Por Camila Jácome*.
Nesse artigo faço uma breve análise da arqueologia em dois lugares de atuação: na Universidade e no mercado no atual contexto da Amazônia. Como são temas complexos e imbricados em outros assuntos, exigem algumas digressões para fazerem sentido aos leitores não familiarizados.
A partir dos anos 90, começaram a existir alguns movimentos, ainda tímidos, na Arqueologia brasileira de posicionamentos contrários a empreendimentos econômicos, geradores de impactos ambientais e sociais, e diretamente sobre o patrimônio arqueológico. No entanto, em geral, a Arqueologia de contrato ou de salvamento (ou ainda o eufemismo Arqueologia preventiva como aparecem nos folders e relatório das grandes empresas) surgiu como uma alternativa viável de fazer Arqueologia no Brasil fora das universidades e museus. Em princípio, era um caminho alternativo para quem desejava seguir na pesquisa arqueológica, já que no quadro de professores e pesquisadores o único meio de ser profissional na Arqueologia no Brasil era muito mais restrito nessa época.
Havia certo otimismo de que na Arqueologia de contrato poderíamos agir, conforme a legislação ambiental previa, em salvamentos, produzindo conhecimento científico em um país cujas dimensões geográficas e insipiência da Arqueologia como disciplina, apresenta tantas lacunas em sua pré-história. Se vislumbrava também, a ampliação e a construção de museus, assim como também as negociações com empreendimentos para proteção de parte do patrimônio arqueológico (a Arqueologia de salvamento no Brasil começou nos 70).
Enfim, o cenário parecia ser uma alternativa viável à Arqueologia acadêmica, lembremos que até 2002 estávamos dentro de um cenário onde toda a universidade pública encontrava-se em um estado profundo de sucateamento para usar um jargão da época de movimento estudantil. Mas o que aconteceu não foi exatamente assim. Pelo menos dois processos são fundamentais para entender o que acontece hoje com a Arqueologia brasileira como um todo: o aumento de fluxo das grandes obras do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, com a subsequente reestruturação do IBAMA, IPHAN e FUNAI, e o surgimento de novos cursos de graduação e centros de pesquisa universitários em Arqueologia por todo o Brasil.
A partir do segundo mandato do Governo Lula, com a implementação do PAC, em especial as obras voltadas para o setor energético, as demandas por licenciamento ambiental, e, consequentemente, pesquisas arqueológicas (diagnósticos, salvamentos, monitoramentos, etc.) tiveram um aumento enorme. A “vagareza” das pesquisas do licenciamento ambiental, tanto no que tange a burocracia, quanto na própria execução das pesquisas se reflete nas reestruturações (Portaria Interministerial n.60 de 2015[1]) dos órgãos ligados ao licenciamento, IBAMA e IPHAN em especial. Slow Science e PAC definitivamente não combinam.
Paralelamente a isso, as universidades federais receberam investimentos e novos cursos de graduação foram criados pelo REUNI – Reestruturação e Expansão das Universidades Federais. Novamente, uma luz no fim do túnel, cursos de graduação (18 cursos) e pós-graduação (19 cursos incluindo Especialização, Mestrado e Doutorados separadamente), investimentos em laboratórios, contratação de novos professores e técnicos. Mas o que aconteceu na realidade foi um pouco diferente que nossas expectativas. Os laboratórios não foram tão modernizados, não cabiam e nem atendiam as novas turmas de 30 a 50 alunxs. As verbas das agências de fomento, nem sempre possibilitam que os professores formem mais que quatro estudantes de iniciação científica. Houve um inchaço de estudantes que precisavam se formar e uma deficiência dos cursos de graduação em atendê-los. Por outro lado, existia um mercado pronto e ávido para contratar esses estudantes, e tantos outros de outros cursos e até do Ensino Médio, empresas com recursos de grandes projetos que poderiam pagar bolsas, salários e laboratórios muitas vezes melhores equipados que de algumas Universidades. Assim, o REUNI e o PAC se encontraram no mercado de licenciamento ambiental.
Mas como toda moeda tem dois lados, o REUNI também mudou a cara da universidade brasileira através de cotas para estudantes negrxs, indígenas e de origem econômica desprivilegiada. As cotas trouxeram outros debates internos para a Universidade, como a questão do acolhimento de fato desses estudantes e não simplesmente um meio de “jogá-los” dentro da instituição pública de Ensino Superior sem acolhimento adequado. Não podemos fechar os olhos ao que ela trouxe: uma Universidade de cara nova, onde oprimidos estavam agora sentados ao lado da elite. Disciplinas por origem histórica elitizadas, como a Arqueologia, agora teriam um outro perfil de alunxs egressos.
A Arqueologia ainda não é uma profissão reconhecida e, portanto, regulada por um Conselho profissional. E os efeitos desse boom do mercado de licenciamento foi uma coisa que qualquer um que trabalhe ou já tenha trabalhado para o licenciamento ambiental, já presenciou a subproletarização de pesquisadores que querem viver da Arqueologia. Pagamento por produtividade em campo e laboratório não são incomuns, alienação na pesquisa, tornando-os meros “buracólogos” também não, isso para não mencionar os problemas de uso dos direitos intelectuais e autorais dos pesquisadores pelas empresas. Muitos são os exemplos de problemas de ordem trabalhista e ética na Arqueologia de contrato. O olhar detido e paciente da arqueóloga ou arqueólogo sobre seu objeto de estudo, seja o sítio ou um artefato, tornou-se uma perda de tempo, ou melhor, de dinheiro.
