Por Paulo Nogueira Batista Jr.
Foi adiada para abril, para depois da viagem do presidente Lula à China, a decisão sobre o arcabouço fiscal que substituirá, por lei complementar, o teto constitucional de gastos. A decisão de adiar a proposta do governo me parece correta. Por que tomar de afogadilho, a portas fechadas, decisão de natureza estratégica, que afetará a política fiscal ao longo dos próximos anos?
Recorde-se que o governo está dando sequência a algo muito importante aprovado na PEC de transição. Ali, por sugestão e redação do próprio ministro Haddad, como ele mesmo me disse, foi estabelecido um dispositivo inteligente que – ponto nem sempre notado –efetivamente desconstitucionalizou o arcabouço fiscal, ao prever que o teto de gastos deixará de existir depois que for aprovada a lei complementar estabelecendo um novo marco fiscal. É a elaboração dessa lei complementar que está em discussão.
Credibilidade versus flexibilidade
Não tenho conhecimento da alternativa ou alternativas elaboradas no Ministério da Fazenda, pois tudo foi conduzido até agora sob segredo. Mas a matéria em si mesma não requer sigilo. Melhor seria que se inaugurasse debate aberto sobre o assunto, antes do presidente Lula encaminhar proposta ao Congresso.
Do ponto de vista teórico, existe sempre um trade-off, um dilema entre flexibilidade e credibilidade. A busca de credibilidade leva a fórmulas mais rígidas, sacrificando a liberdade da política econômica. Inversamente, regras muito flexíveis tendem a não gerar confiança. Isso vale não só para a área fiscal, mas também para as áreas monetária e cambial.
Admitindo-se que seja necessário ou aconselhável estabelecer regras ou âncoras, convém seguir modelos rigorosos e buscar a credibilidade a todo custo? Não parece razoável. Estou entre aqueles que preferem dispositivos flexíveis, que não engessem a política econômica. O futuro é sempre incerto e fixar regras rígidas acaba não sendo recomendável na prática. Melhor deixar margem para adaptações e revisões. A confiança pode ser criada e fortalecida ao longo do tempo, com a execução responsável das políticas públicas.
No campo das contas públicas, o papel de uma regra flexível é ajudar na criação de confiança, sem impedir, entretanto, que a política fiscal desempenhe seu papel como instrumento central da política econômica. Arcabouço, não calabouço fiscal.
No caso do Brasil, a flexibilidade é particularmente importante, uma vez que é difícil imaginar um cenário de recuperação da economia e distribuição de renda que não passe por uma política fiscal ativa, que inclua ampliação do investimento do investimento público e das transferências e outros gastos sociais. O arcabouço fiscal que agradará o mercado financeiro e o Banco Central, que corresponda a suas expectativas e preconceitos, dificilmente será compatível com um programa de desenvolvimento econômico e social. Não se deve adotar regras que o mercado financeiro aplauda como “robustas” para depois descobrir, ao longo dos anos, que a política fiscal não pode isso, não pode aquilo, e ficou basicamente manietada e imobilizada.
Uma regra flexível e simples
A minha preferência, assim como a de muitos outros economistas, no Brasil e no exterior, é por regras flexíveis, simples e que não sejam pró-cíclicas, como são alguns tipos de âncoras. Em outros termos, melhor adotar regra ou arcabouço fiscal facilmente inteligível que dê margem à adoção de políticas anticíclicas sempre que necessário, permitindo que a política fiscal seja mais restritiva em períodos de aquecimento excessivo da economia e mais expansiva em períodos de recessão ou estagnação.
Um arcabouço fiscal desse tipo poderia tomar o seguinte formato. Seriam definidas, com certa antecedência, metas anuais para o resultado primário do governo na forma de uma banda, com distância ampla entre piso e teto. A lei preveria que, em épocas de recessão ou crescimento lento, o resultado ficaria próximo do piso; em épocas de crescimento elevado, próximo do teto. A regra não seria, assim, pró-cíclica.
