Argentina: povo na rua, repressão e perspectivas. Entrevista exclusiva com Gustavo Veiga

Este governo demonstrou que não tem limites, nem teto, quando se trata de repressão.

Redação

Transcrição e arte de capa: Tali Feld Gleiser

A Argentina vive um dos seus momentos mais dramáticos, tanto do ponto de vista politico, como econômico, social e constitucional. A qualidade da democracia argentina vive a crise vertiginosa de uma espécie de pré ditadura a partir de um modelo de gestão presidencial e parlamentar nunca visto antes, mas, com algumas semelhanças que remetem aos governos de Carlos Saúl Menem, Fernando De la Rúa e Maurício Macri.

As mobilizações dos aposentados, uma dela reprimidas de forma truculenta aos olhos de todo o mundo no dia 12 de março, nesta quarta-feira 19, terão uma nova versão com o acréscimo de participação dos movimentos sociais organizados e das centrais sindicais. Enquanto isso, aparece o fantasma de uma forte devaluação e um empobrecimento, maior ainda, das grandes massas que vivem já na mais profunda miséria neste século.

Para ter uma “fotografia” deste momento gravíssimo do país irmão, Raul Fitipaldi, conversou com o experiente jornalista, Gustavo Veiga.

A seguir o diálogo:

Democracia e o jogo de palavras

R.F.¿Argentina vive una democracia formal, una dictadura civil, las dos cosas o se trata de otra forma de gobierno no vista antes?

G.V. A Argentina vive algo que se assemelha a uma ditadura civil a partir dos seus enunciados. No entanto, este é um governo legitimado pelo voto porque venceu eleições. Mas, absolutamente deslegitimado pelo exercício do poder. Uns falam de institucionalidade outros de ditadura, é um jogo de palavras. Porém, eu diria que não é uma democracia e é importante saber o que é uma coisa e o que é outra.

Na verdade, ele (o presidente Javier Milei) cruzou todos os limites constitucionais da lei. Bem, eu teria que fazer uma lista muito longa para enumerar todas as violações de direitos humanos que este governo cometeu, não apenas contra grupos que  são os mais fracos, como os idosos, os aposentados, mas contra os estudantes. É por isso que houve marchas no ano passado. Em suma, poderíamos escrever um longo relato do que estamos vivendo como um pesadelo na Argentina.

Não sabemos aonde vai parar. Acredito que isso estará ligado à dinâmica do conflito nas ruas. E à unidade dos setores populares que estão muito fragmentada.

Javier Milei insulta e ameaça os opositores de forma grosseira e violenta

O fantasma do Mossad*

R.F. A repressão de quarta-feira, dia 12, foi um ponto de virada, o começo do fim do governo Milei? A manifestação planejada para o dia 24 poderá ser maior que a do dia 12?

G.V. Não tenho dúvidas de que a marcha do dia 24 será muito mais numerosa do que a do dia 12, porque ela já está sendo convocada a partir de outro eixo: é 24 de março, aniversário do golpe da ditadura genocida de 1976. Então o chamado será de outra ordem, de outra magnitude, e marcará uma escalada no movimento popular e na mobilização dos diversos setores políticos, sindicais e estudantis, dos movimentos sociais.

Este governo demonstrou que não tem limites, nem teto, quando se trata de repressão, uma repressão que tem até uma suspeita bastante alta de ser aconselhada pelo repressivo estado israelense, o Mossad. Essas são reclamações que já circulam até mesmo entre jornalistas e por pessoas da política, então não ficaria surpreso se a escalada continuasse a crescer. E continuamos tendo dificuldades nas ruas quando se trata de mobilização para uma construção justa da sociedade.

(*O Instituto de Inteligência e Operações Especiais do Estado sionista de Israel)

Foto: Getty Images

Filme parecido com outra vertigem

R.F.Que circunstâncias podem tornar este momento semelhante à queda do governo De la Rúa em 2001, e o que é diferente?

G.V. Aquela repressão ocorreu há mais de 20 anos. Acredito que isso ficou mais encapsulado e circunscrito na última parte do governo de De La Rúa. Começou quando as economias da classe média foram afetadas, aí começaram os panelaços. E tudo isso terminou nos trágicos dias de dezembro de 2001. Sim, houve episódios antes, mas não com uma escalada gradual da repressão, como este governo com menos de um ano e meio de gestão vem demonstrando. Então, eu entendo que há uma grande diferença.

