As dores infindas. Por Marco Vasques.

Por Marco Vasques, para Desacato.info.

A dor é inerente à humanidade. Não há um vivente que passará pelo mundo sem ter a experiência da dor. Elas são muitas e se projetam em cada corpo de maneira diferente. Um casamento interrompido, a morte de um filho, o suicídio de um primo, a doença crônica de um pai, a demência de uma mãe, a perda de um emprego, um amor que se esfumaça, um tio alcoólatra, uma doença inesperada de um amigo, um acidente de carro, a queda de um avião com conhecidos, a solidão em pleno núcleo familiar, as frustrações profissionais, o desconforto de estar no mundo, o filho abortado, o racismo sofrido, a violência praticada ao corpo feminino, o desespero de ter que lutar pelo direito à diversidade, a depressão que corrói o interior do espírito, a tristeza de não poder dar aos filhos uma vida digna, a ausência de oportunidades, a ruína financeira, a consciência de que as diferenças sociais criam condições de vida desiguais e injustas, enfim, o rosário de nossas dores é infinito.

É preciso, claro, não subestimar nenhuma dor. Nesse campo não se pode entrar numa competição vulgar para saber ou tentar determinar quem sofre mais, quem sofreu menos. Toda dor importa. E o que é frescura para uns pode ser a curva que leva uma pessoa a retirar a própria vida. Contudo, algumas dores podem ser atenuadas e são passíveis de atribuição de responsabilidades. Sobretudo as dores provocadas pelas diferenças sociais que geram pobreza, fome, violência, crime e toda sorte de desigualdade humana. Com educação e investimento em políticas públicas também podemos eliminar o racismo, a homofobia, a misoginia e toda sorte de dor violenta advinda do preconceito.

O Brasil vive um momento crítico de banalidade em relação à dor alheia. A começar pela postura do estrume que ocupa o cargo máximo da Nação. Qualquer pessoa, ainda que o indivíduo mais desprovido de sensibilidade, tem capacidade de responder à seguinte pergunta: afinal, para que serve um presidente? Não é preciso recorrer à Constituição da República Federativa do Brasil, pois a resposta é simples: um presidente, tal qual um governador ou prefeito, tem por objetivo primeiro cuidar das pessoas que vivem ou nasceram no território que governa.

As mortes se acumulam numa velocidade jamais vista. A pandemia domina o país em todos os âmbitos. Não se salvam vidas e se ferra com a economia. Dentro do discurso delirante de que precisamos deixar tudo aberto para que a economia sobreviva, temos um país com quase 30 milhões de pessoas na extrema pobreza, ou seja, que vivem com apenas R$ 240 reais por mês; temos uma economia claudicante com crise institucional no Banco do Brasil e na Petrobrás, só para citar duas das mais sólidas instituições brasileiras; temos uma inflação real que impossibilita parte da população de comer o tradicional feijão com arroz. Tal qual nossas dores, a lista aqui também é imensa.

Cidades como Araraquara, dentre outras, que escutaram os profissionais de saúde e promoveram medidas restritivas mais severas estão colhendo o resultado anunciado por quem estuda o assunto, isto é, redução de morte em até 83%. Atitudes como essa nos provam que mais de 80% das mortes ocorridas no Brasil poderiam ser impedidas. Isso evitaria muitas dores, muitas perdas e revigoraria a economia com mais rapidez. Isso quem diz são os próprios economistas. Medidas restritivas que colocam nas mãos da população a responsabilidade são sabidamente ineficazes. As pessoas não usam máscaras, as pessoas não param de aglomerar, as pessoas não estão nem aí para o próximo, portanto, cabe ao Estado tomar para si tal responsabilidade.

Contudo, no momento em que se exige uma tomada de decisão séria, o debate do momento é o retorno às aulas. Existe um pessoal circulando com um adesivo nos carros com o dizer “a educação é essencial”. Prefiro ficar com o filósofo francês Jean-Paul Sartre, um dos patronos do movimento filosófico existencialista, para quem a “existência precede a essência”. Para essa gente é preciso dizer que é evidente que nós sabemos que educação é essencial, pois há alguns anos lutamos para que o governo não diminua o investimento, que deve ser contínuo, mas o governo atual resolveu tirar, inclusive, o teto de investimento constitucionalmente obrigatório para a educação.

