Por Elaine Tavares.
“Mi autoridad emana de vosotros y ella cesa por vuestra presencia soberana.”
No Rio Grande do Sul é assim, a gente cresce ouvindo as histórias dos tauras, dos gaúchos, dos charruas, minuanos, essa gente única que fez a história da pampa. E, na infância, é comum que as brincadeiras reproduzam a saga dos heróis gaudérios e das heroínas de cor de cuia e alma de ferro. Quem nasce na fronteira traz marcado na pele e no espírito a tormenta, a ventania, a coragem, o destemor, coisa de quem só consegue mirar o horizonte. Ali, na beira do rio Uruguai, quando é noite, as fogueiras e o chimarrão aquecem as rodadas de história e se contam das batalhas de Juana Azurduy, Guyunusa, Tacuavé, Artigas, Sepé. Misturam-se os mestiços de espanhol e português e os índios charrua, minuano e guarani. Todos são parte constitutiva deste espaço geográfico que toma parte da Argentina, Uruguai e Brasil: a pampa gaúcha, quase uma pátria.
Um dos heróis dos tempos de “antanho” é José de Artigas, ou Dom Pepe, como costumam chamar os que lhes tem como íntimo. Nas guerras de criança, feitas com varas de bambu e frutos do cinamomo, sempre havia alguém que queira ser Dom Pepe, porque na nossa velha infância ele já era conhecido como o “protetor”. E seu nome era reverenciado nas duas línguas, português e espanhol. Por aqueles caminhos do pampa, “a la orilla del rio Uruguay”, Dom Pepe tinha um dia levado seus companheiros índios, negros e brancos pobres na direção de um sonho que ainda não se cumprira: a liberdade.
E foi marcada com estas imagens de um tempo muito antigo que desembarquei em Montevidéu, Uruguai, terra pela qual Artigas deu seus melhores anos. Levava comigo a vontade de compreender porque este homem feito de doçura e aço havia se tornado um mito. E, nas conversas de rua, descobri. Artigas era o homem que havia sonhado uma pátria grande, tal qual Bolívar, e neste sonho conseguiu arrebatar o coração e a mente de milhões de pessoas, que o seguiram pelo Uruguai adentro em uma caminhada épica pela conquista da soberania. Mas, essa gente que o seguiu não era uma gente qualquer. Era a maioria oprimida, cheia de fome e sede de liberdade. Com Artigas seguiram os indígenas, os negros e os pobres, porque Dom Pepe não era só um comandante militar, ele era um igual, disposto a constituir uma pátria desde baixo, de riquezas repartidas e vida digna para todos. Não foi sem razão que acabou traído. Mas a vereda que abriu no meio do povo nunca mais se fechou. Mesmo hoje, nas “calles” bonitas da cidade grande, ou nos caminhos de terra do interior Artigas vive, tão visionário quanto antes.
A história
Corria o ano de 1764 quando José de Artigas nasceu no dia 14 de junho. Cresceu livre, dividindo as tolderias com o povo charrua que vivia nas cercanias da casa de seu pai, este também já estabelecendo convivência respeitosa com os originários. Tinha sede de caminhos e, quando, bem ali perto, no ano de 1781, o inca Tupac Amaru iniciava sua heróica rebelião contra o domínio espanhol, ele, jovenzinho, decidia partir de casa, em busca de uma coisa que ainda não nominava em seu coração. Seu lugar de aconchego foi mais uma vez as tendas charrua, onde aprendeu sobre a arte da guerra. Contam os historiadores que naqueles dias Artigas vivia como “contrabandista” e os soldados andavam ao seu encalço. Ele os atacava e vencia com as táticas dos índios charrua, feitas de surpresa, camuflagem e gritaria. Porque, afinal nos tempos de ditadura colonial, o contrabando era uma espécie de reação natural contra o sistema restritivo espanhol. Coisa de homens e mulheres que perscrutavam a liberdade. Assim viveu, entre paisanos e índios, na vida simples, transformando-se em exímio ginete e é aí que consolida sua liderança entre os empobrecidos da Banda Oriental.
No ano de 1797 ele decide que é hora de lutar de maneira orgânica contra o domínio espanhol. Mesmo internado na pampa oriental, ele sabe muito bem dos levantes indígenas no alto Peru, da rebelião de Francisco Santa Cruz y Espejo em Quito, de Antonio Nariño em Nova Granada e de José Maria España em Caracas, exigindo o fim dos impostos para os indígenas. Sente que é chegada a hora de organizar melhor a luta. Então, se apresenta, com seu exército, ao corpo de Bandengles, um batalhão do exército. É acolhido como um trunfo, visto que é conhecedor da alma gaúcha e indígena, além de dominar toda a geografia da Banda Oriental do que ainda é o vice-reinado do Rio da Prata. Devido a sua firmeza e liderança, em pouco tempo já é comandante e quando chega o ano de 1810, que vai demarcar uma viragem na história da região do Prata, Artigas é um capitão dos Bandengles.
