Por Carlos Weinman, para Desacato. info.
As Górgonas costumavam devastar e aterrorizar o imaginário do ser humano da antiguidade. Entre elas, estava Medusa, a mais conhecida, repudiada por sua aparência. Seus cabelos eram formados por um amontoado de serpentes, o que já seria o suficiente para amedrontar, não obstante, esse não era o pior dos efeitos, quem ousasse olhar para ela petrificava, perdia a vida, reduzia a sua existência à matéria bruta.
Para dar cabo da horrenda criatura, o herói grego Perseu não pôde olhar para ela, mas apenas para o reflexo, mostrado em seu escudo, por maiores habilidades que ele tivesse, não era possível ousar. Há muitas perguntas que podem ser feitas sobre o que está por detrás da maldição, mas entre elas ficam os questionamentos: por que a morte e o terror são inevitáveis ao olhar para Górgona? Qual o motivo do reflexo, usado como espelho não ter paralisado o grande herói? Talvez a representação mitológica traga, na sua essência, uma reflexão sobre o medo e a devassidão que o ser humano tem em encontrar a si mesmo, ainda mais quando forem consideradas as suas relações com seus semelhantes e com o mundo, bem como encarar as motivações das ações, dos desejos mais profundos, quem sabe o que poderá ser encontrado? Será que há algo muito nebuloso ou puro vazio da existência que possam ser tão devastadores ao ponto de impedir o movimento, de petrificar o espírito?
A imagem refletida constitui em uma percepção sobre a realidade, sem ser, não é idêntica, embora o ser humano se identifique e talvez se defina através dela. Por esse motivo, é mais fácil encarar a representação do espelho do que usar encontrar o ser, a existência, o que torna mais complexo o entendimento da humanidade. Visto que o ser humano tem como característica, a sua capacidade de construir representações e abstrações. Através delas está a sua definição, difícil é encontrar o ser na representação, pois em geral o reflexo traz a imagem distorcida, fazendo com o que não é ser dado como verdadeiro.
O exercício do pensamento aparece como uma necessidade para decifrar ou interpretar. Nesse caso, o que é considerado verdadeiro não é absoluto, é apenas a demonstração de uma interpretação, por isso está sujeita ao questionamento, força motriz, que obriga buscar encarar o ser, suas limitações, seus condicionamentos. Para escapar dessa complexidade, a crença ganha força, por apresentar uma interpretação pronta capaz de modelar e orientar as ações. Contudo, isso não é visto como um problema, apenas revela a busca de soluções ou respostas. Afinal, quem será o humano capaz de encarar o questionamento incessante sobre si e o mundo, ir além do espelho, se nem mesmo Perseu ousou? Sem contar que existe a possibilidade da górgona, escondida nas entranhas do humano, ser desvelada.
Diante da dificuldade apresentada, o humano não buscou refúgio na morada do ser, mas sim na crença sem questionamento, já que a facilidade é mais desejável do que o trabalhoso exercício do pensamento, por analogia podemos afirmar que é mais fácil e desejável, no caso do ser humano moderno, os comandos “Crtl c + Crtl v” do que o “comando pense, questione e crie”. No entanto, isso ocorre pelo fato do exercício do pensamento ter a necessidade de ser experimentado e instigado, o que muitas vezes não ocorre no processo formativo dos indivíduos, ficando a questão sobre o motivo. Como diria o filósofo Immanuel Kant, em todos os lugares aparecem pessoas que dizem: acreditem! Obedeça! Não pense e seja igual a nós! Hoje acrescentaríamos, consuma e não pense! Assista e não raciocine! Leia e não interprete! Apareça e não se preocupe com o ser!
Sobre as crenças, Kant fez, em sua obra Crítica da Razão Pura, uma distinção entre opinar, crer e saber. Ele afirmou que o opinar corresponde a uma crença subjetiva, alicerçada nas expressões como “eu acho que”, caracterizada pela incerteza para o próprio indivíduo. Por sua vez, o crer ou a fé está relacionada a uma crença com validade para o sujeito, mas não pode ser provada, mesmo sendo suficiente para a pessoa que acredita. O saber já demostra ser uma crença válida para todos, como diria o filósofo, uma crença objetiva, como seriam os dados da matemática.
