As criptomoedas e os crimes contra a economia popular

Por Luis Nassif.

É bom que as instituições que estão vendendo ou facilitando a entrada de pequenos investidores no cassino das moedas virtuais acordem a tempo: podem incorrer em crimes contra a economia popular.

Explico:

Peça 1 – Bitcoin, a pirâmide do século 21

O conceito de pirâmide é velha conhecida desde os tempos de Charles Ponzi, o que inventou o primeiro esquema, montou o primeiro negócio, sofreu a primeira queda e, depois, veio se asilar no Rio de Janeiro, que já tinha criado o jogo do bicho.

Trata-se de um jogo de perde-ganha, que segue uma sequência conhecida.

Primeiro, inventa-se um produto qualquer para ser vendido. No caso de Ponzi, o produto era dinheiro: prometia 50% de rentabilidade em 45 dias. As pessoas correram atrás das minas. Com o dinheiro que ia entrando ele ia pagando os primeiros investidores.

Como o crescimento é exponencial, em determinado momento o crescimento da pirâmide se tornava insustentável. Estourava deixando no prejuízo os que chegaram por último.

No auge do grande ciclo especulativo dos anos 2.000, o esquema foi copiado por Bernard Madoff, o financista de Wall Street que conseguiu iludir grandes nomes nos Estados Unidos e por aqui – seus fundos eram revendidos pelo Banco Safra.

Peça 2 – mercados e sorteios

As pirâmides apenas atendiam a uma demanda comum em tempos de mercados desregulados e de liquidez excessiva. Há um frenesi para criar novas ferramentas, novas operações, uma criatividade irresponsável, em uma competição irracional por rentabilidade.

Cria-se um clima de jogo, no qual se perde a percepção de realidade. Ocorreu no Encilhamento, no fim do século 19, no boom da Bolsa nos anos 70 e 90; na Nasdaq, no início dos anos 2.000, todos os iludidos atrás da dica milionária.

No encilhamento, essas dicas eram chamadas de “tacadas” por Carlitos, o cunhado malandro de Ruy Barbosa. Nos anos 70 e 80, de “bizu”.

O período pós-anos 70 foi marcado por bolhas de toda espécie: a bolha da prata, a bolha das obras de arte, as bolhas das Bolsas, as bolhas das ações de segunda linha e as pirâmides propriamente ditas: boi gordo, avestruz, Telexfree.

As formações de bolha obedecem a um ciclo conhecido:

  1. Os mais espertos identificam um produto “barato”. Montam posição nele.
  2. Outros investidores “descobrem” o produto e começam a comprar também. Esse movimento provoca uma valorização inicial.
  3. Os ganhos se espalham trazendo cada vez mais investidores interessados. O aumento de preços é diretamente proporcional à entrada de novos investidores dispostos a pagar mais.
  4. Chega uma hora que o ciclo se esgota e os mais espertos se dão conta de que o produto bateu no teto. Aí começam a desovar na alta o que compraram na baixa. O produto começa a perder valor.
  5. Quando os menos espertos percebem, começa uma corrida louca para se livrarem do produto antes que vire pó.

Alguns anos atrás, o gatilho para esses mini-ciclos especulativos eram as capas da revista Veja enaltecendo o produto e alertando os profissionais que era hora de vender.

Peça 3 – o jogo dos derivativos

A sede por apostas, que marca os últimos períodos de grande liquidez, gerou dois mercados distintos.

O primeiro, o mercado de tecnologia, com as ponto.net dos anos 2.000 e as startups de agora.

Uma empresa existente tem um histórico de resultados que pode ser projetado. Por isso mesmo, o desempenho das suas ações é relativamente previsível.

Já a startup ou empresa “greenfield” nunca operou antes. No boom da Nasdaq – o mercado de empresas de tecnologia nos EUA – qualquer maluquice em projeção de resultados tornava-se verossímil. Então abria-se espaço para toda sorte de jogadas.

