Por Catiana de Medeiros.
Março é o mês em que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Rio Grande do Sul celebra os resultados da cadeia produtiva de arroz orgânico. Para isso promove a Festa da Colheita do Arroz Agroeocológico, que reúne famílias assentadas de todo o estado, lideranças políticas e populares, além de amigos e apoiadores da Reforma Agrária. A 16ª edição será na próxima sexta-feira (15), a partir das 8h30, no Assentamento Santa Rita de Cássia II, em Nova Santa Rita, na região Metropolitana de Porto Alegre.
Além da colheita simbólica na lavoura, o evento terá estudo sobre a Reforma da Previdência, feira de produtos ecológicos e lançamento de livro sobre a produção de arroz orgânico e a Reforma Agrária Popular. Ao todo, cerca de 1 mil pessoas são esperadas, entre elas representantes de prefeituras dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, que adquirem arroz do MST por meio de programas institucionais, e o crítico gastronômico Julio Bernardo, do Boteco do JB.
O assentamento que sediará o evento se destaca pela produção de alimentos livres de agrotóxicos, pelo trabalho cooperado e pela organização coletiva das famílias assentadas. Isso resultou na conquista de direitos fundamentais e vida digna no campo. No entanto, foi longo o percurso até que a Fazenda do Montepio da Família Militar fosse desapropriada para Reforma Agrária.
Conforme a assentada Gabriela Souza, a ocupação ocorreu em 22 de abril de 2004, durante Jornada Nacional de Luta por Reforma Agrária, também conhecida como Abril Vermelho. Cerca de 400 famílias ligadas ao MST entraram no local, que por estar abandonado já não cumpria a sua função social. “Saímos de diferentes pontos do RS para combater o latifúndio, fazer memória ao Massacre de Eldorado dos Carajás e mostrar à sociedade a violência produzida pelo agronegócio através da exploração dos seres humanos e da natureza”, explica.
Segundo o camponês José de Almeida, ao final do mesmo dia a Brigada Militar realizou o despejo. Sem ter para onde ir e debaixo de chuva, as famílias ficaram desprovidas de abrigo e comida. “Fazia um mormaço muito grande, mas à noite terminou a seca. Choveu tanto, era água que nunca tinha visto em minha vida. Não conseguimos montar barracas, então foi uma noite de trauma, porque perdemos o pouco que tínhamos”, lembra.
Por acreditarem na força da luta coletiva, no outro dia os Sem Terra montaram um acampamento em frente à fazenda, localizada às margens da BR-386. Eles permaneceram ali por 1 ano e 8 meses até serem assentados. Nesse período enfrentaram diversas dificuldades, como falta de água e de espaço para acampar. Além disso, a Brigada Militar e seguranças contratados destruíram todas as tentativas das famílias de construírem uma horta e pequenas lavouras para matar a fome.
O sonho da Reforma Agrária levou os acampados a marchas, ocupações de prédios públicos e negociações com diversos órgãos. Impediram, até mesmo, o leilão da área. “Foi árdua a trajetória. Enfrentamos violência policial, violações de direitos, criminalizações e negligencias. Nossa terra prometida foi a leilão, transformada pelo capitalismo em mera mercadoria. Mas impedimos novamente a concentração dos poderosos e ocupamos esse espaço, erguendo nossas bandeiras e a proposta do cultivo de alimentos saudáveis, com acesso a toda a população, não apenas às elites”, ressalta Gabriela.
De acordo com Almeida, em 29 outubro de 2005 o Ministério Público autorizou os Sem Terra a entrarem na fazenda e a montarem suas barracas. No mesmo dia uma tragédia marcou as suas vidas: um veículo em alta velocidade atropelou Marisa Lourenço da Silva, de apenas 14 anos de idade. As famílias acamparam ao redor da sede por mais seis meses, até o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) autorizá-las a ocupar definitivamente os lotes.
Criação do assentamento
O decreto de criação do Assentamento Santa Rita de Cássia II é de 20 de outubro de 2005. O seu nome foi escolhido coletivamente e representa a ligação dos Sem Terra à Igreja Católica. Santa Rita é a padroeira do município. No local vivem 101 famílias, a maioria oriunda das regiões Norte gaúcha e Metropolitana de Porto Alegre. Pessoas de outras nacionalidades e estados, como Santa Catarina, Paraná, Pernambuco e Pará, que estavam acampadas no RS, também foram assentadas no local.
O assentamento tem área total de 1.667,33 hectares. Possui reserva legal averbada, com 332 hectares. A área de preservação permanente corresponde a 4,43% do total, com 73,68 hectares. Cada família ocupa 12 hectares, que estão divididas em área de moradia e área baixa, destinada à produção. Lá também há cinco barragens, que auxiliam no cultivo de arroz irrigado.
Conquistas coletivas
Conforme Almeida, as famílias nunca tiveram apoio dos governos enquanto estavam acampadas, e as dificuldades continuaram mesmo depois que conquistaram um pedaço de terra. “Percebemos que, por mais que aqui tivessem outros assentamentos consolidados, a nossa vida não seria fácil, porque quando se luta pela distribuição de terra se luta para distribuir o poder. Foi uma luta bastante grande, primeiro contra as forças do Estado, depois internamente no município”, relata.
