As falsas acusações de antissemitismo como arma de guerra

Protesto contra a definição de antissemitismo da International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA) em Londres, Reino Unido em 4 de setembro de 2018. Foto: Jack Taylor / Getty Image

Por Bruno Beaklini.

O Centro Simon Wiesenthal definitivamente desistiu de sua própria reputação e passa a perseguir toda e qualquer pessoa com destaque na sua sociedade que ouse denunciar os crimes de Israel e a perseguição sistemática ao povo palestino. A mais recente vítima dessa manipulação grosseira é o prefeito de Recoleta, uma municipalidade da Região Metropolitana de Santiago do Chile, o arquiteto Daniel Jadue. Parece que estão armando para o político filiado ao Partido Comunista do Chile e pré-candidato às eleições presidenciais no país o mesmo tipo de ataque desferido contra o trabalhista inglês Jeremy Corbyn, em 2018.

No Brasil, o caso mais recente foi a campanha difamatória contra o pré-candidato do PSOL à prefeitura de São Paulo, o professor Guilherme Boulos. A carta difamatória foi produzida por uma ONG que atua como grupo de pressão do Estado de Israel. Li ataques semelhantes de autor olavista que tem passaporte israelense. Boulos se explicou em vídeo muito didático, com argumentos razoáveis, pontuando sua repulsa pelo antissemitismo e a defesa inexorável dos direitos humanos e inalienáveis do povo palestino.

O problema de fundo é outro. A ressignificação do termo antissemitismo é a chave das alegações desses grupos de pressão. A Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA na sigla em inglês) conseguiu a seguinte definição em plenária realizada em Bucareste, Romênia (maio de 2016): “O antissemitismo é uma certa percepção dos judeus, que pode ser expressa como ódio aos judeus. Manifestações retóricas e físicas de antissemitismo são dirigidas a indivíduos judeus ou não judeus e/ou suas propriedades, a instituições da comunidade judaica e instalações religiosas.” . Sinceramente, essa definição é bastante razoável e pode ser amplamente defendida. Entretanto, no guia de “exemplos contemporâneos” consta no sétimo item que: “Negar ao povo judeu seu direito à autodeterminação, por exemplo, alegando que a existência de um Estado de Israel é um esforço racista”. Ou seja, por essa definição não há racismo promovido sistematicamente pelo governo de Tel Aviv, não houve Nakba (a limpeza étnica e deportação de mais de 800 mil pessoas) e nem tampouco aconteceu a Naksa em 1967. Já no décimo primeiro item soa algo mais plausível: “Responsabilizar os judeus coletivamente pelas ações do estado de Israel.”

Dessa forma, a IHRA responsabiliza todas as críticas que o Estado de Israel vir a receber, mesmo aquelas consagradas no direito internacional, como a caracterização da ocupação de Israel na Cisjordânia como um regime análogo ao Apartheid. Em relatório confidencial destinado ao Serviço de Relações Exteriores da União Européia, o governo militar de facto na dita “Judeia e Samaria” foi caracterizado como garantidor de uma “justiça segregada”.

Não para por aí. Em dezembro de 2019, o Tribunal Pela Internacional de Haia (TPI), o mesmo que condenou o carrasco sérvio Slobodan Milosevic acusou formalmente a ocupação militar de Israel na Cisjordânia como executora de crimes de guerra. Imediatamente o gabinete de Benjamin Netanyahu e o serviço diplomático do Império sob o comando de prepostos de Donald Trump reagiram. O premiê, que tem processos por corrupção em aberto e atende pela alcunha de Bibi, acusou o TPI de uma “arma política para deslegitimar o Estado de Israel”. Já o impagável secretário de Estado Mike Pompeo disse que eram acusações injustas. Pela “lógica” do colonialismo, os tanques das Forças de “Defesa” de Israel (IDF, com toda ironia macabra da sigla) estão “se protegendo” de perigosos manifestantes que se defendem com pedras. É um absurdo atrás do outro e faz certo sentido.

