Por Carmen Susana Tornquist, para Desacato.info.
Enquanto no dia 5 de dezembro acontecia o Dia Nacional de Lutas em defesa da Universidade e da educação pública, no Brasil, na Argentina a população protestava em mais uma marcha “Ni una menos”. O protesto foi motivado pela sentença de absolvição dos assassinos de Lucía Pérez, proferida alguns dias antes, pelos juízes Pablo Viñas, Facundo Gómez Urso y Aldo Carnevale. A sentença dos juízes levou a abreviar as penas dos criminosos, transformando praticamente a vítima em culpada: como costuma acontecer em casos desta natureza – envolvendo gênero – o processo concentrou-se em detalhar a conduta moral de Lucía, ao invés de deter-se no crime, para então, absolver os seus agressores, que a violaram até a morte, há mais de um ano, em Mar del Plata.
“Lucía Perez era menor, era mujer y era víctima”, diz Yael Bendel, em entrevista para o Jornal Página 12, que publicou no dia 6, uma grande matéria sobre a marcha: “Estas tres dimensiones fueron desatendidas. Ninguna norma de protección especial de derechos a la infancia fue analizada o aplicada al caso(…) Los jueces desconocieron el deber de diligencia que se debe tener en un juzgamiento de un hecho de violencia de género contra una mujer, contemplados especialmente en la Convención contra todas las formas de violencia contra y en la Convención para prevenir, sancionar y erradicar la violencia contra la mujer, entre otras”.
A concentração em Buenos Aires começou as 16 horas, na Avenida 9 de julho e se dirigiu à Plaza de Mayo. Protestos similares aconteceram em outras cidades argentinas. Além do caso recente de Lucía, referências a outros feminicídios ocorridos na Argentina foram feitos pelas manifestantes, entre os quais o de Chiara Páez, que detonou o movimento Ni una menos em 2016 e já levou às ruas milhares de pessoas. Segundo o Observatorio de Femicidios del Defensor del Pueblo de La Nación ocorreram, no primeiro semestre deste ano, 139 casos de femicídios, expressando o crescimento da violência e de denúncias, a maior parte na Grande Buenos Aires.
O conceito se refere à especificidade dos assassinatos que tem como vítimas mulheres, por sua condição de gênero, e foi incorporado pelos coletivos feministas, de mulheres e, cada vez mais, por organizações da classe trabalhadora, artistas e intelectuais. Os dados referentes a este tipo de violência têm crescido de forma assustadora no mundo, e na América latina, expressando o acirramento da cultura patriarcal em um contexto de aumento vertiginoso da violência, em todas as relações sociais.
Nora Cortiñas, incansável lutadora das Madres, manifestou- se dizendo que “el gubierno nacional también es cómplice: lo demuestra con su agenda de represión e impunidad”, evocando o caso de Santiago Maldonado, que foi morto no contexto das lutas dos mapuche em 2016 e o fim de semana anterior, no qual foi instalado um verdadeiro estado de sitio na capital federal por conta das atividades do G20, tentando impedir as manifestações populares contrárias ao evento, que mesmo assim, lograram acontecer. (Muitos dos participantes do dia 5 eram também os que estiveram presentes na marcha “Fuera G20”, no dia 30 de novembro).
Além de expressar a indignação das mulheres frente a casos tão absurdos, a Marcha Ni una menos trouxe – além da resistência – uma outra boa notícia: é que o tema da violência sexual, tão caro ao feminismo, já não é uma pauta restrita a pequenos grupos de mulheres, intelectuais ou estudantes, nem apenas de mulheres. Na multidão que invadiu o centro de Buenos Aires havia mais do que pequenos grupos e intelectuais ou de classes médias, mulheres: havia homens, mulheres da classe trabalhadora strictu sensu, migrantes, várias gerações e etnias, organizados ou não. E, sim, a importante presença de partidos, sindicatos e grupos da classe trabalhadora, desde os partidos socialistas, operários e comunistas, como grupos de economia popular, frente de luta por territórios, por moradia.
A presença de servidoras públicas, não apenas como sindicalizadas, mas também de instituições governamentais relacionadas ao tema também se fez notar, expressando o quanto o próprio aparato estatal é também dividido: no alto escalão, juízes machistas, nas bases, trabalhadores comprometidos com os direitos e com a justiça. Exemplo disto é a campanha pública contra o assédio sexual, que “decora” nesta primavera o sistema de Metrô da cidade: “Acoso sexual: ni loca, ni perseguida, ni histérica”. Denuncie. Ela expressa também que, apesar dos governos de plantão, as pautas feministas tem conseguido penetrar alguns espaços do aparelho estatal. Infelizmente, não chegando aos altos escalões, onde se concentra o poder.
