Por Antônio Martins.
Seguir à risca a ideia de “disciplina fiscal” proposta pelos mercados; não permitir que os Estados gastem mais do que arrecadam. Durante muitos anos, esta receita foi vendida aos governos da periferia do capitalismo – em especial os de esquerda – como caminho para a estabilidade. Não é mais assim, mostram o Chile e a Argentina. Em ambos, estão no poder presidentes que se elegeram em resposta a crises do neoliberalismo (no caso chileno, houve rebelião popular em 2019 e foi eleita uma Convenção Constituinte em 2021).
Tanto em Buenos Aires quanto em Santiago, porém, os novos governantes seguiram o velho conselho. Praticam políticas fiscais moderadas, a pretexto de não provocar o poder da oligarquia financeira, nem afugentar os “investidores”. As consequências são graves. A popularidade dos governos está em queda, há crise política (Argentina) e risco de retrocesso (Chile). E o poder econômico, que se beneficia da hesitação governamental, especula contra os dois países. As experiências merecem ser examinadas com atenção por quem deseja, no Brasil, a vitória de Lula e o sucesso de seu possível governo.
O caso mais delicado é o da Argentina. A quinze meses das próximas eleições gerais (em outubro de 2023) o governo de Alberto Fernández e Cristina Kirchner parece sem perspectivas de tirar o país do atoleiro em que foi mergulhado por seu antecessor, Maurício Macri. No último fim de semana, houve risco de um terremoto político. O ministro da Economia, Martin Guzmán, renunciou no sábado, de forma intempestiva, ao dar-se conta de que um desgaste generalizado tornara sua gestão insustentável. Como era o fiador de um acordo como o FMI, temeu-se que houvesse pânico nos mercados e cogitou-se a decretação de feriado bancário nesta segunda. Para piorar, o presidente e sua vice, em divergência crescente, mantinham-se sem diálogo havia meses. Uma eventual escolha infeliz do substituto de Guzmán poderia levá-los a uma ruptura desastrosa. Depois de um domingo de enorme tensão, chegou-se a uma solução não traumática. A nova ministra é a economista Silvina Batakis, escolhida por consenso entre o presidente e a vice.
Ela terá uma trilha pedregosa pela frente. A pobreza cresceu 67% em uma década e aflige um em cada quatro argentinos. A inflação, crônica no país, foi turbinada nos últimos meses pela alta internacional de preços e supera 60% — o que corrói o poder de compra dos salários. Empossado em dezembro de 2019, Fernández foi o primeiro político a quebrar o ciclo de golpes de Estado e vitórias eleitorais conservadoras que marcou a América do Sul a partir de junho de 2012. Conduz uma política externa ousada, com críticas constantes às desigualdades internacionais e pedido recente de ingresso no grupo dos BRICS.
Mas assumiu obrigado a lidar com uma mega-dívida de US$ 57 bilhões junto ao FMI (contraída pelo neoliberal Macri) e não se dispôs a contestar as políticas “exigidas” pelo organismo. Durante os dois primeiros anos do mandato, evitou políticas que pudessem ser consideradas heterodoxas pelo Fundo (a emissão de moeda nacional para financiar gastos sociais ou em infraestrutura, por exemplo) para tentar uma renegociação do débito. O novo acordo finalmente alcançado (em março último) alivia em muito pouco a situação anterior. Exige corte de despesas, aumento das tarifas de energia para a classe média e elevação dos juros. Foi a insistência nestas políticas que levou o ministro Gúzman ao desgaste terminal.
Cristina Kirchner opôs-se ao acordo, mas não foi capaz de apresentar uma alternativa à esquerda. Ao contrário: em algumas de suas últimas falas, tem insinuado a defesa da dolarização (ainda que parcial) da economia – uma velha tentação argentina, sempre ruinosa. Há, apesar de tudo, um elemento positivo no cenário econômico. A assunção da nova ministra foi associada à possibilidade de aprovação de uma renda universal – ou, ao menos, a extensão a 7 milhões de pessoas do programa Potenciar Trabajo, que hoje chega a apenas 1,2 milhão. Mas enquanto a ruptura com a ortodoxia não vem, o governo peronista continua a amargar perda de apoio entre os eleitores.
