Fico pensando nas muitas Armações que existem pelo litoral brasileiro. Eu só conheço três: a de Itapocoroy, a do Pântano do Sul e a de Garopaba (lá em Garopaba já não se usa a palavra Armação, mas tanto quanto sei, houve uma naquela enseada). Normalmente, são lugares muito bonitos e aconchegantes, e eu imagino a maioria de vocês a perguntarem: “Por que é que se chamam Armação? O que quer dizer Armação?”.
Vamos ver isto. Lá pelo século XVIII e XIX, a iluminação da Europa (e de outros lugares) era movida a óleo de baleia. O óleo de baleia vai perder a sua importância com a descoberta da querosene, o que, por sorte, salvou as baleias que ainda teimavam em viver num mar coalhado de seus caçadores. E o lugar onde se “fritava” a baleia (claro que depois de picá-la toda em pedacinhos), eram grandes construções industriais que se chamavam Armações.
Não pense você que alguma dessas Armações trouxe algum progresso ao Brasil – todo o dinheiro produzido por causa delas ia diretinho para os cofres de Portugal, não ficava nem uma moedinha aqui para a terra de Santa Cruz. O que ficou foram ossos, muitíssimos ossos de baleias que ainda restam nos jardins das casas das antigas Armações, e a lembrança levantada recentemente por uma pesquisadora da UNIVALI, Alejandra Luna, que descobriu que até a década de 1950 ainda se caçavam baleias na praia de Barra Velha/SC, e foi lá e pesquisou com os velhinhos, e nos trouxe uma realidade que me deixou pasma ao ler sua pesquisa, publicada numa das revistas daquela universidade. Segundo contam os moradores de Barra Velha, a morte de uma baleia pesteava totalmente uma praia por semanas e meses: o óleo da mesma se entranhava na areia, e tinha que haver muita e muita maré cheia e ressaca de mar para revolver e limpar a areia, sem contar que a quantidade de carne de um bicho enorme daqueles não tinha como ser comida por pessoas e cachorros das pequenas populações de então, e acabava apodrecendo, e deixando no ar o cheiro mais pestilencial que se possa imaginar. Então, uma Armação não era uma coisa tão idílica como eu havia pensado até então – outro relato que li me contou dos grandes tachos onde o toucinho da baleia era fervido, das emanações da fumaça acre, mal-cheirosa e quentíssima, dentro da qual trabalhavam os escravos que ali passavam suas vidas.
Pois é, os escravos. De tudo o que tenho lido a respeito deles na vida, com certeza a pior sina que tinham eram a de ser trabalhadores das Armações. Para dar conta dos pesados serviços de lá, eles eram escolhidos entre os mais jovens, os mais fortes, os mais capazes. Então, iam para uma das Armações, e como que lhes era sugada toda a sua seiva vital: trabalhavam até já não ter mais nenhuma força, nenhuma vitalidade, e então eram abandonados como que à deriva, nas imediações das Armações, sem comida, sem nenhum tratamento, e ficavam à espera da morte. Se algum mortal resolvesse lhes fazer a caridade de alguma comida, de algum abrigo, eles poderiam considerar-se com sorte – a grande empresa Capitalista que era a Armação, porém, agia exatamente como age o Capitalismo hoje: não estava nem aí! E havia outro agravante para a péssima qualidade de vida desses escravos: eles iam para a Armação enquanto jovens e cheios de saúde, e por toda a sua vida não tinham, nem uma vezinha, a possibilidade de algum contacto com alguma mulher. Há que pensarmos que um ou outro acabasse se agradando de algum outro bonito e saudável rapaz, e então preenchesse no coração a sua cota de emoção e carinho – mas a grande maioria, como em qualquer sociedade, deveria passar a vida ansiando por ter uma mulher para si. É difícil a gente imaginar vida mais ruim, não é? E eles não tinham a menor escolha.
Então, hoje, freqüentamos as Armações e achamos tudo lindo, por lá. Os fantasmas dos nossos irmãos escravos, a estas alturas, já voaram para muito longe, para plagas melhores, e nós nunca nem pensamos que eles existiram. E comemos camarão com caipirinha sem o menor peso na consciência., naqueles mesmo lugares onde no passado houve o horror!
Blumenau, 14 de maio de 2004.
*Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR