Argumento de advogado contra Mariana Ferrer segue linha utilizada contra Ângela Diniz

    Em ambos os casos, os advogados questionaram a vida pessoal da vítima para favorecer acusados

    Mariana Ferrer
    Na sua decisão, o magistrado Rudson Marcos afirma que é “melhor absolver 100 culpados do que condenar um inocente” – Reprodução

    Por Caroline Oliveira.

    O processo e o julgamento que levaram à absolvição do empresário André de Camargo Aranha, acusado de estuprar a influenciadora digital Mariana Ferrer, durante uma festa em dezembro de 2018, em Florianópolis (SC), foi marcado por ataques à vítima por parte do advogado do acusado, troca de promotores e delegados, depoimentos conflitantes de Aranha e mudança na linha de argumentação do Ministério Público.

    Alguns desses pontos são normais, e até esperados como estratégia da defesa, outros extrapolam o limite da atuação profissional e corroboram para impunidade do agressor e para a estarrecedora estatística de um estupro contra a mulher a cada oito minutos no Brasil, sendo que apenas 1% dos agressores são punidos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

    A artimanha de desqualificar a vítima em ações penais que envolvem crimes sexuais contra pessoas do gênero feminino, considerada pela advogada Carolina Gerassi como “perversa” e “estranha à função da advocacia defensiva em audiência de instrução”, é velha conhecida de advogados que atuam nesse tipo de processo.

    A mesma linha de argumentação foi utilizada pelo criminalista Evandro Lins e Silva na defesa de Doca Street, que matou a socialite mineira Ângela Diniz com quatro tiros no rosto no dia 30 de dezembro de 1976, em Búzios.

    Três anos depois do assassinato, no tribunal de Cabo Frio, Rio de Janeiro, Evandro Lins e Silva alegou que Doca Street incorreu em “legítima defesa da honra”: uma aberração jurídica que transfere a responsabilidade do homicida à vítima por seu trágico destino, devido ao comportamento social e sexual dela.

    Quarenta anos depois, mais uma mulher vítima senta no banco dos réus a ser julgada pelos acusados. Cláudio Gastão da Rosa Filho fez o mesmo durante a audiência do caso Mariana Ferrer. Segundo Carolina Gerassi, a conduta da defesa foi “extremamente abusiva” e “constitui uma violência” contra a vítima.

    “A audiência serve para produzir prova. O máximo que o advogado de defesa poderia ter feito eram perguntas para ela na qualidade de vítima em sua oitiva. Jamais agredi-la e acossá-la. Jamais ofendê-la e debochar de seu sofrimento”, ressalta.

    A proximidade entre os casos de Mariana Ferrer e Ângela Diniz reforçam o que as advogadas ouvidas pela reportagem pontuam: a seletividade do processo penal e a cristalização de vícios misóginos e racistas.

    “Trata-se de uma opressão estrutural que devemos derrotar mediante ruptura de paradigmas culturais, por meio de políticas públicas educativas, que fulminem os papeis de gênero impostos socialmente, tornando inaceitável essas condutas discriminatórias”, aponta Gerassi.

    A audiência do caso

    Em trechos de uma audiência virtual, o advogado de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, expõe fotos sensuais de Ferrer, questiona sua integridade moral, afirma que na ocasião da denúncia ela estava há sete meses sem pagar o aluguel de sua moradia e que “jamais teria uma filha” do “nível” de Ferrer.

    Ninguém interrompeu essa situação absurda. Eles deixaram o advogado falar ao largo tranquilamente

    Gastão da Rosa Filho chega a se dirigir à jovem, que está aos prantos, e diz: “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”. Tudo isso feito na presença do juiz Rudson Marcos e do promotor Thiago Carriço de Oliveira.

    Para Gerassi, não apenas a atitude do advogado é chocante, mas também a complacência do promotor, do juiz e do próprio defensor designado para representar a vítima na qualidade de assistente de acusação.

    “Ninguém interrompeu essa situação absurda. Eles deixaram o advogado falar ao largo tranquilamente. Vendo os trechos disponibilizados, percebemos que está tranquilo, seguro, confortável entre seus pares”, aponta a jurista.

    Assim como no julgamento de Doca Street, a dignidade da vítima ser colocada à prova não gerou reações contrárias, a não ser pelo movimento de mulheres que se insurgia no Brasil daquela época e que, diante do presente caso, se manifesta com indignação nas redes sociais.