Segundo relatos de militantes presentes na Marcha, nos últimos anos os trabalhos de base, feito também em escolas secundárias, contribuíram para a construção de um “sentimento” pró-feminista nunca visto até então. Junto com a legalização do aborto (recentemente “quase” aprovado na Argentina), a violência de gênero é uma das grandes questões que contribuiu para aprofundar a articulação das pautas feministas com a esquerda socialista – de onde, afinal, vieram as lutas – , ainda que alguns agrupamentos apostem, ainda, somente no feminismo, excluindo a luta de classes, ou num feminismo pequeno burguês que não alcança as maiorias. Mas os dados sobre a desigualdade de gênero não mentem: as mulheres mais oprimidas, mais violentadas estão entre as trabalhadoras, as camponesas, as negras, as indígenas. Agora bem, como no Brasil, enquanto as lutas sociais explodem por todos os lados, na Argentina, as burocracias sindicais e partidos reformistas preferem apostar em pleitos eleitorais e vias institucionais. Por isto, e importante qualificar o que significa “esquerda”, atualmente.
Com faixas, panfletos, cartazes e juntamente com suas bandeiras e consignas especificas, podia se escutar um sem-número de variações sobre o tema do feminismo e da luta popular, muitos dos quais a partir de melodias conhecidas com letras adaptadas, entre as quais “Y dale alegría alegría a mi corazón… que pasen los machistas y el patrón, entre inúmeras otras adaptações e criações. Indicações claras do nomes dos primeiros e dos segundos criminosos (assassinos e juízes), conclamas a paros e greve geral, não foram elementos isolados do movimento. “Eligir a lxs Jueces y juezas por voto popular”, Si nuestras vidas no valen, produzcan sin nosotras”, Vamos: Feminismo popular para la Revolución”, “Ni uma menos: vivas y libres nos queremos”, eram alguns dos inúmeros dizeres das faixas e banners empunhadas pelas militantes. Entre estas, as consignas Lucia somos todas y Contra el pacto machista, paro feminista” foram assumidas por todes participantes. Mujeres en lucha y a la izquierda foi outra das chamadas que expressou a tonada da Marcha do dia 5.
Ni una menos, FIT (Frente de Izquierda, da qual fazem parte PTI (Partido de trabjadores), MRT (Movimento revolucionario de trabajadores) e o Partido Obrero, Frente de géneros, Feminismo villero La poderosa, Somos, FUBA (Federação de estudantes universitários) MTA, Movimento de trabajadores desocupados), Juntas y a la izquierda, Movimiento Evita, Confederación de Trabajadores por la economia popular, Movimento al socialismo(MAS), MST(Movimiento socialista de los trabajadores), Campaña nacional contra las violências, campaña nacional pelo aborto seguro. Além de muitas ONGS, que fazem parte do chamado campo feminista, participaram da Marcha as organizações mais massivas da esquerda e anti-capitalista e também crítica do kirchnerismo, entre as quais a FIT (Frente de Izquierda , da qual fazem parte PTI (Partido de trabjadores), MRT (Movimento revolucionário de trabajadores) e o Partido Obrero, entre outros.Pois, como no Brasil, enquanto as lutas sociais explodem por todos os lados, na Argentina, as burocracias sindicais e partidos reformistas preferem apostar em pleitos eleitorais e em acordos de gabinete.
Se a questão feminista se impõe, hoje, no mundo, sua solução somente pode se dar pela esquerda – isto é, pelo socialismo – como disserem em alto e bom som as companheiras argentinas, que poderemos alçar um novo patamar nas relações entre os gêneros, ela se articula fortemente com o avanço do capital nos países subalternos, onde a maioria das mulheres da classe trabalhadora são indígenas, negras, migrantes e onde os limites do Estado demo-burguês sequer jamais puderam incluir sequer as pautas mínimas dos direitos humanos, nem muito menos mitigar a profunda desigualdade social e a violência que lhe acompanha.
El 5 de diciembre, es una primera reacción importante pero debemos ir más allá. No es un problema de las mujeres solas, es de todo el pueblo trabajador la necesidad de exigir justicia, por eso el paro debe ser del conjunto de la clase obrera y los trabajadores. De manera urgente las centrales sindicales, los centros de estudiantes y federaciones deben llamar a que todas y todos paremos la Argentina ese día para evitar que vuelvan a matar a Lucía y por todas las que ya no tienen voz.( chamada para o Ni uma a menos, feita pelo partidos socialista dos trabalhadores unificados da Argentina.
E estas questões já foram colocadas em pauta pelas mulheres trabalhadoras, há mais de um século atrás, quando foram – não sem contradições e conflitos – consideradas por muitos como parte intrínseca de processos revolucionários. Pensamos em Clara Zetkin, Alexsandra Kollontai, Krupskaia e, mais do que lideranças, as próprias conquistas dos primeiros anos da revolução soviética, entre os quais o aborto, o divórcio, a socialização dos trabalhos domésticos.
A presença de coletivos artísticos, de comunicação popular, com tambores, instalações e performances, contribuindo, assim, de forma especial, com a conscientização dos e das passantes. Muitos e muitas destas paravam e aderiam simplesmente a Marcha, compreendendo rapidamente as consignas feministas (e todas as mulheres sabe muito bem o que é conviver com este medo!). Pois, como diz Gramsci, no senso comum repousa um núcleo de bom senso, decorrente da experiência concreta – e deste faz parte, o desejo de estarmos vivas, livres e em luta.