Os trabalhadores chegaram ao assentamento sem recursos para organizar a produção, especialmente na área de terras baixas, que exigia alto investimento e aquisição de maquinários. Eles ainda tiveram que aprender novas culturas e a lidar com diferentes condições de solo. “A vida é sofrida nos acampamentos, por isso quando chegamos aqui só queríamos trabalhar e produzir alimentos para ter o mínimo de vida digna. Isso foi muito positivo e fundamental. Ao acessar créditos, a maioria comprou animais para suprir a necessidade de subsistência”, salienta Almeida.
As famílias ainda encararam a falta de água e de infraestrutura, como moradias, galpões e ferramentas de trabalho, além da carência de saúde. A deficiência de transporte era outro problema, pois não havia estrada de acesso aos lotes, obrigando-as a abrir picadas. Porém, a constante mobilização dos Sem Terra fez com que essa realidade mudasse. Hoje todas as casas têm acesso a estradas internas, água potável, energia elétrica, saúde e transporte coletivo até o centro urbano de Nova Santa Rita.
Hoje os assentados se organizam de forma cooperada e em grupos de produção, para garantir a autonomia sobre os territórios conquistados, bem como discutir a vida social e política do assentamento. Em busca de alternativas ao modelo do agronegócio, se apropriaram ao longo dos anos de técnicas e equipamentos menos nocivos ao meio ambiente, garantindo a qualidade orgânica dos alimentos.
O primeiro contato do assentamento com a cadeia produtiva de arroz foi de forma convencional, em parceria com grupos externos. O cultivo em base agroecológica iniciou em 2008, quando dez famílias planejaram o trabalho nas áreas de várzeas. Essa primeira experiência foi quase toda artesanal: os camponeses semearam à mão 1,7 mil hectares, aplicaram biofertilizantes com máquinas nas costas e fizeram a colheita com foicinhas. O arroz foi descascado com máquina da prefeitura e o transporte feito com um caminhão emprestado por um assentamento vizinho. Depois disso, a produção orgânica de arroz se expandiu e foi encarada como um estilo de vida e resgate de valores. Hoje são produzidos cerca de 500 hectares, distribuídos entre os lotes do assentamento.
As famílias participam de grupos gestores do arroz agroecológico, das hortas e do leite. Lidam com frutas, peixes e mel, entre outros produtos para autoconsumo. O excedente é comercializado em diversas feiras ecológicas e mercados da Região Metropolitana de Porto Alegre. A produção também é destinada ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Conforme a prefeita Margarete Ferreti, o Assentamento Santa Rita de Cássia II e os outros três do MST que há no município – Sinos, Capela e Itapuí – ajudam a desenvolvê-lo e a inová-lo, além de estarem tornando-o referência em produção diversificada sem utilização de agrotóxicos. “O desenvolvimento da área rural deve-se muito à atuação dos assentamentos, que com participação popular, possibilitou que a infraestrutura fosse levada ao campo, com pavimentação, instalação de agroindústria, capacitações e programas voltados para a agroecologia”, argumenta.
Antes de ser assentado, Arnaldo Soares via as metrópoles como “coisas de outro mundo”. Agora, pertinho do centro de Nova Santa Rita e a 21 km de Porto Alegre, considera-se privilegiado por morar no assentamento. “São poucos que têm essa oportunidade de ter renda a partir da terra. Aqui estamos no mundo do consumo e ao mesmo tempo com os meios de produção em nossas mãos. Então viver aqui no assentamento é um privilégio que todo mundo quer ter. É um território dos sonhos”, argumenta.
Direito à saúde
A busca por vida digna fez com que os camponeses se colocassem em constante mobilização para construir a primeira Unidade Básica de Saúde Rural de Nova Santa Rita. Foi assim que conquistaram a Estratégia Saúde da Família Marisa Lourenço da Silva, inaugurada em 29 de setembro de 2014 na antiga sede da Fazenda do Montepio, após mais de cem mutirões de trabalho voluntário e reuniões com a prefeitura.
Sua inauguração foi possível graças à organização da comunidade, que com recursos próprios e contrapartida da administração municipal reformou a antiga sede da fazenda e comprou os móveis necessários. No local também foi construída uma horta comunitária com plantas medicinais. A ESF conta com profissionais do programa Mais Médicos – uma filha de assentados formada em Cuba –, além de enfermeiras, técnicos de enfermagem, dentista e agentes comunitários. A equipe atende 2,4 mil pessoas assentadas e agricultores do município.
Num gesto de solidariedade ao próximo, o Assentamento Santa Rita de Cássia II cedeu à prefeitura uma área em torno de 8 mil metros quadrados para construção de um Complexo de Saúde. O local, que terá capacidade para realizar até 150 atendimentos diários, contará com quatro equipes de Estratégia de Saúde da Família e reunirá atendimentos odontológicos e clínicos, além de exames preventivos e puericultura.
Associação 29 de Outubro
A comunidade criou há cinco anos a Associação 29 de Outubro, uma ferramenta para discutir questões coletivas e reforçar a defesa do território conquistado, da produção de alimentos saudáveis e do próprio MST. O assentamento tem área para atividades regionais e espaço de lazer com campo de futebol. No campo da educação, jovens conquistaram diplomas em cursos superiores, como Geografia e Medicina Veterinária, e em cursos técnicos via Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera).
Almeida reforça que tudo o que foi conquistado pelas famílias até o momento é resultado da luta coletiva e motivo de orgulho. “A gente deve muito à capacidade que o MST tem de organizar pobres do campo para lutar por Reforma Agrária. Aqui temos a possibilidade de viver dignamente, produzir alimentos saudáveis e buscar diariamente ser feliz. O território para mim é isto: é poder viver bem”, finaliza.