Os entreveros na região do Prata começam no final do setecentos, reflexo do teatro de conflitos da Europa. Em 1776 os ingleses invadem a região, tomando as ilhas Malvinas, visando garantir o domínio sobre os mares do sul. Esta investida inglesa teria desdobramentos significativos para toda a região. Em 1801, portugueses e espanhóis lutam pelos territórios do sul até que um tratado entrega a região das missões aos espanhóis. Outro momento de perda. Espanha adere ao “livre comércio” proposto pela Inglaterra e abre os portos das colônias, quando Buenos Aires inicia também sua rixa com o porto de Montevidéu. Napoleão vai ocupando territórios na Europa e as colônias, para sobreviver, incrementam o comércio com a Inglaterra. Muita gente começa a enriquecer, assomando uma classe de comerciantes que já não quer mais saber de ser “servo” de Espanha.
Incentivada pelo domínio que já era grande a Inglaterra decide conquistar a região do Prata no ano de 1806, mas é violentamente rechaçada pelo povo armado. São criadas milícias em Buenos Aires, muito maiores do que o exército oficial espanhol. O povo assume a luta. Na região do que hoje é o Uruguai, é Artigas quem vai comandar as gentes, trazendo para seu grupo de defesa os valentes charruas, minuanos, tapes e negros. Esse espírito de corpo criado nas batalhas contra os ingleses será o caldo que engrossará a luta pela independência. Na Europa segue a confusão, o rei espanhol é aprisionado por Napoleão e as colônias percebem que é chegada uma hora histórica. O primeiro passo é tímido. Criam-se as Juntas Governativas, ainda atuando em nome do rei, tentando salvar as colônias do mundo novo. Mas, na medida em que as gentes vão percebendo a possibilidade de se libertar de vez do jugo espanhol, as juntas vão assumindo novas funções. Montevidéu também cria uma junta e começa a se distanciar do domínio de Buenos Aires.
Montevidéu estava colocando em voga um plano desenhado em 1800 por Félix de Azara que consistia em deter a desestabilização social da região oriental, bastante insegura por conta das disputas fronteiriças com Portugal. Na proposta estava a cessão de terra aos indígenas, a repartição das terras em pequenas propriedades para os que nela trabalhassem, o fim do latifúndio, e a criação de escolas e igrejas no interior, garantindo terra aos professores que se dispusessem a adentrar pelo território. Artigas andava nestas andanças, conversando com as gentes, convencendo. Queria criar uma nação de gente livre, dona de suas terras, e estabelecer os direitos indígenas. Era uma coisas muito difícil de ser engolida pela elite fazendeira que sempre vivera à larga, habituada à servidão dos pobres.
Na região do Prata, o mês de maio de 1810 marca o início de uma revolução que de alguma maneira já vinha sendo parida. Reunidos na praça central de Buenos Aires, governantes e povo decidem dar outro rumo ao seu destino. Não mais servir à Espanha, mas iniciar uma caminhada soberana. A Junta de Buenos Aires nasce para romper com o domínio colonial. Montevidéu já tinha sua junta e a região do Paraguai cria a sua em 1811 já propondo o estabelecimento de uma Confederação no Prata. As tropas fiéis ao rei reagem e começa a guerra de independência com a aparição de figuras importantes como os generais Belgrano e Guemes que iniciam sua escalada de vitórias no sul. Em 1813 Simón Bolívar tenta iniciar movimento semelhante em Caracas, mas é vencido e vai para o exílio. Quando chega 1815 praticamente toda a colônia espanhola está dominada pelos realistas, exceto a área do rio da Prata. É neste momento, com Simón já de volta, que se inicia o movimento de subida do sul, com o general San Martín e Bolívar no norte, dando seqüência a um dominó de libertação.
Estabelecida a independência é Bolívar quem vai propor um conceito original de organização política baseado na confederação de Estados. “As leis devem levar em conta o físico, o clima, o terreno, a extensão e o gênero de vida dos povos”, dizia. E reforçava: “Não há de esquecer jamais que a excelência de um governo não consiste em sua tese ou forma, nem em seu mecanismo, mas em ser apropriado à natureza e ao caráter da nação para o quem se institui. Esse é o código que devemos seguir, não o de Washington”. Sua observação se fazia porque havia muitos que queriam simplesmente copiar a Constituição dos Estados Unidos. Bolívar já insistia com a idéia de sermos originais.
