‘As mulheres não podem calar porque o silêncio mata’, diz promotora popular

Para Maria Guaneci, além da proteção às mulheres, o Estado precisa reeducar os homens.

“Tem que meter a colher, tem que meter o garfo e tem que meter principalmente a Lei Maria da Penha” – Foto: Fabiana Reinholz
Por Fabiana Reinholz, para Brasil de Fato.

Com 28 anos de experiência ouvindo mullheres que vivenciaram violência e assédio, Maria Guaneci Marques de Ávila, 65, sabe do que está falando. Na sua rotina como promotora legal popular, essa missioneira de São Luiz Gonzaga ouviu muitos dramas, aprendeu e ensinou.

Também conhecidas como PLPs, as promotoras são lideranças comunitárias que recebem uma formação através de curso. Assim, podem orientar e ajudar no dia a dia das mulheres, esclarecendo-as sobre seus direitos, o acesso à justiça e o combate à opressão. Aplainam o caminho entre as pessoas e os serviços do Estado.

Nesta entrevista para Brasil de Fato RS, Maria Guaneci adverte que, para romper o ciclo de agressões entre as quatro paredes do lar, as mulheres “tem que meter a colher, tem que meter o garfo e tem que meter principalmente a Lei Maria da Penha”.

Confira a conversa:

Brasil de Fato RS – Gostaria de começar com um pouco da tua trajetória…

Maria Guaneci – Sou uma mulher que preza pela vida, pelo respeito, pela justiça. Se tem uma coisa que me deixa indignada é ver alguma forma de injustiça. Sou de origem indígena Guarani e estou em Porto Alegre há 43 anos. Me separei com 30 anos de casada. Tenho dois filhos maravilhosos que são a minha paixão, duas noras, uma neta. Essa é minha família. E tenho muitas amigas e muitos amigos.

Minha luta nesses 65 anos é pela justiça e a igualdade. Por isso que me tornei Promotora Legal Popular (PLP). Em 1994, quando a Themis (a Themis-Gênero, Justiça e Direitos Humanos, fundada em 1993, é a organização que prepara as PLPs) chegou no bairro Restinga, onde moro, com a proposta de formar a primeira turma de promotoras legais populares, me apaixonei de cara.

Me formei em 25 de agosto de 1995 e, desde então, convivo com a Themis. Já fiz parte da equipe técnica e faço parte do conselho diretor. Também acompanho os vários cursos de PLPs, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul e no Brasil. Já fui em alguns estados abrir cursos de formação. A gente tem andado muito pelo país levando essa experiência.

O curso traz transformação na vida das mulheres e porquê? Justamente por esse conhecimento sobre os seus direitos, que outros serviços, até a faculdade (não trazem).

Me formei assistente social e não aprendi na faculdade o que aprendi na Themis. Aprendi na prática. Hoje temos promotoras legais populares em todos os bairros de Porto Alegre e em todos os municípios. Isso faz a diferença porque a rede de serviços está muito fragmentada. Ela não chega, principalmente, na periferia. Mas lá mora uma promotora legal popular e ela faz parte dos conselhos de saúde. É conselheira tutelar, é do conselho escolar, é do conselho de segurança. E quando uma mulher está passando por situação de violência, essa promotora, ao fazer a escuta e acolher essa mulher, consegue fazer a ponte entre o Estado e os serviços.

Promotoras legais populares são convidadas a estarem nos espaços para falar sobre as formas de violência. Nós andamos nas escolas, nos postos de saúde, nas universidades. Gosto muito desse papel de levar essa informação. Quando vamos a uma universidade, por exemplo, ali é um espaço de transformação porque aqueles alunos, seja qual for o curso, são futuros profissionais que vão estar lá na ponta atendendo essa mulher. E que muitas vezes quando falas das formas de violência, falas da rede, eles nem sabem o que é isso, porque é diferente o que a universidade ensina.

As senhoras falaram que podem parar a violência e a minha mãe apanha muito do meu pai

Estar em uma escola falando para professores, alunos, servidores, famílias, é importante. Porque aquela criança, que parece não estar escutando o que estás falando, ela escuta sim. A gente estava na Restinga fazendo um evento numa escola, eu e as minhas colegas, e falávamos das formas de violência, como fazer para cessar essa violência. No final da fala, veio uma menina, acho que de nove anos, e disse assim: ‘Posso perguntar para as senhoras uma coisa? As senhoras falaram que podem parar a violência e a minha mãe apanha muito do meu pai’. Eu disse: ´Vamos conversar. Onde está a tua mãe?` E ela: ´Está em casa`. Podemos conversar com a tua professora? Fomos conversar e a gente conseguiu dar um sentido para aquela criança, que a mãe poderia acessar os serviços e dar conta.

As crianças ouvem e reproduzem a informação que a gente leva. E, nos postos de saúde e hospitais, é muito importante, porque são a porta de entrada de todas as formas de violência. Sempre pergunto para a equipe que está ali ouvindo a nossa conversa: ´Vocês conseguem identificar que aquela mulher que chega com sintomas ou sinais é um acidente doméstico ou é uma violência doméstica?` E, às vezes eles não sabem responder.

