Por Sônia Weidner Maluf, para Desacato.info.
Lula escuta o coro cantando Asa Branca na missa em homenagem a Marisa Letícia e bate com a mão no peito esquerdo, os olhos marejados. A juventude presente no ato grita “não se entrega”. Dilma lê a oração de São Francisco, após ter feito um discurso no dia anterior denunciando a perseguição política de Lula. Dali a algumas horas ele se entregará à Polícia Federal tendo que passar por centenas de resistentes que decidiram que seria melhor ele ser refém do povo do que ser entregue a uma polícia e a um judiciário que perderam a confiança do povo brasileiro.
Não será a primeira vez. Em 19 de abril de 1980 Lula foi preso pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), sem mandato judicial, por liderar a maior greve de metalúrgicos da história. Era o décimo sétimo dia de greve dos metalúrgicos da região do ABC. No mesmo momento outras doze pessoas ligadas ao Sindicato dos Metalúrgicos foram presas, entre elas os advogados Dalmo Dallari e José Carlos Dias.
Lula foi enquadrado na Lei de Segurança Nacional e tornou-se mais um preso político da ditadura. Grandes manifestações aconteceram pelo Brasil por sua liberdade. Foi numa dessas manifestações estudantis em Porto Alegre que a tropa de choque bateu forte nos estudantes. Essa foi a primeira e única vez que senti no corpo o peso e a dor de um cassetete. A passeata, que havia saído do campus velho da UFRGS, seguia pela avenida João Pessoa quando se deparou com um batalhão da Brigada Militar bloqueando os manifestantes. Sentamos no chão e começamos a cantar o Hino Nacional. Nesse momento outro batalhão veio por trás dos manifestantes e enquanto alguns conseguiram levantar-se e correr, outros ficaram no meio do caminho. Enquanto levantava, senti a pancada de um cassetete nas minhas costas, e mais um, e foram batendo uma, duas três vezes, até que eu caí e fiquei desacordada no meio da avenida. Meus colegas contaram que os policiais foram me empurrando com as botas para o meio-fio, para permitir que os carros voltassem a circular na avenida. Dois colegas me juntaram do chão e me levaram até o hall de um prédio, onde fui retomando os sentidos. No dia seguinte aprendi que cassetete não deixa marcas visíveis, mas moe por dentro, deixando uma dor que leva dias pra passar. Acreditávamos, em 1980, que a ditadura agonizava e que, mesmo nervosos, policiais e militares voltariam para os quarteis. Greves começavam a pipocar por todos os lados, o movimento estudantil crescia, a UNE havia sido reconstruída no ano anterior, em um grande congresso em Salvador. Os movimentos operários começavam a experimentar um novo tipo de sindicalismo, classista e, como se costumava definir na época, organizado pela base. Foi desses movimentos que surgiu o movimento pro-Partido dos Trabalhadores cujo manifesto de fundação havia sido lançado em fevereiro de 1980, dois meses antes da prisão de Lula.
Lula ficou preso por 31 dias, período suficiente para que a greve crescesse e ganhasse solidariedade e apoio, não só de outros setores e movimentos, mas de artistas e intelectuais. Vinicius de Moraes participou do ato do 1º de maio declamando seu poema Operário em Construção.
Trinta e oito anos depois, na sede do mesmo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Lula não se entrega no prazo definido pelo juiz Sérgio Moro em sua ordem de prisão: as 17h do dia 6 de abril. A vigília no sindicato em São Bernardo reúne não só sindicalistas e uma multidão crescente, mas deputados e lideranças do PT, de outros partidos e de movimentos sociais, como o MST e o MTST, que levou 10 mil militantes para a vigília com Lula, padres e lideranças religiosas progressistas, e a ex-Presidenta Dilma Rousseff.
Lula sairá dali para sua segunda prisão. Mas se naquela primeira prisão de 1980 era a ditadura que agonizava, agora é o golpe de 2016 que recrudesce, com o Rio de Janeiro sob intervenção militar e um judiciário sem pudor de ferir de morte a Constituição de 1988.
Nesta sexta, 20 de abril, esta segunda prisão de Lula completa 13 dias. Desde o primeiro dia de prisão, a vigília de São Bernardo se deslocou para Curitiba. Centenas de pessoas vindas de vários estados do país, junto com deputados, políticos, lideranças de movimentos, artistas, se revezam dia e noite nas proximidades da sede da PF onde está Lula, realizando atos políticos, culturais, religiosos. E todo dia de manhã dando um sonoro Bom dia Lula! Junto com a vigília, milhares de pessoas têm escrito cartas para Lula na prisão, respondendo ao movimento #CartaParaLula iniciado logo após a prisão para mostrar que Lula não está só.
O juiz Moro, seja diretamente ou através de seus parceiros lavajatistas como a juíza Carolina Lebbos, mantém Lula em semi-isolamento, impedindo as visitas garantidas por Lei, e chegando a barrar o prêmio Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel e o teólogo e escritor Leonardo Boff. Aliás, a imagem de Boff, esperando durante horas ao lado de fora da sede da PF a possibilidade de ver Lula diz muito deste momento da injusta justiça brasileira e do caráter político dessa prisão. O grande receio é que, se não bastou tentar impedir Lula de ser candidato e foi preciso prendê-lo, de que agora não basta ele estar preso e é preciso isolá-lo e impedir que ele possa ser ouvido mesmo da prisão, qual será o próximo passo da lava-jato?
Todas as tentativas jurídicas de libertá-lo foram fracassadas e o STF pautou a análise da prisão em segunda instância, que deveria ter sido apreciada antes do habeas corpus de Lula, apenas para maio. Ou seja, as esperanças depositadas em algum lampejo de legalidade ou justiça por parte do judiciário estão cada vez menores.
Lula foi libertado de sua primeira prisão depois de um movimento que atingiu as principais capitais do país que culminou com uma passeata de 100 mil metalúrgicos em São Bernardo. Sua condenação posterior a dois anos e meio de prisão acabou sendo anulada pelo Supremo Tribunal Militar, no julgamento de um dos recursos. As perseguições políticas oficiais já não tinham mais tanto espaço no contexto de esgotamento do regime militar e do estado de exceção instaurado pelo golpe de 64 e pelo AI-5 de 1968.
Em 2018, a violência política das elites novamente se aprofunda e se alastra pelas instituições. Nada está garantido, a Constituição já foi rasgada com a retirada ilegal e ilegítima de Dilma.
Sete centrais sindicais anunciam este primeiro de maio como um dos mais importantes da história do país, chamando um ato unificado das centrais para Curitiba, pela liberdade de Lula. Elas sabem, com todas as diferenças políticas entre elas, que sem democracia não há direitos e que lutar pela democracia no Brasil hoje é lutar pela liberdade de Lula.
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Sônia Weidner Maluf é antropóloga, jornalista, professora titular da UFSC e pesquisadora do CNPq.