    “É inadmissível essa conduta misógina, mas não podemos encarar como um fato isolado, já que decorre da violência de gênero em todos os seus aspectos, historicamente naturalizada e arraigada nas nossas relações sociais e que contamina, portanto, as instituições de Estado de que faz parte o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Judiciário”, ressalta Gerassi.

    Nas redes sociais, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, defendeu que as cenas da audiência “são estarrecedoras”.

    “O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram”, postou.

    Em outro momento, o advogado chega a questionar o fato de Mariana Ferrer, até então, nunca ter tido uma relação sexual. “Tu vive disso? Esse é teu criadouro, né, Mariana, a verdade é essa, né? É teu ganha pão a desgraça dos outros? Manipular essa história de virgem?”, disse o advogado.

    Nada no sentido de apresentar provas a favor do acusado. Ao contrário: as provas estavam sendo construídas no sentido de incriminar Mariana Ferrer. Em apenas dois minutos de audiência, o advogado do acusado tenta construir a imagem de que Mariana Ferrer seria uma pessoa duvidosa, de pouca índole e que as acusações contra o seu cliente, portanto, seriam frágeis.

    Cláudio Gastão da Rosa Filho x Evandro Lins e Silva

    Assim como fez Cláudio Gastão da Rosa Filho, o advogado de defesa Evandro Lins e Silva, em seu discurso na sessão de julgamento, questionou os parceiros sexuais que passaram pela vida de Ângela Diniz, a relação com os seus filhos, dos quais não tinha a guarda, a suposta dependência química, o fato de ela ter feito um testamento aos 26 anos de idade.

    Quarenta anos depois, a advocacia segue descarrilhando por teses nada jurídicas, que se amparam em um senso comum moralista

    No final, parte considerável do público que assistia ao julgamento, bem como o Tribunal do Júri, saíram convencidos de que Ângela Diniz queria morrer e agiu para isso, enquanto o réu, Doca Street, seria a real vítima, um homem que teria apenas reagido à violação de sua honra masculina.

    Resultado: por cinco votos a dois, uma pena de 18 meses aplicada ao acusado pelo excesso culposo na alegada legítima defesa da honra, pena esta suspensa pelo juiz, com uma “gloriosa (e indigesta)” saída do tribunal de Cabo Frio, a despeito de ser réu confesso.

    Nesse sentido, a advogada estabelece pontos de contato entre as defesas efetuadas por Evandro Lins e Silva e por Cláudio Gastão da Rosa Filho.

    “Quarenta anos depois, a advocacia, amparada em doutrina consagrada e jurisprudência vasta, segue descarrilhando por teses nada jurídicas, que se amparam em um senso comum moralista, pelo qual se rechaça a autonomia, a liberdade e a dignidade femininas, destituindo, sem o menor pudor, mulheres de sua condição de sujeito de direitos”, aponta Gerassi.

    O consentimento em questão

    No caso de Doca Street, ele matou e confessou. As provas foram contundentes e não havia a possibilidade de afirmar o contrário. Por isso, a justificativa pela legítima defesa da honra.

    No caso de Aranha, houve relação sexual. Apesar de negar em um primeiro momento, o acusado confirmou que a relação existiu, e exames mostram provam a presença de sêmen, sangue e rompimento de hímen — Mariana Ferrer nunca havia tido uma relação sexual.

    Não havia, portanto, como provar o contrário. A vítima, no entanto, defende que não houve consentimento, tratando-se de um estupro, afirmando que não tinha condições de oferecer resistência ou consentir, devido à ingestão de bebidas alcóolicas — estupro de vulnerável, portanto — e à possibilidade de ter sido dopada, como defende.

    Primeiramente, o Ministério Público de Santa Catarina (MPSC), por meio do promotor Alexandre Piazza, ofereceu a acusação com essa tipificação criminal, com base no material genético coletado, nas mensagens de texto desconexas de Mariana Ferrer, nos depoimentos e imagens em vídeo.

    Depois de provas colhidas e testemunhas ouvidas, o órgão, com um novo promotor a frente do caso, Thiago Carriço de Oliveira, apresentou à Justiça que não foi comprovada a situação de vulnerabilidade da vítima: o exame toxicológico deu negativo para alcoólicos e entorpecentes.