“Perguntei: ´Estás disposta a romper com a violência?`  E ela: ´Estou, porque não aguento mais, eu apanho`”

“Nenhuma mulher deve sofrer qualquer tipo de violência, seja assédio no trabalho, seja violência doméstica” / Foto: Fabiana Reinholz

Como as mulheres chegam a ti ou as tuas colegas? Elas identificam violência de gênero, por exemplo, na violência psicológica ou não? 

Posso até citar um caso que aconteceu há algumas semanas. Um amigo meu perguntou se eu poderia escutar uma mulher em situação de violência.  Era amiga dele e tinha pedido ajuda. Disse que sim e que ela poderia me ligar. ´Não, ela não pode te ligar. Tem que ser do meu telefone porque ela está em cárcere privado. Essa menina saiu para levar a filha de três anos em um espaço e me ligou. Ela não conseguia falar, chorava muito`. Meu amigo perguntou se poderia levar a menina até a minha casa. E essa menina chegando lá, eu digo menina porque ela é muito jovem, começou a falar todas as situações de violência sofridas.

Perguntei para ela: ´Estás disposta a romper com esse ciclo de violência?` E ela: ´Estou, porque não aguento mais, eu apanho`. Fomos até um serviço que conheço e a servidora que acolheu disse: ´Vou ver um abrigo para ti`.

A gente montou um plano de segurança para essa mulher poder sair de casa. Ela tinha até uma determinada hora pra voltar pra casa. Montamos o plano A e o plano B. Só que os dois planos não deram certo e tivemos que montar um terceiro. Que foi eu ligar para a Patrulha Maria da Penha, conversar com ela, passar as informações, conversar com esse nosso amigo que foi até a residência dessa moça junto com a Brigada Militar. E assim conseguiram tirar ela lá de dentro. Pedi para o meu amigo agradecer à Brigada pelo sucesso visto que o agressor, em outra ocasião, já tinha inclusive agredido os policiais.

Esse exemplo é importante porque pedes o apoio de um serviço mas não sabes quem está lá (para acolher). Isto é rede. É teres trabalhado e fortalecido esses laços. E essas mulheres chegam de todas as formas para nós (através dos) postos de saúde, os CRAS, os CREAS, escolas, que conhecem o trabalho das promotoras legais populares.

Essas são ameaças que os agressores fazem: tirar os filhos, matar os filhos, como matam mesmo

Outro empecilho para romper esse ciclo de violência é o medo das mulheres de saírem dessa situação…

Ela mesma (a vítima) me disse: ´Ele (o companheiro) diz que vai matar a minha mãe`. Imagina saber que, se romper o relacionamento, vão matar um familiar teu. Essas são ameaças que os agressores fazem: tirar os filhos, matar os filhos, como matam mesmo. Quantos feminicídios já aconteceram em que acabam matando os filhos também?

O medo faz com que a mulher não consiga sair daquele ciclo. Por isso tem que ter um serviço que acolha, que escute, que diga ´Você não está sozinha`. Mas não é só escutar. É encaminhar para os serviços. Precisamos dar a mão para essa mulher e caminhar juntas. Eu preciso estar junto. Ela precisa sentir que pode contar comigo.

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“É preciso urgentemente os governos municipal, estadual e federal trabalharem mecanismos que levem formação e conhecimento das formas de romper essa violência” / Foto: Fabiana Reinholz

Falastes da tua formação como assistente social. Em outra entrevista, dissestes que tivestes que parar de estudar…

Eu me formei em 2012, na ULBRA/Canoas. Voltei a estudar com 40 e poucos anos. Já exerci várias funções na minha vida. Fui conselheira tutelar na Restinga em 1998/2001 e 2004/2007, e eu tinha a terceira série do ensino fundamental. Quando voltei a estudar fiz o EJA (Educação de Jovens Adultos), o ensino fundamental e o ensino médio. E quando fui fazer o EJA do ensino fundamental os professores disseram: ‘Guaneci, que bom que tu estás aqui. Vais fazer uma roda de conversa com a gente?` Eu disse que não, que vinha estudar. Ninguém acreditava que eu não tinha o ensino fundamental, muito menos o médio.

Voltar a estudar foi uma realização pessoal. E também um incentivo para outras colegas minhas que hoje estão formadas. São advogadas, pedagogas, enfermeiras, técnicas de enfermagem porque, quando voltei a estudar, comecei a levar muitas para estudar também. Essa experiência foi muito bacana, porque realizei um sonho de fazer uma faculdade. Lembro que, nos primeiros dias de aula, eu atravessava lá o pátio da Ulbra e dizia ´Nossa, mas eu estou na universidade!` A autoestima da gente vai muito alto.
Sempre digo que é culpa da Themis. No início da nossa trajetória enquanto PLP, que a gente ia para os seminários, quando tinha que preencher uma ficha, colocava ali ´Maria Guaneci`. Não tinha nem ensino fundamental. Então poder dizer assim: ´Sou assistente social, ensino superior completo, pós-graduação em gestão de pessoas…` Isso é muito legal. E é conhecimento também. A gente tinha o conhecimento prático, da vida, e agora tem também um pouco do conhecimento teórico. Ser assistente social é eu saber de que forma vou garantir os direitos dessas mulheres, onde, quando e como.