Pode ter havido fórmulas econômicas diferentes, mas os personagens são os mesmos: o Domingo Cavallo,  ex ministro das Economia de De la Rúa que o apoia mas não incondicionalmente, porque ele criticou Milei recentemente. Mas, basicamente, qual é o programa econômico desse governo genocida, porque eu diria que ele já é genocida na esfera social. Deveríamos reler alguns textos de Boaventura de Sousa Santos sobre o que é o social fascismo. Há toda uma discussão sobre isso acontecendo na Argentina.

O ex presidente, Fernando De La Rúa fugiu da Casa Rosada ante a mobilização popular de helicóptero

Repúdio no exterior e … nada mais

R.F. Uma agência de direitos humanos da ONU na América Latina pediu uma investigação completa sobre a repressão brutal de quarta-feira. Isso poderia levar a alguma sanção contra o governo Milei e Bullrich?

G.V. Há repúdios que estão avançando em escala global contra o governo argentino pela repressão e entre outras coisas, por esse discurso grandiloquente e neofascista do presidente, atacando o tempo todo. Agredindo os grupos que se opõem a ele, a partir das frase provocando os esquerdistas com um megafone de dentro de um caminhão hidrante da polícia na repressão do dia 12.

Quando se trata das Nações Unidas, é bom lembrar que é nessa organização criada depois da Segunda Guerra Mundial, onde foi constituída a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Hoje, na Argentina, não temos nada além de despojos desses direitos.

Não creio que uma investigação possa prosperar, pode acabar como uma declaração numa rede social. Pode declarar que é bom que o governo reveja suas políticas repressivas, mas não muito mais que isso. Não estou depositando muitas esperanças em mudanças. Essa situação que nós, argentinos, estamos vivendo, será mudada por uma sanção das Nações Unidas.

Renovação

R.F. É necessário renovar os sindicatos e as lideranças partidárias do campo popular e nacional e da esquerda argentina?

G.V.  Vou deixar de lado por enquanto a discussão dos líderes sindicais, especialmente a CGT, a maior e mais antiga. A liderança da CGT está sempre atrasada. Convocou depois dos fatos do dia 12 a uma greve de 24 horas. Nós já sabemos quem são os líderes sindicais, que estão lá há anos, em alguns casos há décadas. Menos. Isso, eu acho que tem nuances,  às vezes um setor é mais combativo que o outro, mas esse triunvirato que o comando da CG não representa mais do que sindicatos que estão presos em seus velhos caminhos. As autoridades se renovam, mas sempre com os mesmos personagens.

Acredito que precisamos trabalhar para democratizar os estatutos sindicais e a própria composição da CGT. Mas não tenho muitas expectativas de que isso vá mudar, e em relação a essas questões partidárias, estão em declínio absoluto. Eles desertaram, principalmente na última etapa, e me refiro ao peronismo, que é basicamente quem tem maiores expectativas eleitorais. Não vejo nenhuma mudança sendo feita aqui. Esta força tem alguns embriões de resistência de jovens líderes que podem ter expectativas eleitorais maiores do que as que foram vistas até agora.

Imagem: Rumbo alterno

Mas muito menos no restante dos partidos e na esquerda. Acho que o que historicamente falhou na Argentina foi a unidade da esquerda. Não é suficiente com a unidade de 5 partidos na frente de esquerda. O que existe aqui é muito fragmentado e eles deveriam copiar alguns modelos de outros países, pelo menos para avançar em uma construção que gere unidade na ação para mudar o que estamos vivendo.

Gustavo Jorge Veiga (Buenos Aires, 12 de novembro de 1957) é um jornalista, escritor, professor universitário e colunista argentino na mídia impressa, filho do comentarista de futebol e boxe Bernardino Veiga.

Trabalha como editor especial no jornal Página/12 para as seções de Política, Sociedade, Política Internacional e Esportes.

Ele cobriu notícias em Cuba, Chile, Bolívia, Brasil, Paraguai, Uruguai, Venezuela, México, Itália, Alemanha, África do Sul e Espanha. É membro do CAPAC (Clube Argentino de Jornalistas Amigos de Cuba). Também está vinculado à cobertura das lutas pelos Direitos Humanos.

Raul Fitipaldi, é jornalista e apresentador, cofundador do Portal Desacato e da Cooperativa Comunicacional Sul.

 

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here


This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.