    Em determinado trecho das alegações finais, o promotor Thiago Carriço de Oliveira questiona: “Estar ‘muito bêbada’ é estar inconsciente ou incapaz de oferecer resistência?”, uma vez que Aranha  afirma em seu depoimento que Mariana Ferrer “estava muito louca”, após a vítima confundir o seu nome com o de outra pessoa, depois do ato.

    Ainda assim, Oliveira afirma que “há, portanto, indícios de que a vítima estava incapaz de determinar-se conforme a sua consciência. Por outro lado, há prova técnica de que ela não teria ingerido drogas no dia anterior aos fatos”.

    No final, o promotor conclui que não há elementos suficientes para dizer que houve intenção de estuprar Mariana Ferrer, uma vez que, para ter sido concretizado o estupro de vulnerável, o autor deve saber que a vítima deve estar em situação de vulnerabilidade, sem condições de oferecer resistência.

    Como a vítima não aparentava estar muito embriagada ou drogada a ponto de não oferecer resistência, o MP entendeu que o réu acreditava que ela estava sã e consentiu para o ato sexual. Logo, o pedido do MPSC à 3º Vara Criminal de Florianópolis foi pela absolvição.

    Nesse sentido, o órgão alega que Aranha incorreu em “erro de tipo”, previsto no artigo 20 do Código Penal: ocorre quando o indivíduo, por desconhecer a realidade que o cerca no momento do crime, acredita estar praticando um ato lícito, quando na verdade está praticando algo ilícito. Logo, Aranha incorreu, segundo o MPSC, em erro do tipo ao não ter como saber sobre a condição de vulnerabilidade da vítima, uma vez que não foi comprovada.

    O juiz, então, entendeu que não havia nos autos elementos capazes de comprovar que Ferrer estava embriagada ou drogada a ponto de que o consentimento dela fosse inválido. Na sua decisão, o magistrado Rudson Marcos afirma que é “melhor absolver 100 culpados do que condenar um inocente”. A defesa de Mariana Ferrer recorreu da decisão.

    Para Julia Drummond, advogada e integrante da Rede Feminista de Juristas, todo o “conjunto probatório foi completamente descartado em detrimento de um exame toxicológico”.

    Para Carolina Gerassi, a culpabilização da vítima pela violência sofrida ultrapassa o imaginário popular, penetrando as instituições.

    “No âmbito criminal, considerando a condução de processos e inquéritos policiais, bem como o tratamento dado à vítima denunciante, não é raro perceber a influência disso na aplicação das normas penais processuais e materiais, bem como na apreciação da prova e na formação da convicção do Juízo”, enfatiza a jurista.

    Seletividade do sistema penal

    André de Camargo Aranha, filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, é empresário de jogadores de futebol e tem livre acesso a espaços e figuras influentes. Na festa em que Mariana Ferrer afirma ter sido estuprada, por exemplo, Aranha estava acompanhado de Roberto Marinho Neto, um dos herdeiros da rede Globo.

    Seu advogado, Cláudio Gastão da Rosa Filho, é um dos mais caros de Santa Catarina, tendo já representado judicialmente Olavo de Carvalho e Sara Geromini.

    No local onde teria ocorrido o estupro, na festa de abertura do verão Music Sunset do Café de la Musique, em Jurerê Internacional, em Florianópolis, os ingressos variavam entre R$ 100 e R$ 1,5 mil.

    Para Nálida Coelho Monte, defensora pública e integrante da coordenação do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) de São Paulo, o processo, a absolvição e a condição financeira do acusado formam um conjunto de fatores que “passa um recado da seletividade do sistema”.

    “[Um recado] de como essas construções jurídicas se adaptam a quem está sendo julgado. Isso é uma mensagem de que o direito penal não atinge determinadas pessoas, principalmente pessoas ricas”, ressalta.

    Na mesma linha, Julia Drummond afirma que “o sistema de justiça criminal condena muito réus negros e pobres por porte de droga e crimes contra o patrimônio em níveis alarmantes e com nada além da palavra do policial”.

    “Em muitos dos casos, com uma quantidade de droga ínfima que qualquer pessoa que frequenta uma festa cara carrega consigo”, enfatiza.

    Edição: Leandro Melito.

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