clandestina (ou soluções caseiras), passando pela loteria do hospital público, à prisão, sem dúvida não é alternativa para seres humanos que só querem decidir sobre suas próprias vidas.

Para alguns legisladores brasileiros esse cenário não é suficiente. Não basta criminalizar o aborto, é preciso desconfiar, humilhar, retirar direitos, chamar mulheres de ardilosas mesmo quando são violentadas sexualmente e a opção pela interrupção da gravidez é um direito. É o que propõe o Projeto de Lei 5069/2013 que tem deixado as feministas mais “raivosas” do que possa supor aqueles que assim as rotulam. Elas iniciaram um movimento tão expressivo e coerente que tem sido chamado de Primavera das Mulheres. Presente nas principais cidades do país, levou centenas às ruas do centro de Florianópolis, na última sexta-feira.

mulher morta

É de autoria de Eduardo Cunha, mas tem o aval de uma bancada com sede de exterminar direitos humanos. Eles são em sua maioria cristãos que falam em nome de um Deus, mas abortam mulheres enquanto defendem uma vida abstrata. Como bem afirmou a filósofa Márcia Tiburi: “abortam-se as mulheres para que elas não abortem”, na recente audiência pública no Senado Federal, que discutiu a interrupção voluntária da gravidez pelo Sistema Único de Saúde (SUS) até a 12 semana de gestação.

O aborto é considerado crime no Brasil pelo código penal da década de 40, não sendo penalizado nos casos de gravidez de risco ou violência sexual. A Lei N 12.845 de 2013 dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual, deixando claro que a palavra da vítima é suficiente para que ela tenha acesso aos cuidados de saúde, que inclui a pílula do dia seguinte e prevenção de doenças. Porém, o PL 5069/2013 muda o atendimento, exigindo uma comprovação do crime, que é o exame de corpo de delito, para que mais uma vez, ela tenha seu corpo e dignidade violados.

mulher morta pela lei

Caso a mulher demore a procurar ajuda, e a pílula do dia seguinte não tenha mais eficácia, é informada sobre o seu direito à interrupção da gravidez. O PL propõe que as informações sejam sonegadas ao excluir da lei a obrigatoriedade do profissional de saúde de falar à vítima sobre seus direitos, sobretudo ao aborto legal e gratuito pelo SUS. O silenciamento é o que querem eles, para que as vítimas não saibam que podem decidir por não manter a gravidez resultante de uma violência.  Porque para esses legisladores, padres e pastores informar é induzir.

Com o argumento de que as mulheres mentem, inventam que foram estupradas para terem acesso ao aborto legal, são eles próprios, os legisladores defensores do projeto, que buscam caminhos, juntando no mesmo pacote criminalização e atendimento à vítima de violência, para driblar a lei e colocá-las no lugar de criminosas. Em suma, o PL de Cunha e da comunidade cristã que o respalda busca a ampliação da criminalização do aborto, até mesmo nos casos em que a escolha é um direito.

Caso seja aprovado em plenário, o futuro é de policiamento amplificado nos hospitais públicos e na sociedade como um todo. O profissional de saúde, que em seu exercício profissional e ético, orientar ou tirar a dúvida de qualquer paciente sobre o aborto pode ser condenado a cinco anos de prisão. No uso de sua liberdade de expressão, a mulher também pode ser condenada por manifestar-se favoravelmente à descriminalização do aborto. Caso uma mulher divida com sua colega uma experiência de clandestinidade “bem sucedida”, também pode ser considerada criminosa.

Todos que defendem esse projeto se orgulham em dizer que a maioria da população brasileira é contrária ao aborto, mas omitem a informação de que também a maioria já conheceu uma mulher que o praticou e não gostaria de vê-la na prisão. Isso porque há uma distorção no debate que propõe a cisão entre quem é favorável e quem é contrário. Ninguém defende que mulheres abortem. E nem aquelas que optam por interromper a gravidez o fazem como quem vai à esquina comprar um refrigerante. Existe dor, solidão, julgamento. Se todos são contra o aborto, a questão é como resolver o problema, tratando-o como uma questão de saúde pública, ou criminalizando a mulher, como bem pontuou o médico Olímpio Barbosa, também em audiência pública no Senado.

A defesa pela descriminalização e legalização é para que a mulher possa ser acolhida e receber um atendimento digno no hospital público, conforme propõe os principais tratados internacionais e a Organização Mundial de Saúde (OMS). Os países mais desenvolvidos entendem o aborto como uma questão de direito reprodutivo e de saúde pública, não de moral ou cárcere. O direito à interrupção da gravidez refere-se ao exercício da autonomia e cidadania das mulheres comuns que merecem ter sua decisão e integridades física e moral respeitadas.

Cerca de 800 mil mulheres recorrem ao aborto clandestino no Brasil todos os anos. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto realizada pela cientista Débora Diniz, em 2010, uma em cada cinco mulheres já praticou aborto até os 40 anos de idade. Quase 8 milhões de mulheres, entre 18 e 39 anos, já abortaram em algum momento da vida. A maioria casada e com filhos.  Deveriam elas estarem no sistema penal brasileiro?

Católicas abortam, evangélicas também. É a vida concreta que se sobressai às falácias, ao moralismo e à doutrinação. Carregam a cruz e morrem nela pregadas as mulheres pobres e negras, aquelas que não podem viajar aos países de primeiro mundo ou pagar por uma clínica ou medicamentos aqui mesmo. Quem tem uma situação econômica confortável sequer responde a processos judiciais.

As mulheres sangram e as ruas gritam contra a hipocrisia. É preciso falar sobre o aborto e a criminalização que acentua e promove a discriminação social, numa conversa franca com a sociedade. As mulheres estão cientes de que não se retrocedem direitos, somente é possível ampliá-los. O PL 5069/2013 veio para ferver esse caldeirão. Nesta Santa Inquisição Contemporânea façamos nós, as bruxas, que o feitiço se volte contra o feiticeiro promovendo o debate maior sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Não há mais volta, estamos no século 21. Não é somente pela morte evitável de 200 mulheres por ano, lutamos para que não haja morte em vida de algo que é fundamental a qualquer pessoa: sua dignidade humana.

Fotos: Rubens Lopes

 

2 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns a jornalista pela excelente matéria! Confesso que pra mim, que me considero ativista dos direitos das mulheres, esse texto me trouxe esclarecimentos e conseguiu desconstruir conceitos conservadores que eu tinha sobre o tema! Parabéns Paula, parabéns Desacato!

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