O Estado de Israel, através de suas redes de diplomacia pública e “advocacy” e seus aliados tenta hegemonizar o correto debate sobre a histórica perseguição que as famílias judaicas sofreram na EUROPA. Com tal definição de antissemitismo, a maioria dos descendentes de semitas, todos nós de origem árabe (independente do credo professado, incluindo os hebreus mizrahim e sefaraditas), simplesmente não seríamos o que somos. Os territórios que compõem a América Latina, por exemplo, foram invadidos e dominados por Estados ibéricos (Portugal e Espanha, por alguns momentos com reinos unificados). A chamada “reconquista católica” foi uma avançada militar promovendo limpeza étnica, perseguições e apostasia justamente contra árabes de todos os credos. Nada disso é citado pelos itens de trabalho do IHRA e menos ainda a respeito de governos que apoiam Israel, mas domesticamente são vinculados à extrema direita, incluindo as facções nazifascistas ou supremacistas. Já abordamos esse tema no MEMO e qualquer semelhança com o espetáculo dantesco de seis de janeiro, quando a turba racista e apoiadora de Trump invade o Capitólio em Washington, DC não é nenhuma coincidência.

Jadue e a colônia palestina no Chile resistem

“Acredite, eu sou semita, qualquer pessoa que conheça o conceito sabe que nós árabes somos todos semitas. Sou antissionista e tenho todo o direito de criticar as políticas de extermínio tanto físicas como políticas promovidas pelo Estado de Israel com respeito ao povo palestino.” Assim respondeu Jadeu em uma entrevista por um importante canal chileno de televisão (a partir do minuto 23). A resposta foi ainda maior da vigorosa Federação Palestina do Chile, a maior colônia da Filastinya nas Américas, composta majoritariamente por famílias de credos cristãos, tal e qual uma parcela importante da geração fundadora da esquerda palestina, do Movimento Nacional Árabe no exílio e da própria OLP.

Na seção opinião, um artigo excelente de Fawzi Salam afirma, de maneira categórica, já no título: “Antissionismo é diferente de antissemitismo”. Também foi publicada no portal da Federação a nota assinada por cinquenta intelectuais e artistas judeus defendendo o direito de Daniel Jadue de criticar o Estado de Israel por crimes de lesa humanidade promovidos pelo país. Citam que: “Provavelmente foram guiados pela cegueira de chilenos de extrema direita, membros ou simpatizantes de partidos que apoiaram ativamente, ou silêncio cúmplice, a ditadura de Pinochet e seus crimes contra a humanidade. Os responsáveis ??por este relatório do Centro Simon Wiesenthal esquecem que o nazismo ganhou impulso ao combinar fanaticamente anticomunismo com antissemitismo, e que, como judeus, nós nunca podemos permitir repetir tal lógica, homóloga em bloco aos comunistas, palestinos, críticos de Israel, antissionistas e antissemitas.”.

A lógica do cerco e a luta pela verdade dos fatos

A lógica do cerco através da “diplomacia pública” é evidente. Nos países ocidentais ou na periferia do Ocidente, as forças políticas mais à esquerda, eleitorais ou não, têm um compromisso direto com o antiimperialismo e anticolonialismo, ambas formas de dominação evidenciadas pelas políticas do Estado de Israel. Assim, o lobby sionista vai tentar inviabilizar potenciais candidaturas que tenham essas características e isso ocorrerá em diversas sociedades.

No caso dos países latino-americanos, fica evidente a necessidade de posicionamento das colônias de origem árabe, posicionando-nos, de forma geral, mais à esquerda e alinhando as agendas regionais antiimperialistas com a resistência ao Império e ao Apartheid israelense em terras de nossos ancestrais. O lobby do opressor é forte, a guerra nas redes tem como primeira vítima o fato concreto, mas se estivermos cada vez mais organizados, a verdade e a justiça irão prevalecer.

 

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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