Por Gisele Pereira.
O Senado argentino rejeitou por 38 votos a 31 o projeto de lei que visava legalizar a interrupção da gestação até a 14ª semana.
Engana-se quem acredita que tal rejeição representa uma derrota para o movimento. Em absoluto, representa parte de um processo de avanço social que levou um projeto com tal matéria pela primeira vez tão longe. Em tentativas anteriores sequer chegou a votação.
A aprovação no Congresso e essa rejeição sem a folga costumeira que gozavam os opositores demonstra que a temática do aborto galgou outro patamar na discussão pública. Saiu de vez do lugar de tabu para ganhar as ruas, que se inundaram de verde, representando a esperança concreta e persistente que se recusa a retroceder: “O aborto legal inexoravelmente será lei”, afirmam com convicção.
Por aqui, em Terras Brasilis, percorremos outros caminhos de uma mesma luta. Assim como nossas irmãs argentinas, seguimos um caminho árduo e longo, dando continuidade aos passos que nos antecederam.
Diferentemente das argentinas, o caminho que traça hoje o Brasil não é a proposição de uma mudança de lei, mas do cumprimento de nossa lei maior, a Constituição Federal.
A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 questiona justamente a inadequação dos dispositivos 124 e 126 do Código Penal, com preceitos constitucionais fundamentais como a autonomia, a dignidade humana e liberdade das mulheres.
A ministra relatora, Rosa Weber, convocou audiências públicas para ouvir a sociedade civil e especialistas nas diferentes áreas do conhecimento sobre a questão. Em tais audiências ocorridas nos dias 3 e 6 de agosto ficou evidenciada a qualidade e consistência da argumentação favorável à ADPF, além da justiça e necessidade premente de seu conteúdo.
A discussão sobre aborto atinge outro patamar também no Brasil. O acúmulo de teorias fundamentadas a partir das diferentes áreas do conhecimento – medicina, direito, antropologia, sociologia etc. – é um ganho altíssimo para toda a sociedade que não poderá mais ser ignorado, assim como o aborto não voltará ao lugar de tabu.
Outro fator evidenciado foi o caráter puramente moral religioso da criminalização do aborto. A mesma moral religiosa que pune e legitima a morte de mulheres há séculos, como lembrou a pastora luterana Lusmarina Campos Garcia, integrante do Instituto de Estudos da Religião. A criminalização do aborto é, portanto, também um grave desrespeito à laicidade do Estado proclamada na Constituição.
Mas também desde o lugar das religiões pudemos ouvir vozes expressando o quanto cada religião é diversa e mutável e o quanto é preciso reparar dos males sociais que poderes religiosos causam e sustentam com seus discursos e práticas.
Vozes que, sem dissimular seus lugares de fé, defenderam a laicidade do Estado e trouxeram uma argumentação contundente de como princípios religiosos não se opõem de fato ao direito das mulheres à sua livre escolha reprodutiva.
O questionamento trazido por Lusmarina Garcia vai nesse sentido: “Por que uma parte das tradições religiosas, que são construções históricas, insistem em disseminar e reproduzir a misoginia, controlando os corpos das mulheres e penalizando-as psiquicamente, por causa do suposto pecado e da culpa, e também criminalmente?”
A luterana afirmou categoricamente que “as inquisições contra mulheres continuam, mesmo travestidas por outras faces e formas. Outrora foram as fogueiras reais, hoje as fogueiras simbólicas, mas não menos perversas, persistem através de um poder religioso que age contra a dignidade das mulheres via poder político e se mantêm institucionalmente.”
A pastora também apontou que nem a teologia nem mesmo a Bíblia condenam o aborto. Para ilustrar, mencionou os dois casos que fazem referência ao aborto nos textos bíblicos: “O primeiro, em Êxodo 21:22-23, determina que se uma mulher, por estar envolvida na briga entre o seu marido e outro homem, for ferida e abortar, o agressor deve pagar uma indenização para o marido. Isto significa que, à época, o feto não era considerado um ser vivo e, por isso, o agressor não era condenado à morte. Lembremo-nos que o que vigia era a Lei de Talião: olho por olho, dente por dente, vida por vida”.