No Brasil, houve o caso do Patagon – um sistema de banking – vendido por R$ 700 milhões para o Santander. Houve outros casos em que os investimentos bateram em veios de ouro, deram certo.

O segundo mercado de apostas foi o dos chamados derivativos – mercados futuros em que as duas pontas (vendedor e comprador) fazem apostas sobre o valor do produto no vencimento do contrato.

Inicialmente os derivativos surgiram para atender a necessidade de empresas de “hedge” – isto é, de se defenderem de variações excessivas de seus ativos. Com o tempo, tornaram-se mundialmente um grande cassino.

Até os bitcoins da vida, as apostas dos derivativos ocorriam nos mercados de commodities – petróleo, commodities agrícolas, câmbio.

Funciona assim:

  1. Comprador e vendedor acertam um contrato futuro a um preço de 100.
  2. Nem o comprador tem o produto, nem o vendedor quer ficar com ele. O jogo é apenas em torno das diferenças de preço do contrato com o preço à vista.
  3. Se, no vencimento, o preço estiver em 110, o vendedor paga a diferença ao comprador.
  4. Se o preço estiver em 90, o comprador paga a diferença ao vendedor.

Nesta operação, não  entra produto algum. Eles servem apenas como referência de preço.

No início, havia parâmetros impedindo muita volatilidade nas cotações. Os valores negociados dependiam da oferta e da procura dos produtos, de problemas climáticos, de fatores geopolíticos. Com o tempo, o fator financeiro tornou-se tão preponderante que houve uma perda de referência total dos fatores reais.

O estouro dos mercados de derivativos jogou a economia mundial na maior crise desde 1929.

Peça 4 – a loteria dos bitcoins

Com os bitcoins, o mercado de derivativos chegou ao auge: é um jogo que prescinde de qualquer link com a economia real.

Como funciona o mercado:

Passo 1 – define uma regra qualquer para criação da moeda.

O Ponzi da história é o criador inicial da tal moeda digital.

Os bitcoins, segundo definição corrente,  “são moedas digitais criptografadas, criadas de forma gradual e descentralizada por milhares de computadores que rodam complicados programas de criptografia, os quais exigem uma enorme capacidade de processamento e muita eletricidade”.

Há muitas outras moedas. Há moedas associadas ao aplicativo de mensagens Telegram. Uma tal de Ethereum, negociada com o código ETH, passou a ser aceita por instituições internacionais, como o JP Morgan e o Santander. Um mero anúncio de que os bancos iriam aceitar transferência de valores com a moeda promoveram alta de 10.000% na sua cotação. Sua capitalização saltou para US$ 79 bilhões.

Passo 2 – a lógica da bolha

No mercado financeiro tradicional, o ganho do emprestador é garantido por parte dos juros pagos pelo tomador. No mercado de ações, pela valorização das companhias. No mercado de títulos públicos, pelos juros pagos pelo Tesouro.

No mercado de criptomoedas, o lucro (e o prejuízo) decorrem exclusivamente da volatilidade do ativo – isto é, da variação de seu preço. Seu estímulo maior é na formação de bolhas sucessivas. A valorização da moeda decorre do processo de encontrar um investidor disposto a pagar mais, acreditando que depois dele surgirão outros investidores pagando mais ainda.

É o ciclo clássico da formação de bolhas, com uma mudança.

As tais moedas podem ser armazenadas digitalmente, inclusive nos computadores dos investidores. Significa que, ao contrário das bolhas convencionais – que estouram apenas uma vez – as bolhas de criptomoedas podem ter vários espasmos.

Cria-se um ciclo de alta, atraem-se os incautos. A bolha explode e há uma queda. Aí, monta-se uma segunda rodada, uma terceira até não haver mais patos na história.

Em muitos mercados, existe o ganha-ganha. Uma empresa lança ações, com o dinheiro captado aumenta seus lucros. Ganha quem vendeu, ganha quem comprou.