Nesse quadro, falamos de atores gerais, pesquisadores, mercado, Universidade, mas não falamos da parcela da sociedade mais impactada por todos esses processos, em especial, as obras do PAC, que são as comunidades atingidas. E nem sobre o papel que a ciência, no caso da Arqueologia, deva cumprir em relação a elas. Que as comunidades atingidas são silenciadas dentro do licenciamento ambiental não há dúvidas, o licenciamento é feito para dar licenças, de instalação e operação, e não para efetivamente parar obras como previsto na Resolução CONAMA 237/97. Portanto, as comunidades não são a prioridade desse sistema. Mas elas seriam das ciências, ao menos as sociais que fazem parte das avaliações de impactos? A Arqueologia tem voltado sua atenção à relação com as comunidades pelo menos desde os anos 70, uma reação às críticas surgidas dentro dos movimentos indígenas australianos e dos nativos da América do Norte. No Brasil, o que ficou conhecido como Arqueologia Indígena, Arqueologia Comunitária ou Arqueologia Colaborativa teve um enorme crescimento em publicações e projetos nos últimos 10 anos. Mas como fica isso quando inserimos a crítica o modelo de desenvolvimento?
Agora que expusemos, ainda que breve, a situação nacional, podemos avaliar a situação da Arqueologia na Amazônia, tanto nos campos da Universidade quanto do mercado. Acredito que estamos no dilema da Arqueologia que queremos construir, entre uma disciplina desenvolvimentista ou uma disciplina socialmente comprometida. O ensino em Arqueologia deve ser um arsenal técnico para o desenvolvimento, excludente de outros modelos de conhecimento, ou uma disciplina que é e pode ser feita e transformada pelas várias parcelas daqueles que sempre foram os “oprimidos”, numa perspectiva de educação freiriana.
As universidades na Amazônia, e não somente os cursos de graduação, têm a oportunidade de viabilizar a ideia do que seria uma educação libertária para Paulo Freire, pois estamos num local de encontro entre os educandos, das cidades e campo da Amazônia, e uma realidade muito diferente dos educadores, cuja maioria é formada nos grandes centros, mais especificamente no Sul e Sudeste do Brasil. A constituição de uma consciência crítica a partir desse encontro de realidades, é que pode ser o grande diferencial das universidades na Amazônia. Mas isso também não é uma tarefa fácil, já que para criar aquilo que Freire chamou de consciência crítica temos que mapear o que podem ser as práticas pedagógicas e institucionais colonizadoras. Aliás, se levarmos Freire a sério, não deveríamos refletir esse colonialismo restrito ao campo pedagógico, mas também em todas as questões políticas, sociais, éticas e econômicas que hoje são postas na Amazônia.
É aí que encontramos a relação com a Arqueologia e os grandes empreendimentos, principalmente as obras do setor enérgico na Amazônia, a Arqueologia e as comunidades. O conhecimento como prática de libertação das opressões pode servir a opressão das comunidades? Qual o papel das universidades neste contexto? O fazer arqueológico como item de um processo de legalização da expropriação de terra (via licenciamento ambiental) pelo Estado e empresas é legítimo? Estamos construindo que tipo de narrativas do passado com essa arqueologia, comprometida com a história dos oprimidos ou dos opressores?
No meu entendimento, um primeiro passo é construir uma relação crítica e coerente entre professores e estudantes, auxiliando que possam ser capazes de entender a realidade sinistra que assombra a Amazônia e os povos da floresta. Uma universidade socialmente comprometida com aquelas pessoas que descendem daqueles que construíram, e agora mantem a riqueza socioambiental da Amazônia.
Uma universidade e uma ciência arqueológica comprometidas, politicamente e eticamente, com essas comunidades não é uma questão revolucionária ou anti-capitalista, é simplesmente uma questão de coerência com aqueles e aquilo que nós nos dedicamos a estudar.
Se alguém me perguntar se sou contra a Arqueologia de contrato, como hoje parece estar posto em antagonismo simplista entre a Universidade e o mercado, não terei dúvidas em responder. Sou a favor das pessoas. Aqui na Amazônia esse modelo de desenvolvimento econômico que explora recursos primários em benefício de grandes indústrias e consórcios de empresas, existe como retroalimentação dele próprio. Ouvi outro dia isso e repito: a violação de direitos humanos na instalação dos grandes empreendimentos na Amazônia não é uma exceção como nos querem fazer crer. Para que as empresas e consórcios tenham lucro, a violação de direitos humanos é parte do plano estrutural delas. Portanto, a Arqueologia feita na Amazônia seja nas Universidades ou no mercado, deveria ter por princípio ético e político o compromisso e a solidariedade com as comunidades atingidas e não com o capital.
NOTAS
[1]A Portaria estabelece procedimentos administrativos que disciplinam a atuação da FUNAI – Fundação Nacional do Índio, da FCP – Fundação Cultural Palmares, do IPHAN-Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e do Ministério da Saúde nos processos de licenciamento ambiental de competência do IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis.
*Sobre a autora: Camila Jácome é Professora do Programa de Antropologia e Arqueologia (PAA) da Universidade do Oeste do Pará (UFOPA)
Fonte: Inesc