Ouvi as mulheres falarem: `Ele diz que, quando sair da cadeia, vai fazer pior`

Outro ponto que conversamos foi sobre um dispositivo da Lei Maria da Penha, que trata da reeducação dos homens. Queria que recapitulasses essa importância também de reeducar esses homens.

Precisa haver serviços de reeducação dos autores de agressões. Se não acontecer esse serviço que reeduque, eles vão continuar repetindo essa violência. Porque, quando uma mulher denuncia uma violência, o autor das agressões é responsabilizado, penalizado mas não é cuidado enquanto pessoa. Quantas vezes já ouvi as mulheres falarem: `Ele diz que, quando sair da cadeia, vai fazer pior do que fez antes`.

Temos que pensar nisso também para poder romper com esses ciclos. E trabalhar a reeducação no trabalho, na família, na educação, saúde… A violência não é só na periferia. Nesses 28 anos de promotoras legais populares, já atendemos advogadas, juízas, médicas e policiais. A violência está em todas as classes, religiões e lugares.

A mulher diz: ´Me criei num ambiente onde meu  pai era agressor e meus irmãos eram agressores`

Já ouvimos psicólogas que apontaram que, muitas vezes, a violência está relacionada com a infância também… 

Por isso temos esse papel de levar as informações às escolas. Ali tem crianças que estão ouvindo as informações. Serve para que elas digam que na família delas tem violência. Ou também para que percebam que agredir, ameaçar, maltratar outra pessoa não é legal. E há tantas famílias em que a mulher diz: ´Eu me criei num ambiente onde meu pai era agressor, meus irmãos eram agressores`. Se se criou em um ambiente em que tinha agressão, essa mulher não conheceu outra forma de relacionamento…

“Vivemos um sucateamento nas políticas públicas” / Foto: Fabiana Reinholz

Uma questão muito séria também, quando falamos no combate à violência contra as mulheres, diz respeito ao financiamento para os programas que foram sucateados. E também o financiamento que é o sustento para essa mulher.

Vivemos um sucateamento nas políticas públicas. Tudo que é relacionado às políticas públicas, na saúde, na geração de renda, na habitação, seja o que for, para as mulheres é sempre menos. Está na hora dos governos, municipal, estadual, federal pensarem na vida das mulheres. Nas mães solo, nas solteiras que precisam de habitação, trabalho, educação, para que  se mantenham. Para que não dependam daquele namorado, companheiro ou marido que se torna um agressor. É uma responsabilidade do Estado. Os movimentos de mulheres estão em luta constante para que isso aconteça.

Um boletim de ocorrência mal feito é a causa daquela mulher voltar a sofrer violência

As leis existem. Tem a Maria da Penha, a Lei do Feminicídio, tem outras leis e dispositivos que as mulheres podem acionar… 

em que ser cumprido. Nos serviços de segurança, justiça e saúde tem que ter profissionais capacitados. Para que eles entendam que, quando aquela mulher chegar e solicitar uma habitação, um atendimento médico ou de segurança, um boletim de ocorrência bem feito, eles saibam que tem que fazer. Que é responsabilidade daquela pessoa que está atrás do balcão. Ela é pessoa responsável, muitas vezes, por romper a violência que a mulher está sofrendo. Um boletim mal feito, e a gente já viu vários, é a causa daquela mulher voltar a sofrer violência e muitas vezes também acabar em feminicídio.

O que precisa ser feito para diminuir essa violência? 

É preciso urgentemente os governos municipal, estadual e federal trabalharem mecanismos que levem formação e conhecimento das formas de romper essa violência. Como campanhas informativas. Com materiais informativos. E que esse material chegue até essa mulher como cartilha ou folder. Mas (é preciso) que principalmente os serviços estejam abertos e com acesso a essa mulher. Seria bom ter também uma campanha midiática, dos grandes grupos de comunicação.

E além disso há o Serviço de Informação à Mulher (SIM), que existe em todas as regiões, onde as mulheres podem buscar orientação. É um espaço que é um plantão semanal. E há duas PLPs sempre de plantão para escutar e acolher.

Uma mensagem que gostarias de deixar… 

Nenhuma mulher deve sofrer qualquer tipo de violência, seja assédio no trabalho, seja violência doméstica. E que ela procure se informar quais são os serviços (de escuta e acolhimento) na sua região ou município. Que possa chegar lá com confiança e falar do que está passando. E os serviços terão a responsabilidade de acolher sem julgar e isso é muito importante. É que, quando nós falamos de violência, as mulheres negras são as que mais sofrem. São as primeiras que sofrem discriminação. Então procurem, não fiquem caladas, porque é o silêncio que mata. “Tem que meter a colher, tem que meter o garfo e tem que meter principalmente a Lei Maria da Penha”, ensina.


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