O Uruguai de Artigas
De todos os revolucionários que se levantaram em armas contra a colônia, Artigas foi o mais radical, completamente convencido das teses de Bolívar. Talvez porque desde menino já tivesse abdicado da herança de ser um “filho de fazendeiro” para se juntar, livre, as hostes dos indígenas, paisanos e gaúchos que dominavam as terras da banda oriental. Estes, no dizer do historiador Vicente Rossi, os primeiros a terem noção de pátria nestas plagas. Durante todo o processo de guerra da independência Artigas esteve à frente do Batalhão Bandengles, disputando palmo a palmo a política que vinha de Buenos Aires. Não era só um bom soldado, ele pensava e propunha, portanto, era um perigo para os que já se arvoravam em donos do “mundo livre”. Seu programa para a região oriental seguia a tese de Bolívar, estava baseado na realidade econômica e social. Seu pressuposto básico era a participação ativa da comunidade no governo. O mandar obedecendo, tão caro aos indígenas, havia sido completamente incorporado por Dom Pepe. Por outro lado, nas bandas de Buenos Aires o que imperava era o interesse dos estancieiros e dos comerciantes ligados à Inglaterra.
O Uruguai, tendo Artigas à frente de suas tropas, agia e pensava diferente. Já em 1810 quando soou o primeiro grito de guerra, mil patriotas sob o comando de Dom Pepe, armados apenas de facas, na comunidade de Las Piedras, venceram 960 soldados espanhóis muito bem armados. O exército de Artigas, formado por 1.500 veteranos e cinco mil orientais, peleou por mais de cinco meses, sem descanso. Os protagonistas da liberdade naquelas bandas não foram os representantes da elite criolla. Foram as gentes comuns, os marginalizados, os indígenas, os negros, os empobrecidos. E eles estavam com Artigas desde as primeiras escaramuças com Portugal na fronteira. Eram quase como uma muralha invencível, com Artigas sendo muito mais do que um comandante. Dom Pepe era profundamente amado pelas fileiras de homens e mulheres que o seguiam com fervor quase religioso. Quando perderam suas terras, com o tratado de Portugal e Espanha, que deu a Portugal a posse da região das missões, eles queimaram suas casas, juntaram as tralhas e saíram, com Artigas, rumo a algum lugar não-sabido onde pudessem ser livres. Artigas os reverenciava, chamando-os de “povo de heróis”.
A política de Dom Pede com o povo que o seguia, acampados nas tolderias, era a da soberania popular e da autodeterminação. Ele não permitiria qualquer passo atrás. Ao longo dos anos de luta na pampa uruguaia aquela gente gestou uma consciência de classe, de pertencimento, que acabou se refletindo em todos os acontecimentos, até o massacre final perpetrado pelo então recém-formado governo do nascente estado uruguaio. Nos acampamentos de Artigas todas as coisas eram discutidas abertamente, cada soldado, cada mulher, cada ser, tinha direito a voz e voto. Era essa gente que deliberava, Dom Pepe apenas cumpria. No primeiro grande êxodo, quando o povo seguiu com ele pelo lado norte do rio Uruguai, Artigas chegou a criar uma entidade sociológica, a qual dizia obedecer. Era o “povo oriental em armas”. Nunca traiu os seus companheiros.
Seu plano militar era retomar as missões e fechar o passo dos portugueses ao Paraguai. Sua tese era a do autonomismo das províncias, unidas numa Confederação. Por conta disso ele lutou com os espanhóis e, depois, com os buenairenses. No famoso acampamento livre de Ayuí, onde fazia seu quartel-general, já dava conseqüência a estas práticas. Ali, mais de mil almas conviviam em paz e trabalho organizado. Deste número, mais de 400 eram índios charrua – uma das mais aguerridas fileiras do exército artiguista – e também havia os gaúchos, os tapes, os guarani, os minuano, as famílias pobres, pequenos fazendeiros, padres e até alguns espanhóis. A democracia era exercida cotidianamente e disso ninguém mais abria mão.
