Arte e ativismo: a rua, os espaços e a luta pela liberdade

Arte-1Por Rafael Morato Zanatto.

Está ao alcance da mobilização social a gestão da vida, e nosso passado recente demonstrou, apesar do florescimento de idéias fora de moda, cheirando a naftalina, que em um mundo livre ganhar no grito e na pancadaria não vai ser suficiente dessa vez. Enquanto isso, a organização civil refloresce, trazendo pautas que são para ontem, formuladas por coletivos autônomos, movidos para transformar a sociedade. E aqui falaremos um pouco desse clima a partir da arte.

São inúmeros os exemplos de manifestações artísticas direcionadas contra o fascismo. Em outra ocasião, escrevemos neste coletivo um trabalho mais detalhado sobre a contracultura de Amsterdam, que tomou as ruas com os happenings de Jasper Grootweld e do Provos no menino de Liverdje. A rua desta forma substitui o teatro, incorporando o público em sua encenação. Foi o que presenciamos na manifestação contra a Rede Globo e a favor de uma mídia independente. Um coletivo de artistas independentes encenava ao longo do percurso exatamente o que a televisão fez ao longo de sua história.

Com um grande pano quadrado, o logo da empresa, tingido com as cores do Brasil, é aberto, sustentado pelas extremidades por quatro pessoas, que esperavam outros atores caírem na rede do entretenimento. Saltitando abaixo do pano, a diversão se converte em dominação e entorpecimento da razão quando o pano é baixado e, num movimento circular rápido, é fechado em espiral a partir da mobilização dos corpos que o sustentam, pressionando-os todos juntos, capturando-os como peixes em uma rede. Após a soltura o atordoamento é visível e a mensagem é expressa: os meios de comunicação eclipsam a verdade social em benefício da verdade privada, onde os espectadores são uma fatia do mercado que consumirá seu produto. Interessante notar que a intervenção num momento preciso atraiu um pequeno garoto, que observava atento, e aderiu, sendo envolvido com os atores pelo lençol, agregando à intervenção o acontecimento. Uma pixação no prédio da emissora completou a ilustração da idéia geral ali presente: Nos mijam e dizem que chove.

Da rua para o palco, o monólogo O Homem Cachorro, encenado e escrito por Sérgio Pardal. A peça narra a história do desempregado paulistano que, sem poder prover sua família, aceita o emprego de cachorro do vigia. Animado, dedica-se com todo o empenho a cumprir sua função, mas, aos poucos, ele mesmo se torna um cão, adquire seus hábitos e suas pulgas, perde sua família, esquece o português e passa a se comunicar apenas por gestos, bufos, rosnados e latidos. Seu tempo tem a duração do sucumbir, um mergulho sem volta, que faz do trabalhador um cão sarnento, que extirpa-lhe seus entes queridos e lhe retira toda dignidade, até seus últimos fluidos. É uma clara demonstração de que, ante o capitalismo, valemos apenas o que produzimos, e olhe lá. Um homem já fatigado pela vida, sem força de lutar, sem solo, sendo explorado até à última ponta. O figurino reforça a transformação, que aos poucos deixa o terno aprumado para vestir apenas farrapos, e por esse caminho também notamos que o homem cachorro, inicialmente ereto, quase que em posição de sentido, vai pouco a pouco se curvando, perdendo a rigidez na mesma velocidade que perde as esperanças. Se curva, é esmagado, se põe de quatro, esquece como se morde e passa apenas a lamber e mexer o rabo.

Na linha dos monólogos, em recente visita à ocupação Casa Amarela, prédio da rua Consolação que pertenceu a um antigo barão do jogo do bicho naqueles anos 1920. Nú, em espaço aberto, o ator fez tal qual Antonin Artaud ao encenar seu personagem, um suicidado pela sociedade. Os gritos proferidos, os gestos rígidos e profundos como o emergir das entranhas simulavam um torturado pela ditadura militar. Com suas mãos levantadas ao ar, se debatia preservando o centro de gravidade a tal ponto que facilmente víamos ali, entre as palmeiras e o roncar dos motores da rua, um corpo pendurado como carne ao gancho do açougue ou um militante político no pau de arara, tão famosa técnica de tortura, uma das preferidas das autoridades brasileiras. As pessoas ao redor sentiam o impacto daquele corpo franzino que relembrava a todos que a ditadura não foi, como pretende essa corja, uma revolução. Pouco a pouco, a direita tenta retirar a humanidade dos comunistas ou, no seu linguajar, “esses vermelhos nojentos”, para justificar todos os tipos de crimes. Até aqui, nada de novo em seumodus operandi. Tal qual o capitalismo retira a humanidade do trabalhador, transformando-o no homem cachorro, de Sérgio Pardal.