“O segundo texto, Números 5:11-34”, recitou, “relata um aborto ritual praticado pelo sacerdote. Se o marido ficasse com ciúmes da sua esposa e não pudesse comprovar a infidelidade dela por meio de testemunhas, poderia praticar o ritual de ordália, que consistia em obrigar a mulher supostamente infiel a tomar águas amargas. A mulher era forçada a ingerir o que atualmente se denomina “cadaverina”, elemento que se encontra em matéria orgânica morta. Se a mulher abortava depois de ingerir a água, estava comprovado que ela tinha sido infiel e o marido podia puni-la, inclusive com a morte por apedrejamento.”
Por outro lado, desde sua tradição religiosa lembrou o quanto é fundante para o protestantismo a separação entre religião e Estado. Além da laicidade ser “fundamental para a garantia do direito à igualdade em todos os seus aspectos, e de maneira especial para a igualdade de gênero e a liberdade religiosa e de consciência, inclusive no que diz respeito à possibilidade de decidir como, quando e se levar adiante uma gestação ou não”.
A socióloga Maria José Rosado, presidenta de Católicas pelo Direito de Decidir (ou simplesmente Zeca para nós), lembrou que o catolicismo, que há séculos gozou do estatuto de religião oficial do Estado, tem sua história permeada por mudanças.
“Não é de se admirar que a Igreja mude. Historicamente, ela sempre mudou quando percebeu que as sociedades mudavam. Foi assim em relação à escravidão e foi assim em relação aos direitos humanos. Recentemente, mais uma mudança: A condenação da pena de morte, por tanto tempo aprovada pela Igreja. Por que não poderia reconsiderar sua posição em relação ao aborto? A ilegalidade faz do aborto uma forma de pena de morte para as mulheres.”
Rosado afirmou ainda que “no campo católico, em que o aborto nunca foi declarado um dogma, as disputas em torno dessa questão remetem a séculos de discussões internas entre moralistas, teólogas e teólogos. E há, numa antiga tradição cristã, um princípio fundamental conhecido como probabilismo, segundo o qual onde há dúvida, há liberdade. Em latim: Ubi dubium ibi libertas. Esse é o caso do aborto”.
Engana-se quem acredita que esse debate foi feito apenas por religiões cristãs. Nas audiências públicas convocadas pelo STF, representantes de religiões não cristãs estiveram presentes, entre eles o Rabino Michel Schlesinger, da Confederação Israelita do Brasil.
Segundo ele, na tradição judaica, a integridade física da gestante é levada em consideração: “As razões que poderiam justificar, sob uma perspectiva judaica, a prática [do aborto] vão do risco de vida mãe, como prevê nossa legislação, passando pelo risco de saúde física ou mental da mãe, que inclui casos de estupro, como também prevê nossa legislação. Mas os expande a casos de incesto, adultério, gravidez na infância, gravidez na velhice, falta de condições socioeconômicas, entre tantas outras. E, finalmente, com o advento da modernidade, temos a possibilidade identificar má formação do feto, como de fato prevê nossa legislação no caso de anencefalia, mas é possível estender essa mesma norma a tantas outras doenças graves, que limitarão aquela vida a poucos dias, e às vezes horas, depois do nascimento”.
Schlesinger finaliza sua sustentação com uma recomendação: “Assim como a religião age para aconselhar e acolher a decisão da mulher que opta pelo aborto, recomendo que o Estado constitua equipes multidisciplinares para aconselhar e acolher essas mesmas mulheres. No final das contas, existe algo que aproxima nós, religiosos, e os senhores, agentes do Estado: temos uma oportunidade de sermos relevantes em um momento tão crítico na vida de uma mulher e de seu entorno. Somente o seremos se a nossa postura for de acolhimento e instrumentação do aprofundamento daquela decisão. Porque, no final das contas, a decisão do indivíduo será tomada conosco ou apesar de nós”.
Decisão, esta, que mulheres da Argentina e do Brasil lutaram e continuarão a lutar para ser garantida. Ambos os países demonstram que as sociedades, incluindo as religiões, estão em constantes mudanças. É neste sentido que retomamos a pergunta lançada por Zeca à Suprema Corte: “Não é também o tempo de se mudar da criminalização à legalização do aborto em nosso País?”
Acreditamos que sim e continuamos caminhando nesta direção. Seguindo firmes em uma caminhada sinuosa, mas que não tem outro sentido a não ser para frente.