No pós-guerra, Artigas ainda tentou levar a idéia de autonomia, soberania popular e pacto federativo, decidida em assembléia, para a Buenos Aires, mas os deputados da banda oriental não foram reconhecidos como legítimos representantes. Artigas ficou isolado e não aceitou qualquer outra proposta que não fosse aquela tirada pela assembléia. Foi aí que se rebelou contra as forças portenhas. Em 1815 o Uruguai, sob o comando da gente de Artigas, era território liberado. A província foi dividida em departamentos, a justiça foi organizada, os correios, o abastecimento público e a saúde. No seu famoso regulamento estava instituído que os fazendeiros que tinham terras ociosas deviam entregá-la a quem as trabalhasse. A vida se organizava desde baixo.
Assim, muito mais do que uma mudança de instituições ou de comandos, a revolução artigista representava uma transformação radical nos métodos e práticas de governo. A prioridade era a ação direta do povo. As comunidades elegiam seus representantes de forma livre e era ali, nas assembléias, que se discutiam os temas relevantes da nação. Este sistema foi cunhado como o “sistema dos povos livres”. Pela primeira vez, depois da conquista européia, Abya Yala voltava a ser das gentes. E a proposta defendida por Artigas era tão avançada que ele conseguia manter unidos os povos originários e os descendentes espanhóis sob o mesmo desejo: criar uma pátria nova, livre, soberana, onde cada um tivesse o mesmo poder. Era coisa demais para as elites locais e para os que sonhavam em dominar a região, rica em carne e couro.
A destruição dos povos livres
Artigas era um homem maior que seu tempo e não encontrou, entre os governantes vizinhos, qualquer aliado na luta contra a ganância de Buenos Aires, a sede de conquista do Brasil e o imperialismo inglês. O vigoroso desenvolvimento econômico que o Uruguai apresentou sob o comando dos “povos livres” atiçou a cobiça destes países. Incentivado pelos ingleses o Brasil – que chamava o sistema de Artigas de anárquico – declarou guerra ao líder da banda oriental e ocupou militarmente os portos de Maldonado e Montevidéu, inviabilizando o sistema criado por Dom Pepe. Os fazendeiros riograndenses queriam o controle dos portos, os quais cederiam aos ingleses. Buenos Aires, em vez de defender o povo uruguaio que até então fora da sua jurisdição, apóia o Brasil e com isso Artigas fica sozinho, apenas com sua gente. Como aqueles homens e mulheres que haviam conquistado a soberania junto com Artigas jamais se renderiam, eles decidem uma última investida contra o Brasil, em 1820. Perdem! Não há espaço para Artigas e seus livres na nova conformação espacial e política da parte sul de Abya Yala.
A proposta de Artigas é derrotada porque ele ousou ser original. Ele não trouxe para a vida uruguaia esquemas abstratos ou estrangeiros. Ele criou seus regulamentos da experiência real da vida na pampa. Como bem mostram os historiadores Abade, Bruschera e Melogno (Artigas, su significación en la revolución y en el proceso institucional iberoamericano), ele primeiro oportuniza que os povos tenham uma vida política concreta e só depois estabelece os arranjos do governo. A nação vem primeiro, coisa viva, real, só depois vem o Estado. Além disso, ele não fica no discurso. Através dos seus regulamentos e das leis que são ditadas, fruto do debate popular, ele dá vida a essa soberania conquistada. “Não há declarações formais de direitos que se preocupem com garantias individuais, com a proteção do fórum dos indivíduos. Todas as decisões são remetidas ao povo e seguem orientações da comunidade”.
Sem apoio, o velho comandante prefere viver em outro lugar. Não suportaria viver como um capacho da Inglaterra que, escanteando o Brasil e Buenos Aires, assume o comando de Montevidéu e cria um estado tampão. Artigas havia apresentado seus planos e experienciado um país cheio de possibilidades. Não conseguiu o apoio da elite, que preferiu aliar-se ao estrangeiro. Então, inicia o segundo grande êxodo e segue com boa parte da sua gente para o território do Paraguai, onde vive ainda mais 30 anos, acolhido por Dom Gaspar de Francia, então ditador perpétuo daquela nação. Parte do povo charrua fica no Uruguai, mas por carregar a marca do artiguismo, acaba vítima de um massacre que ficou conhecido como o “massacre de Salsipuedes”, em 1831. Chamados para ajudar a defender as fronteiras contra os portugueses, eles atendem imediatamente ao pedido. Mas era tudo uma enganação do primeiro presidente da nação recém criada, Fructuoso Rivera, que ordena o assassinato em massa. Porque, segundo ele alardeava, para justificar seu crime, os charrua eram assim: “malvados, não conhecem freio algum que os contenha, e não se poderia deixá-los livres às suas inclinações naturais. As inclinações naturais eram certamente a soberania, a liberdade e a democracia. Enterra-se assim uma parte significativa da saga artiguista, o povo charrua, verdadeira gênese de toda a proposta autonomista e soberana de Artigas.