Após a descrição minuciosa da tortura sofrida no Dops, o ator se retirou, balizando entre o público que o cercava, rompendo entre o aglomerado uma saída que representou as dificuldades de continuar em frente quando estes sobreviveram. Um belo desfecho, que prolongou o impacto de sua performance. Esvaiu-se pelas escadas e se perdeu nas sombras, dando lugar ao grupo Shandala.

Misturando teatro e música, o grupo entrou em cortejo, adubando o solo com pétalas de rosas, incentivadas a proliferarem ao som das alfaias, flautas e outros instrumentos. O conjunto lembrava, pelos trajes, camponeses, as suas enxadas sobre as costas. Lembrei-me num estalo da peça Ópera dos Vivos, da Companhia do Latão, ao encenar a fortuna das Ligas Camponesas. A música de Shandala ressoava fundo, com o grave sempre muito destacado, contrapondo-se a flauta doce. Muito plural, ora parecia estarmos desfrutando do clima de uma feira medieval, entre jograis e menestréis, cantigas e mal-dizeres, gente que sobreviveu aos maiores infortúnios, assim como os atores que preservaram vivas as pantomimas e o costume de zombar dos poderosos, como o bufão.

No estalar da rabeca, esse universo se desfez, produzindo um salto para a cultura nordestina, e lá ficamos bom tempo, delirando em meio à heterogeneidade de impulsos. A ciranda ressoava aos ouvidos, a tal ponto que podíamos imaginar seus volteios e as faces de suas peças. O filósofo Walter Benjamin lembra-nos o quão o haxixe pode ser uma excelente ferramenta de observação sensorial. Isso está presente nos seus passeios pelas feiras e subúrbios de Paris, vendo com argúcia, entre os destroços, resquícios de um passado ainda não completamente morto.

As ondas foram trepidando, e o que antes foi feira, depois ciranda, fez com que o observador trepidasse ao gorjear do tambor de Taiko. Posicionado ao centro do palco, o instrumento irradiou energia e se conectou firmemente aos instrumentos. Foi o que faltava, o relampejar das guerras feudais japonesas. Agora não marcavam o paço das tropas em direção ao inimigo do senhor feudal. Batia fundo, revolviam no âmago forças misteriosas, que se assemelham àquelas que florescem nas barricadas e nos distúrbios de rua de nossos dias. Todos esse impulsos mobilizados por uma banda que faz ressurgir através de sons distintos, impulsos emancipatórios, nos conectando à cultura popular que permanece viva nos espaços alternativos. Ao findar a apresentação, o grupo se recolheu em cortejo, diluindo-se em meio ao palacete ocupado por artesãos e artistas independentes.

Entre a névoa e as sombras que reapareceram depois de muito dormitar, com o deflagrar das movimentações de junho, os partidários da carnificina dos vermelhos – já que não sabem examinar a especificidade que nos separa – se debatem como poucos, ansiosos para formar suas próprias milícias para agir nos distúrbios de rua esperados para a Copa do Mundo. A mídia se enriquece, tal qual os atenienses na direção da Liga de Delos, ao propagandear a ameaça persa. O governo compra tanques que disparam jatos de água, gás de pimenta e gás lacrimogêneo – e prendem por vinagre. Os movimentos sociais crescem e se põem em posição. Resta saber se os atores sociais que se preparam para tomar as ruas de assalto terão o vigor para suportar a investida das forças repressoras. O espetáculo está montado e, diante da flagrante estetização da política que observamos, é salutar lembrar que a receita de Benjamin ao observar os filmes soviéticos ainda não venceu: a arte continua a se politizar.

Fonte: Passa Palavra.

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