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No Chile, onde o jovem presidente Gabriel Boric assumiu há apenas quatro meses, também há poucos motivos para otimismo, no momento. A Convenção Constitucional entrega hoje (4/7) sua proposta de Constituição. Como mostra matéria do jornal Brasil de Fato (que reproduzimos na seção Outras Mídias), o texto traz avanços notáveis em relação ao que está em vigor, redigido essencialmente na ditadura Pinochet. Reconhece o caráter plurinacional do Estado (12,7% da população é indígena). Estimula formas de democracia participativa (os referendos constitucionais, por exemplo). Estabelece a paridade de gênero nos órgãos legislativos. E propõe, como princípios, o estabelecimento de sistemas públicos de Saúde, Previdência e Educação.
Mas esta Constituição avançada corre sério risco de ser repelida no referendo, marcado para 4 de setembro, em que a população se pronunciará sobre ela. As pesquisas mais recentes sugerem que, se o pleito fosse hoje, o texto seria derrotado por 52% x 36%. E a própria popularidade de Boric sofreu queda abrupta, para tão pouco tempo no governo: 62% o desaprovam, contra apenas 33% que o aprovam.
Como o Chile, que viveu há menos de três anos uma insurreição popular de caráter claramente antineoliberal, está em tais apuros? A resposta não cabe na urgência e no espaço deste texto. Há uma vastidão de fatores a ser considerados, como o enraizamento da direita, a longa condição do país como produtor de bens primários, a inexperiência (e a tendência à autofagia) da jovem esquerda do país. Mas algo muito nítido salta aos olhos. Em meio a um mundo em grande turbulência e a um país em transe, talvez o novo governo e a própria Convenção Constituinte não tenham sabido lidar com a enorme expectativa das maiorias.
Também lá chama atenção o temor dos governantes em romper com a ditadura dos mercados financeiros. A Convenção aprovou como princípio constitucional a ideia ambígua (e hoje capturada pelo neoliberalismo) de “responsabilidade fiscal”. Ele foi adotado (como se vê aqui) com base em uma visão moralista do papel do Estado, que condena a dívida e os déficits. É como se emitir moeda para promover a redistribuição de riquezas, os serviços públicos e um novo projeto de desenvolvimento fosse algo pecaminoso.
Esta mesma concepção está presente no governo Boric. O presidente compôs o gabinete com paridade de gêneros. Mas nomeou, como ministro da Fazenda o economista Mário Marcel, um homem que, além de branco e rico, é fiel à ortodoxia econômica a ponto de defender que o Banco Central tenha autonomia sobre os governantes eleitos. E o próprio presidente Boric, entrevistado pela BBC, sugeriu, logo após ser eleito, que a esquerda deveria submeter-se à noção ortodoxa de “responsabilidade fiscal”.
Esta atitude deixa-o, ao menos até agora, de mãos amarradas em meio às novas turbulências internacionais. Por subordinar-se à ortodoxia econômica, ele não tem recursos políticos para enfrentar de imediato o agravamento das condições de vida. Na última sexta-feira, propôs finalmente uma Reforma Tributária – que se baseia em princípios louváveis, mas passará por difícil aprovação no Legislativo e já é bombardeada pela direita. Esta busca transferir a ele os problemas gerados nas cinco décadas transcorridas desde o golpe militar de 1973.
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Nem Boric, nem o peronismo argentino estão em becos sem saída. A eleição de ambos expressou o impulso das populações da América do Sul contra a desigualdade, o destino extrativista, a condição periférica e colonizada. Os erros podem ser reparados. A possível eleição de Lula terá, se concretizada, poder de lançar outro projeto para a região. Mas também o Brasil precisa estar atento. A resistência a enxergar o Estado — e, em especial, sua capacidade de emitir moeda — com outros olhos pode conduzir a desastres.
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