No mercado de moedas virtuais há apenas duas espécies de jogadores: os vencedores e os perdedores. O lucro dos primeiros é diretamente proporcional à perda dos demais.

Na ponta ganhadora, há mesas de operação de grandes bancos e corretoras jogando com análise gráfica e tendo poder de fogo para impulsionar ciclos de alta e de baixa. Na ponta perdedora, milhões de incautos que podem fazer fezinhas de até 300 reais.

Peça 5 – o fim da história

A bolha de criptomoedas vai explodir, tão certo como dois e dois são quatro.

Afetará o mercado financeiro, na exata proporção do envolvimento das grandes instituições com recursos próprios. Mas a grande maioria vai faturar comissões com recursos de terceiros.

Bem fez a CVM (Comissão de Valores Mobiliários) de proibir a compra de bitcoins por fundos de investimento.

O estouro vai provocar prejuízos para milhões de pessoas.

O passo seguinte será o Ministério Público e instituições de defesa do consumidor processarem por “crime contra a economia popular” as instituições que venderam o produto para seus clientes, ou deram a eles acesso ao jogo internacional.

Diz o parágrafo IX do artigo 2º da lei que define crimes contra a economia popular:

IX – obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos (“bola de neve”, “cadeias”, “pichardismo” e quaisquer outros equivalentes);

(…)  Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, de dois mil a cinqüenta mil cruzeiros.

E não adiantará as ressalvas colocadas no material publicitário, de que se tratam de “moedas sem lastro”. Não reduz o tamanho do engodo.

Sobre os questionamentos ao artigo

Vamos a algumas dúvidas e posições manifestadas nos comentários:

Sobre a função das moedas

Toda moeda precisa necessariamente apresentar três características:

  • Reserva de valor: permitindo poupar o valor ao longo do tempo;
  • Unidade de conta: serve para referenciar preços de produtos, servindo como medida para o valor econômico conferido pela sociedade a cada produto.
  • Meio de troca: servir como meio de pagamento de bens e serviços, de maneira a simplificar as trocas.

A criptomoeda só se transformará em valor quando convertida em moeda real.

Dada a sua volatilidade (a facilidade em ganhar e perder valor rapidamente) não funciona como unidade de conta. Menos ainda como meio de troca.

Por exemplo, determinada revenda vende um automóvel por X. O dinheiro servirá para repor o estoque, garantir as despesas operacionais e remunerar o capital.

Como irá referenciar o automóvel em criptomoeda se da noite para o dia seu valor poderá explodir ou virar pó?

Sobre a tecnologia superior do bitcoin

Alguns dos leitores trouxeram em favor do bitcoin a tecnologia superior, que define limites de emissão, impedem fraudes etc.

Ótimo! O problema do bitcoin não é a tecnologia, mas o uso que se faz dela. Afinal, as pessoas adquirem bitcoins não para se tornar sócios da tecnologia, mas para lucrar.

Sobre o lastro

Alguns leitores argumentam que o bitcoin não tem lastro, mas o dólar também não.

Como não? O lastro do dólar é o PIB dos EUA, as receitas fiscais do governo, sua capacidade de garantir o valor da moeda.

Sobre o mau uso do bitcoin

Outro argumento é que não se deve criticar o carteiro pelo conteúdo da carta. Ou seja, o bitcoin é o máximo: ruim é o uso que se faz dele. Ora, o mau uso resulta na volatilidade da moeda, isto é nos saltos de valorização e desvalorização, incompatíveis com a função de moeda.

No caso das moedas nacionais, os Bancos Centrais têm a missão e o poder de impedir as jogadas especulativas e a formação de bolhas. E em relação às criptomoedas, quem é o agente regulador da volatidade? Nenhum. E se a volatilidade não pode ser minimizada, como poderá pretender ser moeda? É fica de cassino.

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