Faz tempo, também, que lutamos para que o FUNDEB seja destinado às escolas públicas e não sofra saques, como vem sofrendo; faz tempo que lutamos por um plano de carreira para os professores estaduais e municipais, que têm um salário ridículo em comparação a outras profissões e cargos; faz tempo que a gente luta por melhores instalações (melhores salas, bibliotecas, equipamentos, alimentação, transporte, atividades suplementares qualificadas) às escolas públicas; faz tempo que estamos em defesa dos institutos e das universidades públicas, que este governo tanto persegue, saqueia e deseja privatizar; faz tempo que todos os profissionais da educação se dedicam à formação de crianças, jovens e adultos deste imenso país em condições precárias; faz tempo que vemos o serviço público ser sucateado, ser achincalhado, ser deturpado e perseguido em detrimento do vultoso e caríssimo ensino privado. Enfim, poderia enumerar muitas outras lutas, doloridas lutas, mas vocês, vocês que querem o retorno das aulas e pretendem colocar em risco toda a sociedade num momento tão crítico e delicado, vocês nunca estiveram conosco nessa luta.

Há nisso tudo uma visão tacanha e equivocada das escolas públicas no país, pois se enxerga o sistema escolar como um depósito de pessoas. Nós depositamos sonhos no ensino público e, assim que a pandemia passar, desejaríamos muito que vocês entendessem o que realmente se passa com a educação neste país.  Faz anos que sabemos que educação é essencial. Justamente por isso que pedimos a proteção aos professores, aos alunos e a seus familiares. Nós estamos muito condoídos, estamos cansados, estamos estafados com tanto sofrimento descarregado, todos os dias, sobre nossas vidas.

Há muitas dores evitáveis e isso depende de muito pouco: razão, sensibilidade, escutar os profissionais de saúde, escutar os infectologistas, espelhar-se em modelos de cidades e países que reduziram a morte e a dor, confiar na ciência e, sobretudo, ter vontade política, mas uma vontade política humanizada, que entenda, como já alertaram Kierkegaard e Schopenhauer, que a vida humana será sempre permeada de sofrimento, conquanto é possível, com ações práticas e concretas, reduzir mortes, extirpar a fome, combater a violência contra a mulher, reduzir o preconceito, detonar o racismo galopante. Enfim, é preciso que o governante busque a felicidade de seu povo, como previu Aristóteles.

O princípio político primeiro de um governante deve ser a busca do bem-estar e da felicidade de seus governados. Sim, a dor é inerente à humanidade, mas uma sociedade bem governada pode dirimir grande parte dela. Diferentemente, uma sociedade como a nossa, hoje, faz com que nossas dores sejam expostas ao limite do suportável. Caso você não esteja assustado com tudo o que estamos vivendo, algo de muito errado acontece dentro do dentro da sua dor.

 

Marco Vasques é poeta e crítico de teatro. Mestre e Doutor em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), com pesquisa em Flávio de Carvalho. É autor dos seguintes livros: Elegias Urbanas (poemas, Bem-te-vi, 2005), Flauta sem Boca (poemas, Letras Contemporâneas, 2010), Anatomia da Pedra & Tsunamis (poemas, Redoma, 2014), Harmonias do Inferno (contos, Letras Contemporâneas, 2010), Carnaval de Cinzas (contos, Redoma, 2015) entre outros. Ao lado de Rubens da Cunha é editor do Caixa de Pont[o] – jornal brasileiro de teatro. Presidiu, em 2020, o Fórum Setorial Permanente de Teatro da cidade de Florianópolis e foi membro do Conselho Municipal de Políticas Culturais. Foi colunista do jornal Folha da Cidade. Atualmente é colunista do Portal Desacato.

A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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