Por Jorge Luiz Souto Maior.*
Que a greve causa transtornos ninguém há de negar. Que a greve quebra a normalidade, também é fato. E, por consequência, que haja resistência à greve, sobretudo daqueles que, direta ou indiretamente, são atingidos por ela, é compreensível.
Aliás, há de se reconhecer que mesmo os grevistas, que se sacrificam na greve, pois precisam se organizar e se submeter aos ataques daqueles que são alvo imediato da greve, os quais se valem, inclusive, de estruturas repressivas para tanto, não vislumbram a greve como um objetivo de vida, reconhecendo-a, unicamente, como um instrumento necessário para a luta.
Agora, que professores ligados às ciências sociais e humanas se reúnam para organizar um Manifesto contra a greve, aí temos uma novidade que vale a pena examinar, na medida em que é de conhecimento geral que o estágio atual da sociedade, no que se refere à criação de direitos sociais e à ampliação das possibilidades de atuação democrática, resulta de inúmeras greves, que, em outros tempos, já chegaram a gerar o sacrifício de muitas vidas.
É impossível não reconhecer no instituto da greve, que, por meio da própria experiência, adquiriu o status de um direito fundamental, ligado à livre manifestação, e do qual advêm o direito à associação e o direito à sindicalização, o mais importante instrumento de modificação da realidade social em prol daqueles que se situam em posição de inferioridade ou vulnerabilidade no arranjo sócio-econômico do mundo capitalista, isso quando não se organizam para uma ação política de natureza revolucionária, sendo certo que a própria greve, de índole reivindicatória, pode se constituir um embrião desta última luta.
Os valores que permeiam a sociedade atual são fruto de greves e de mobilizações sociais históricas como o trabalhismo, o feminismo, o pacifismo, os movimentos contra o racismo e contra a discriminação religiosa, e, mais presentemente, pela preservação ambiental, incluindo a luta pelos direitos dos animais.
Não se pode olvidar que todos esses movimentos foram rechaçados pelas estruturas de poder, voltadas à preservação do “status quo”, mas que mesmo assim, como resultado do embate, proporcionaram a construção de uma nova realidade, tendo assumido papel extremamente relevante para tanto as atentas e profundas análises de historiadores e sociólogos, que souberam superar a racionalidade reacionária, advinda, sobretudo, da ciência jurídica.
A questão intrigante é que o papel de resistência aos avanços sociais sempre foi reservado ao Direito e um Manifesto recentemente assinado por mais de 150 professores da FFLCH-USP parece pretender uma inversão neste posicionamento histórico.
O fato é que várias decisões judiciais começam a acatar de forma mais efetiva e ampla o conceito do direito de greve, como se verificou, por exemplo, nos processos ns. 114.01.2011.011948-2 (1ª. Vara da Fazenda Pública de Campinas); 00515348420125020000 (Seção de Dissídios Coletivos do TRT2); e 1005270-72.2013.8.26.0053 (12ª. Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo).
De tais decisões extraem-se valores como o reconhecimento da legitimidade das greves de estudantes, dos métodos de luta, incluindo a ocupação, e do conteúdo político das reivindicações, decisões estas, aliás, proferidas sob o amparo de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, na qual se consagrou a noção constitucional de que a greve é destinada aos trabalhadores em geral, sem distinções, e que a estes “compete decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dela defender”, sendo fixado também o pressuposto de que mesmo a lei não pode restringir a greve, cabendo à lei, isto sim, protegê-la.
Esta decisão consignou de forma cristalina que estão “constitucionalmente admissíveis todos os tipos de greve: greves reivindicatórias, greves de solidariedade, gr eves políticas, greves de protesto” (Mandado de Injunção 712, Min. Relator Eros Roberto Grau).
Trilhando o caminho dessa decisão, recentemente, o Min. Luiz Fux, também do STF, impôs novo avanço à compreensão do direito de greve, reformando decisão do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) no que tange ao corte de ponto dos professores da rede estadual em greve.
Em sua decisão, argumentou o Ministro: “A decisão reclamada, autorizativa do governo fluminense a cortar o ponto e efetuar os descontos dos profissionais da educação estadual, desestimula e desencoraja, ainda que de forma oblíqua, a livre manifestação do direito de greve pelos servidores, verdadeira garantia fundamental” (Reclamação 16.535).
Além disso, a Justiça do Trabalho, em decisões reiteradas de primeiro e segundo graus, tem ampliado o sentido do direito de greve como sendo um “direito de causar prejuízo”, extraindo a situação de “normalidade”, com inclusão do direito ao piquete, conforme decisões proferidas na 4ª. Vara do Trabalho de Londrina (processo n. 10086-2013-663-09-00-4), no Tribunal Regional do Trabalho da 17ª. Região (processo n. 0921-2006-009-17-00-0), na Vara do Trabalho de Eunápolis/BA (processo n. 0000306-71-20130-5-05-0511), todas sob o amparo de outra recente decisão do Supremo Tribunal Federal, esta da lavra do Min. Dias Toffoli (Reclamação n. 16.337), que assegurou a competência da Justiça do Trabalho para tratar de questões que envolvem o direito de greve, nos termos da Súmula Vinculante n. 23, do STF , integrando o piquete a tal conceito.
Bem se vê, portanto, que o aludido Manifesto busca atrair para as ciências sociais o papel reacionário que historicamente se atribuía às ciências jurídicas.