Artigas hoje
Proscrito, Artigas viveu mais 30 anos no Paraguai, onde morreu aos 86 anos, em 1850. Lá, vivia como um índio guarani, modestamente, cuidando de sua roça, sempre acompanhado do “negro Ancina”, seu fiel secretário, cantador, poeta, homem que, na verdade, foi sempre o protetor do protetor, ficando com Artigas até o fim. Vivendo no país de Francia, que governava também para os pobres e para os índios, Dom Pepe sentiu-se em casa e chegou a casar-se com uma mulher da etnia Guarani, com quem teve um filho, Juan Simeón, que na triste guerra da Tríplice Aliança (a guerra mais longa e mais injusta da América do Sul), veio a ser um dos comandantes do exército de Solano Lopez, estando com ele até sua morte em Cerro Corá. Um Artigas, enfim.
A história oficial argentina e uruguaia sempre buscou obscurecer a figura de Artigas, mostrando-o como um bandoleiro, marginal. É que suas idéias eram muito perigosas e contaminantes. Por conta disso, cinco anos depois de sua morte, os governantes uruguaios mandam buscar seus restos mortais desde o Paraguai. Não queriam que se criasse uma lenda. Mas, em 1900, já passada a vergonhosa guerra contra o Paraguai, a elite governante do Uruguai, necessitada de consolidar o estado nacional criado pelos interesses ingleses, busca a popular figura de José Gervasio Artigas, que ainda vivia na memória popular, e apresenta-o como um herói da nação. Sua história começa a ser recontada e ele aparece no panteão da pátria. Mas, na narrativa oficial Artigas é só um herói de bronze, um homem de leis, perdido da sua faceta popular. Pouco é ressaltado de seu plano de governo, de sua simbiose com os indígenas, de sua capacidade de mandar obedecendo.
Hoje ele está colocado bem no centro de Montevidéu, num enorme mausoléu. O lugar é sombrio e grandioso. Gigante, feito em pedra negra, tem nas paredes algumas inscrições referentes à vida de Artigas. Seu nascimento, as batalhas, a data da morte. Coisas prosaicas. Bem no meio, iluminado por uma opaca luz amarela, está a urna com os restos do “protetor dos povos”. Ao lado, dois guardas permanecem 24 horas em vigília. Acima, na praça, uma estátua gigantesca, de Artigas montado no seu cavalo Morito, congela o homem de bronze.
A primeira reação de quem entra e já está tomada de amor por esse homem sem igual, o de carne, que andava com os charruas e negros, é de profunda tristeza. Ali está congelado, fora de seu lugar. Dom Pepe era um gaudério, homem do campo, da lida, da ventania, dos horizontes. Toda a sua luta foi pela defesa da terra, coisa sagrada para o povo que escolheu como seu – os charrua, os minuano, tapes, gaúchos, paisanos – gente livre. Parece desrespeitosa com a figura que ele foi essa vida em suspenso, estes restos enfiados em uma urna fria e impessoal.
A vontade que dá é entrar ali num supetão, quebrar o vidro, arrancar a urna e sair correndo em direção ao interior, para as bandas do rio Uruguai. E lá, numa linda cerimônia indígena, em noite de fogueiras e lua, entender o corpo despedaçado do velho taita (cacique na língua charrua). Penso que Dom Pepe respiraria aliviado, livre, enfim. Mas, mesmo ali, aprisionado, Artigas ainda representa tudo o que de bom e bonito se construiu coletivamente naquela terra nos idos tempos do início do oitocentos.
Antes de voltar ao Brasil, retornei ao mausoléu, para um último olhar. Longamente conversei com aquela luz. Então, lá fora, descobri que, de fato, Artigas não está ali. Ele vive, nas ruas de Montevidéu, na pampa que se estende no horizonte, na luta do povo charrua que assoma com força junto aos descendentes, nos cavalos selvagens que troteiam pelos campos, nas mulheres trigueiras que caminham pelas estradas do interior, nos meninos que brincam de soldado blandengue, nas meninas que sonham com o homem de mirada terna e segura. Artigas está vivo no sonho da pátria grande, aquele que sonhou com Bolívar. E ele renasce em cada um que decida seguir por estas veredas da liberdade, da soberania e da beleza. Assim, enquanto escrevo estas letras, Dom Pepe cavalga rumo ao infinito… Ele vive e é livre! …