Todavia, o filósofo Immanuel Kant destacava que o conhecimento humano apresenta limites, não é possível compreender ou conhecer a totalidade, apenas os fenômenos, a maneira como eles se apresentam ao ser humano. Por esse motivo, o autor destacou a necessidade da crença, como uma busca de unidade do conhecimento, pois o ser humano não se contenta com os limites, é natural a investigação, ao menos deveria ser. Por esse motivo, surge a necessidade de considerar a crença sobre a perspectiva da crítica, sem isso, a própria razão e a ciência podem ser conduzidas por formas ou princípios dogmáticos, isto é, sem o crivo da crítica, onde determinados princípios ou crenças são tomados como verdadeiros sem questionamentos, o que sugere um problema, imaginamos uma crença tomada como verdadeira, mas que tenha apenas como objetivo ludibriar as pessoas. Nesse caso, a ilusão tomará forma, representações serão mobilizadoras não apenas de juízos, mas também de condutas, de ações, sendo capaz de mobilizar pessoas para qualquer tipo de ação, legitimar atitudes questionáveis, conduzir as pessoas, ou seja, a verdade se constituí em uma forma de poder. Dado fato que esse é definido como a capacidade de agir ou de produzir, conduzir indivíduos ou grupos humanos.
Sobre a lógica do poder, o filósofo Michel Foucault (1926- 1984) destacou importantes observações. Entre elas, a visão em que o poder não é apenas repressivo, ou seja, reproduzido pela violência física, pela coerção, mas é, também, produtivo, por produzir noções, conceitos, ideias que serão adotadas, como crenças, como verdades.
As noções de verdade ganham força quando são percebidas nas relações cotidianas como naturais, corresponde ao momento em que as questões passam ser irrelevantes para os grupos sociais, o exercício do pensamento aparece sobre a figura do antiquado. Assim, toda ilusão tem base em verdades, não é nada mais do que uma crença ou conjunto de crenças tomadas como realidade.
Nesse sentido, em muitas situações, seria muito pertinente a consideração do filósofo Ludwig Wittgenstein (1889-1951), sobre “o que não se pode falar, deve-se calar”; embora ele tenha utilizado para outras discussões, poderíamos trazer a questão que se uma opinião ou crença sobre um assunto não é suficiente, não deveria ser tomada como verdade absoluta. Portanto, se fosse considerado o princípio do filósofo, as várias informações presentes nas redes sociais e em outras formas de divulgação de conteúdo, quando não apresentam a apercepção de suas fontes, não deveriam ser replicadas e tornadas como fundamento das opiniões e decisões e muito menos como uma noção de verdade.
Nesse caso, tais noções constituirão a subjetividade e o imaginário dos indivíduos, teremos a abertura para a criação humana, forte e intensa, fortificada nas relações, tem-se, como resultado, a criação do mundo dos estranhos. Esse, no imaginário coletivo, passa ser visto como natural, não criado, não convencional. O estranhamento é produzido e reproduzido constantemente, o humano olha para si e seu semelhante com desconfiança, com o temor de encarar a górgona, quando faz isso, não o faz apenas em um ato de fuga, mas age com violência, pois a espada precisa atingir o pescoço da Medusa, para tirar das vistas o terror de ter que encarar a si mesmo.
Contudo, existem aqueles que ousam, não são os heróis do estilo de Perseu, aprenderam a encarar que são apenas homens e mulheres que tem a percepção sobre a viajem, sabem dos limites do conhecimento, mas são instigados pela busca, não alimentam a Medusa, apenas o exercício do pensamento com o único propósito de encontrar a humanidade, tarefa difícil, que os viajantes da ferrugem dos esperançosos começaram, na busca pelos irmãos.
A trajetória possibilitou o surgimento em seus espíritos de um sentimento de pertencimento, mas ainda era preciso continuar a busca, conhecer as suas raízes históricas, sociais, culturais, pois por detrás do conceito de família descobriram que existia identidades construídas que precisavam ser desveladas, já que muitas delas foram negadas. Por esse motivo, os viajantes da ferrugem dos esperançosos decidiram seguir caminhos diferentes. Então, a jornada começa e, ao mesmo tempo, continua! Inaiê parte para conhecer a região do contestado, Roberto, Deméter e Perséfone vão para Argentina, Ulisses decide ir para o Nordeste brasileiro, Kauê vai com sua família para o Rio Grande do Sul. Assim, os viajantes partem, mas dessa vez a combi não é mais a unidade da morada ou o ponto de encontro, a tecnologia aparece como ferramenta de mediação da comunicação entre eles.
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Possui graduação em Filosofia pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (2000) com direito ao magistério em sociologia e mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (2003), pós-graduado Lato Sensu em Gestão da Comunicação pela universidade do Oeste de Santa Catarina. Atualmente é professor da Rede Pública do Estado de Santa Catarina. Tem experiência na área de Filosofia e Sociologia com ênfase em Ética, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, política, cidadania, ética, moralidade, religião e direito, moralidade e liberdade.