É evidente que as decisões acima não refletem, ainda, o pensamento único, ou mesmo majoritário, no âmbito do Judiciário, sobre essas questões, mas, certamente, pode-se traçar uma linha evolutiva no sentido da ampliação do conceito do direito de greve, garantindo-lhe uma posição privilegiada na relação com os demais direitos, sobretudo os de índole liberal, notadamente o direito de ir e vir, que não pode, como nenhum outro, ser valorado em abstrato e sem inserção no contexto dos demais direitos sociais.
O desafio atual da ciência jurídica está, exatamente, no questionamento acerca da persistência do direito individual de trabalhar quando uma greve, na qualidade de autêntico direito coletivo, é deflagrada, ainda mais considerando os termos da própria Lei n. 7.783/89 (que é bastante restritiva do direito de greve, diga-se de passagem) que estabelece, em seu art. 9º., que a continuação dos serviços deve ser definida mediante acordo entre o sindicato patronal ou o empregador diretamente com o sindicato ou a comissão de negociação, mesmo no que se refere aos “serviços cuja paralisação resultem em prejuízo irreparável, pela deterioração irreversível de bens, máquinas e equipamentos, bem como a manutenção daqueles essenciais à retomada das atividades da emp resa quando da cessação do movimento”. Ou seja, para a lei, a tentativa do empregador de manter-se funcionando normalmente, sem negociar com os trabalhadores em greve, valendo-se das posições individualizadas dos ditos “fura-greves”, representa ato ilícito, que afronta o direito de greve.
A decisão de trabalhar, ou não, no período de greve não pertence a cada trabalhador, individualmente considerado. Daí porque, também, apresenta-se como legítima toda forma, pacífica (ou seja, que não chega à agressão física), de impedir que o trabalho, para além das necessidades inadiáveis, continue sendo executado, seja por vontade individual de um trabalhador (ou vários), seja pela contratação, por parte do empregador, de empregados para a execução dos serviços, não se admitindo até mesmo que empregados de outras categorias, como terceirizados, por exemplo, supram as eventuais necessidades de mera produção dos empregadores no período.
Assim, piquetes e até ocupações pacíficas no local de trabalho se justificam para que se faça prevalecer, em concreto, o legítimo e efetivo exercício do direito de greve, na medida em que se veja ameaçado por atos ilícitos do empregador que, valendo-se de pressão aberta ou velada com relação aos grevistas e sugerindo premiações aos que não aderirem à greve, tenta destruir a greve sem se dispor ao necessário diálogo com os trabalhadores, sendo certo que o diálogo somente adquire nível de equilíbrio quando os que se situam em posição de inferioridade buscam a ação coletiva.
Qualquer tipo de ameaça ao grevista ou promessa de prêmio ou promoção aos não grevistas constitui ato anti-sindical, tal como definido na Convenção 98 da OIT (ratificada pelo Brasil, em 1952), que justifica, até, a apresentação de queixa junto ao Comitê de Liberdade Sindical da referida Organização.
Essa é a tensão atual vivenciada pelo Direito com relação à greve e o que menos se precisa neste instante, pensando na evolução dos arranjos sociais, é que o saber das ciências sociais venha a público levantar bandeiras reacionárias, que, mesmo sob a retórica de se firmar a favor do direito de greve, opõe-se ao piquete e aniquila a greve como meio de luta.
A oposição menos ainda se justifica no contexto histórico da USP, onde as recentes lutas de estudantes, servidores e professores, desde 2007, foram bastante exitosas e serviram, inclusive, como importante paradigma para a própria reformulação da ciência jurídica em torno do direito de greve, transpondo os muros da Universidade.
A injustificada resistência despreza, também, o quanto as mobilizações, no acúmulo das experiências, favoreceram a produção do conhecimento em torno das questões políticas, sociais, econômicas e acadêmicas que envolvem a estrutura da Universidade e sua relação com a sociedade em geral e a ordem jurídico-democrática, experiências estas que, inclusive, possibilitaram o desenvolvimento de consciência crítica e efetivo exercício da ética, da solidariedade e da organiz ação coletiva. Mais importante, ainda, as lutas permitiram a compreensão sobre a ligação dos interesses entre estudantes e trabalhadores, com inclusão dos antes invisíveis trabalhadores terceirizados.
É interessante perceber a contradição do Manifesto, que se baseia na lógica da individualidade, mas que, ao mesmo tempo, se socorre da ação coletiva, buscando a legitimação do argumento pelo número de assinaturas, mas fazendo-o sem respeito a qualquer esfera institucionalizada de deliberação coletiva, desprezando, pois, a via pública da ação política, ao mesmo tempo em que se auto-proclama representante de corrente majoritária, ainda que não apresente embasamento técnico científico para tal afirmação.
Em suma, no atual estágio da luta pela consagração do Direito Constitucional de greve, como preceito fundamental, o que se espera é que a resistência não venha da ciência social, vez que das estruturas de poder, considerando os interesses de parte do segmento econômico e do próprio governo, as gritas já são, historicamente, muito fortes.
Por fim, há de considerar, no caso concreto da luta da USP, que no momento em que se está tentando derrubar as estruturas arcaicas e autoritárias da Universidade, atraindo uma racionalidade democrática e ao mesmo tempo sensível às questões sociais, e esta luta não começou ontem e não tem sido nada fácil, perpassando gerações, apresenta-se, no mínimo, como valor bastante mesquinho a vontade de manter a “normalidade”…
Como já preconizado por José Martí, “Si no luchas, ten al menos la decencia de respetar a quienes si lo hacen”!
São Paulo, 29 de outubro de 2013
(*) Professor Livre-Docente do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP. Juiz do Trabalho. Membro da AJD – Associação Juízes para a Democracia.
Fonte: Viomundo.