Evitar pró-ciclicidade é importante. Quando a economia cresce mais vigorosamente, as receitas públicas sobem e diminuem certos tipos de gastos, como o seguro-desemprego. O déficit se reduz, ou o superávit aumenta, de forma automática. O inverso ocorre quando a economia desacelera. O arcabouço fiscal teria que ser desenhado com esses efeitos automáticos em mente. E deveria deixar, além disso, certa margem para uma política fiscal ativa, capaz de proporcionar impulso ou contração fiscal, conforme a situação da economia.
Uma banda atenderia esses requisitos. Fixar uma meta única para o resultado primário já não. Em época de recessão, por exemplo, o resultado primário diminuiria automaticamente, distanciando-se da meta fixada. O governo, para cumprir o estabelecido, seria levado a cortar gastos ou aumentar tributos, reforçando o movimento recessivo da economia. Um erro seria, por exemplo, fixar um horizonte para zerar o déficit primário. Se a economia continuasse crescendo pouco ou nada, esse tipo de objetivo conduziria à recessão e ao aumento do desemprego.
Uma banda para o resultado primário tem algumas outras vantagens como alvo da política fiscal. Primeiro, o superávit ou déficit primário é uma variável conhecida, com longa série histórica. Segundo, é uma variável observada, e não construída por modelos, como seria por exemplo o resultado primário estrutural ou ajustado para excluir efeitos cíclicos. Terceiro, é um resultado sobre o qual a política fiscal tem razoável controle, diferentemente da dívida pública ou do déficit fiscal total, mais sensíveis a outros aspectos da política econômica e a variáveis fora do controle governamental.
A simplicidade da regra é outra vantagem. Um arcabouço complexo, com muitos dispositivos, cláusulas de escape e gatilhos, dificultaria a compreensão da proposta e o acompanhamento da sua execução. Seria, também, mais fácil desfigurá-lo durante a tramitação no Congresso, pois a complexidade abriria a porteira para todo tipo de ideia extravagante.
Todo arcabouço deve prever também normas para o caso de descumprimento das regras. O que aconteceria se a regra aqui proposta fosse descumprida? Também nesse ponto seria preferível adotar procedimentos simples. Em caso de resultado fora da banda estabelecida, a Fazenda enviaria documento detalhado ao Congresso, justificando o desvio, a exemplo do que faz o Banco Central, em carta à Fazenda, quando a inflação escapa da banda no regime de metas para a inflação. O ministro da Fazenda, assim como deveria fazer o presidente do Banco Central, compareceria trimestralmente ao Congresso para dar explicações e responder a questionamentos sobre a condução da política e o cumprimento da meta.
O arcabouço proposto seria flexível demais? Não creio. Afinal, pergunto, por que o regime fiscal teria de ser mais rígido do que o monetário? A política fiscal deve, em princípio, ter o mesmo tratamento que a monetária. Isso facilitaria inclusive a harmonização das políticas fiscal e monetária, desejada pelo ministro Haddad. O essencial é que a regra ou regras sejam razoavelmente flexíveis, simples e fáceis de comunicar.
Política fiscal ativa – essencial para a retomada econômica com justiça social
O desafio é conferir alguma previsibilidade à política fiscal e ganhar confiança, sem perder o essencial, isto é, a flexibilidade para acionar programas sociais, os investimentos públicos e a reforma tributária. A economia brasileira experimenta uma estagnação que já dura dez anos. Continua a ser um dos países mais desiguais do mundo.
Alguém imagina que será possível redistribuir renda sem lançar mão de políticas de gasto e tributárias? Alguém imagina que a retomada virá da restauração da confiança na política econômica e dos efeitos dessa restauração sobre o consumo e o investimento do setor privado? A maior confiança poderia no máximo ajudar, reforçada pela suavização da política monetária.
A liderança tem que partir do Estado, único agente capaz de lançar e coordenar o esforço de retomada econômica e distribuição de renda. A política fiscal ativa constitui uma alavanca essencial que, coadjuvada pela mobilização dos bancos públicos e pela revisão da política monetária, poderá realizar os objetivos tantas vezes adiados de tirar a economia do marasmo e criar um país mais justo.
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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista Carta Capital.
O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.
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